A HISTÓRIA QUE ROMERO NÃO CONTOU dtrl 24

Quando o sol tingia de vermelho pálido as nuvens do horizonte, a maré alta açoitava os arrecifes trazendo consigo os navios negreiros que em seu ventre guardavam como vermes a mão de obra necessária à lavoura local. Aquelas criaturas desprovidas de almas seriam permutadas pelo açúcar da ilha.

Num deles, impregnado pela imundice, Nagbi Ashuit permanecia sereno apesar de ter a seu lado companheiros vitimas do banzo da viagem. Não bastava estarem confinados nos fétidos porões, expostos a todo tipo de moléstias, ainda recebiam na carne preventivamente o afago da chibata, que há muito habituado com a tarefa, o carrasco já havia perdido o mórbido prazer em produzir a dor, apenas indolente sulcava a pele sangrando os pobres diabos como se fosse um remador cotando as águas do mar.

De olhos miúdos, braços fortes e sorriso cínico, o negro se entregou aos captores guiado por uma mão invisível que sempre indicava o caminho do ocidente. Bastou o navio aportar e que as primeiras cordas fossem atadas na madeira fria do cais que seu corpo vibrou tomado por uma risada macabra. Ergueu-se junto ao rebanho demonstrando grande satisfação.

Grilhões foram lançados em seus pulsos, a toque de vara desvencilhou-se dos dejetos. Lá fora ao leve contato com a brisa mansa pode observar outros navios na linha do quebra mar, brevemente trocariam dignidade por quinquilharias.

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A lua deixava o céu bem claro, o batuque prenunciava desgraça. Estirado num leito de palha o jovem ardia em febre. A seu redor, os Filhos da Morte dançavam possuídos por estranhos espíritos, seus cânticos ofereciam uma alma aos braços da eternidade. Esfregando sumos vegetais no peito do moribundo, em transe o velho feiticeiro balbucia palavras num dialeto há tempos esquecido.

Os deuses não queriam mais uma alma, eles precisavam de uma vida.

Antes de morrer, o doente foi levado à cova. No seio quente da terra uma semente do mal foi plantada.

Por dias e noites, sobre a sepultura preces profanas foram ditas em honra do senhor da Morte. Os feiticeiros que ao nascer roubam a vida das mães, com o tempo adquirem habilidades e conhecimentos sobre os mistérios entre a linha que divide os dois mundos, mortos ou vivos são duas metades que se somam no grande universo das sombras. Quando isso acontece, num rito de passagem recebem na pele a cor pálida dos ossos, usam uma mistura sagrada de resina de baobá com a lama do fundo do rio se tornando verdadeiros Filhos da Morte.

A febre e o peso da terra no peito queimavam a alma do jovem enquanto sua consciência livre vagava por dias passados.

Nas margens de um grande rio, não tão longe de casa, a bela filha do chefe banhava-se ao fim da tarde. Dos antros sombrios os olhos cobiçosos da Morte a fitavam. Seu sorriso encantador, seus gestos graciosos como as flores embaladas pela brisa, sua pele negra como a noite, salpicada por gotas prateadas de água reluzia espelhando o brilho do sol, se não fosse real artista nenhum retrataria tamanha beleza, era tudo tão sedutor. Suas carnes jovens eram um convite ao pecado.

Silenciosamente a escuridão tornou-se palpável, aos poucos as brumas em movimentos circulares foram se aglutinando. Do vazio se formaram ossos, as sombras transformaram-se em carnes, das carnes surgiram pelos, no fim uma coisa perdida entre o homem e o animal arfava com volúpia.

Não se conteve, tomaria aquilo que desejava, tinha que tocá-la, tinha que ser sua.

Surpreendida a moça não teve muito que fazer, antes mesmo de um grito de pavor a criatura estava sobre ela. Seus dentes vermelhos de sangue saltavam da mandíbula, suas ventas em movimentos velozes sugavam o oxigênio, seus olhos amarelos espelhavam terror, em sua testa larga dançavam incontáveis rugas. Seu corpo coberto de pelos impedia qualquer movimento, suas mãos lascivas roubavam-lhe a virgindade.

Ali mesmo na lama do rio, tendo menos dignidade que um pobre animal a mulher de sangue nobre foi possuída. Sobre seu ventre o peso dos pecados, gotejando em sua face a viscosa saliva do predador, no seu útero como milhares de agulhas as sementes do mal germinavam.

Carregando dentro de si a cria maldita, sangrando por entre as pernas, seu corpo agora não passava de um involucro banal de algo sinistro. A gestação foi tão breve quanto dolorosa, naquela mesma noite o parasita desenvolvia-se definhando sua genitora.

No fim de uma semana o filho bastardo conhecia o brilho da luz ao entregar o corpo sem vida da mãe nos braços do pai.

Mesmo de nobre linhagem a criança crescia solitária, parecia possuir um toque letal, era considerado de mal agouro.

A solidão é como uma faca na garganta, quanto mais você respira mais ela te fere. Odiado como uma serpente, temido como um leão o pobre garoto possuía o coração de uma lebre. Na sombra do antigo baobá, ao som da alegria alheia, com as costas da mão secava uma lágrima indesejada que do olho teimava em escapar. Oculto, o pai sentia as dores de seu rebento, ninguém pode ser mais solitário que a morte, ninguém é mais evitado que ela. A Morte se fez matéria, se fez criança, se fez amiga.

O garoto chorava em silêncio enquanto seus olhos buscavam a felicidade no horizonte, foi a primeira vez que ouviu outra criança pronunciar seu nome. Nunca o vira antes mais sentia sua aura fraterna. Despertou de sua alienação. Contorcendo a face esboçou um desajeitado sorriso.

Ao lado do primeiro amigo, correu, nadou, caçou e no início da noite se despediram. Naquele dia atípico, em toda a África nenhuma vida conheceu o fim. Não poderia mais haver dias como aquele. Não voltariam a se encontrar em terras viventes.

O pai-criança sabia do peso da solidão. Como a última traquinagem juntos, enquanto por trás das serras a lua se insinuava, da casca murcha da árvore lhe fez uma companhia. O baobá lhe cedeu a pele, lhe deu a carne, das mãos da Morte a criança recebeu uma estranha boneca.

Anos sem conta se passaram numa África soberana até que um dia seus guerreiros cativos foram tratados como crias sem alma e para o novo continente seguiram escravos.

Sufocado pela terra fofa um feiticeiro revivia estas antigas memorias. Sob o toque de rústicos tambores seu espírito era guiado ao corpo vazio.

Assemelhando-se a uma larva que emerge da carne pútrida, sua mão surge do seio da terra em busca do ar que lhe faltava. Lentamente o solo regurgitava a vida que ainda não lhe cabia. Pelo corpo as marcas carcomidas de vermes eram percebidas, a pele seca com olhos profundos clamava por um gole de vida.

Proferindo palavras indecifráveis, o feiticeiro decepou o pescoço de uma ave, o néctar vermelho escoou para dentro do corpo deteriorado. Num arfar desesperado a vida foi soprada dentro do cadáver reanimado.

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Quase dez anos se passaram do dia em que Nagbi Ashuit voltou dos mortos e desembarcou na Ilha Hispaniola. No cais, ao receber o ferro em brasa com a marca de seu senhor tomou o nome cristão de Gean Saintre.

Na ilha os dias eram iguais. Antes do raiar do sol a caminhada até a plantação, enquanto perdurasse a luz as foices ceifavam a cana, vez pro outra o som da chibata e a agonia de um pobre coitado quebrava a rotina. Gean resignado cumpria maquinalmente a tarefa a ele imputada. Nunca reclamava, e também não censurava os que se rebelavam. Conhecedor de plantas, mestre nas artes ocultas cuidava das doenças e mazelas da senzala. Por vezes suas beberagens haviam livrado o senhor de consideráveis prejuízos em seu plantel. Rapidamente caiu nas graças do mestre. Negros como ele tinham grande valia, assim recebeu uma função na moenda, com isso, certos privilégios.

Num domingo de missa, atacado pela diarreia, o cocheiro não pode exercer sua função, nenhum dos capatazes estavam aptos a tal incumbência. Gean foi convocado, faria mais esta tarefa.

Era uma vila portuária, semelhante a do desembarque, vindos do interior, seguiram por entre as casas, o armazém e a taverna, margearam a costa se afastando do porto até o promontório onde a capela rústica recebia os fiéis. Junto a outros coches próximo ao adro principal, Gean deteve os animais. Para evitar a fuga, os negros eram atados à roda da carruagem. Ele tinha suas regalias, uma marimba de água foi deixada a seu alcance.

Tomando conforto necessário, seu espírito ouvia os tambores ancestrais, seu corpo tremia, seus olhos reviravam deixando a mostra um branco opaco. Seu coração estava pronto a atender aquele estranho chamado.

Dando boas vindas aos penitentes, um senhor de hábito roto falava misturando francês e latim. Num bolso oculto da velha batina, inseparável de seu guardião, a antiga boneca crioula clamava por seu resgate. Ali estava o destino do filho da morte, por isso quedou-se cativo.

Ao encontrar seu tesouro, Nagbi Ashuit traçou sua empreitada. Rápido e mordaz naquela noite o feiticeiro partiu armado apenas de sua obstinação.

Após outro dos terríveis pesadelos que não lhe abandonavam desde que a ele foi confiada à boneca da morte, o vigário orava agradecendo por mais um dia de vitória sobre a tentação. Quando secretamente saiu de Roma contrabandeando o objeto assombrado, sabia não poder livrar-se tão facilmente daquela maldição. Nem água, nem fogo. Nada poderia destruí-lo. Jogá-lo no oceano era certo de encontrá-lo ao lado do seu travesseiro. Queimar. Ele não ardia. Sepultá-lo, outros haviam tentado. Como seu guardião deveria mantê-lo distante de mãos hereges até que um dia a pudesse confiá-lo a um sucessor.

Esgueirando-se pelos fundos da igreja, como um espectro protegido pela noite o feiticeiro aproximava-se. O ladrar de cães podia ser ouvido ao longe apesar de abafado pelo som das ondas quebrando-se na praia.

De joelhos, o padre ouviu o ranger da porta lateral. Não esboçou reação, manteve-se firme em sua fé. O ar ficou denso anunciando a presença maligna. Serpenteando por entre os bancos, o escravo ganhava terreno. Se a escuridão permitisse ver-se-ia um cínico sorriso na face que flutuava em meio a penumbra.

Apenas uma vela solitária permitia ao padre contemplar a figura do salvador crucificado, em suas orações pedia perdão por suas fraquezas, em seu coração agradecia por sua liberdade.

Sereno sentiu as mãos fortes do negro envolver seu pescoço. Um som rouco de ossos partindo-se ressoou em solo sagrado. Sem vida descansou de seu fardo. Uma pequena cruz de prata ainda desprendeu-se de suas mãos.

Rasgando as vestes do sacerdote, ávido o feiticeiro atendeu ao chamado da morte.

Rumores de mais uma tentativa de fuga surgiram na lavoura, os rastreadores com seus cães haviam partido logo de manhã, certamente no começo da noite trariam os restos mortais do foragido.

No porto a misteriosa morte do padre era o assunto mais comentado.

As buscas pelo escravo se tornaram infrutíferas, três dias se findaram sem a mínima pista, pior, nenhuma notícia dos perseguidores. Uma segunda leva de mateiros foi enviada. Após um dia de buscas, guiados pelos urubus, numa clareira foram encontrados empalados e esquartejados os caçadores. Os cães choravam aos pés de seus amos por testemunharem tamanha atrocidade. Apenas o capitão possuía o corpo inteiro, porém muito machucado pelo negro ou por animas famintos.

Levaram o infeliz para receber um enterro cristão. Sem o padre para encomendar sua alma, já tomado pela ação dos vermes o coitado ganhou seu túmulo ao lado da cova onde aleatoriamente os pretos eram sepultados.

Tem coisas que os olhos humanos não percebem, bastaram as primeiras porções de terra tamborilarem em seu peito que mesmo sem vida os olhos abriram. A terra cobriu-lhe por completo, nas trevas sua alma foi degredada.

A noite chegou como uma chibata cruel, rastreadores e mateiros haviam sido convocados, das outras fazendas também pela manhã receberiam recursos.

Como se o demônio tivesse preferência, à meia noite quando as chamas das fogueiras sentiam-se fracas, a terra fofa tremeu.

Do chão ergueu-se um corpo vazio, uma casca sem amor, tristeza, dor ou esperança. Como se farejasse a vida o cadáver caminhou. Por entre as fogueiras agonizantes seguiu em silêncio.

A morte não faz distinção, senhor ou escravo, branco ou negro, jovem ou velho, a criatura só tinha um proposito. Com suas mãos buscaria uma alma para a boneca da morte.

Por azar um descuidado capataz, ainda cheirado a rum caminhava trôpego pelo terreiro. Nunca soube o que lhe roubou o ar, caiu sem vida com o pescoço partido, a criatura faminta foi em busca de outra vitima.

Ante seu toque maldito, minutos após quedar-se sem vida no pátio, o corpo tremia atacado por uma dor insuportável. Abriu os olhos e mais um assassino voltou ao mundo dos vivos para criar seres da morte.

Naquela noite foi impossível saber quanto horror aquele pedaço de chão testemunhou.

De manhã os reforços chegaram, a princípio não entendiam o que tantos mortos faziam no mundo dos vivos. Uma luta desigual foi travada, por mais que eram atingidos nunca morriam. Os vivos possuíam armas e inteligência, os mortos possuíam a força e violência. A cada vivo que tombava era mais um no exército de mortos.

Na senzala criaturas acorrentadas gemiam em busca de sangue, aos poucos os mortos eram guiados a uma armadilha, era tarde quando as portas se fecharam, brancos e negros já não existiam, a morte tornou-os irmãos.

Uma tocha foi acessa, a velha senzala queimou exalando um cheiro de enxofre, o resto da fazenda teve o mesmo fim.

Tementes a Deus e respeitando o diabo os vitoriosos fizeram entre si votos de jamais revelar o ocorrido. Por anos aquela fazenda sem donos definhou, aos poucos foi agregada a outras posses.

Nagib Ashuit foi dado como morto e esquecido em meio a tanta depravação.

A Boneca crioula se tornou apenas uma história na boca de negros cativos para assustar os brancos opressores.

TEMAS: Escravidão, objetos assombrados e solidão.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 09/09/2015
Reeditado em 17/09/2015
Código do texto: T5376472
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