HULHA NEGRA - DTRL 24

Foi assim que aconteceu. Por sete anos fomos assolados por uma onda de calor sem precedentes, foi quando os primeiros morreram. Na noite em que o calor finalmente cedeu, começaram as chuvas e por muito tempo fomos castigados pelas mais terríveis tempestades que já existiram. Não sei precisar quantos anos isso durou, mas quando finalmente o nível dos oceanos baixou, não havia sobrado muito da humanidade.

O mundo já não era mais o mesmo, houve guerras, os governos caíram, a eletricidade acabou e as cidades não existiam mais. Aqueles que sobreviveram passaram a viver em pequenas comunidades fortificadas chamadas de Províncias, isoladas e distantes entre si, ninguém sabe quantas existem, mas creio que não são muitas. Foi nessa época que as noites ficaram mais longas, sete horas de claridade para cada quatorze horas da mais completa escuridão. As pessoas também mudaram, a vida encontrou uma forma de se prolongar, a cada dez anos de vida envelhecemos apenas um. Nossas crianças crescem normalmente até os vinte anos e quando atingem esta idade entram no novo ciclo como os adultos. As doenças foram erradicadas, nossa expectativa de vida cresceu exponencialmente e as poucas mortes são por acidentes ou assassinatos, o que ficou cada vez mais raro. Alguns desenvolveram dons especiais, os crentes atribuem isso a forças desconhecidas, os céticos alegam que ocorreu um desenvolvimento vertiginoso da capacidade cerebral, a verdade é que não sabemos a causa real.

Mas agora um novo mal se abateu sobre nós, ainda não sabemos o que eles são. Atacam à noite, de certa forma lembram humanos na aparência mas tem uma força descomunal; olhos completamente negros, suas bocas são repletas de presas com formato que lembram dentes de tubarão. São incrivelmente ágeis e usam as mãos e pés para correr, se movimentam em pé ou de quatro, como alguns animais. Ainda não sabemos praticamente nada desta nova raça, ou o que eles são. A única certeza é que são perversos, atacam à noite e matam sem piedade. Somos alimentos, apenas gado para eles. Nós os chamamos de Filhos da Noite. Nossa província foi dizimada, rezo para que alguém consiga encontrar uma forma de detê-los ou será a extinção da humanidade. Ao amanhecer tentarei chegar à província mais próxima, que Deus me dê forças para conseguir.

Com este registro, na esperança de deixar viva ao menos nossa história, cumpro aqui meu dever, não apenas pelo cargo que ocupo com orgulho, mas também pela triste sina de último sobrevivente da minha comunidade.

Vitor Malta – Guardião da História da Província de Rios de Cima – Novo Mundo

12 de fevereiro de 2128

*****

...Algumas semanas depois...

Província de Hulha Negra

Era fora dos muros que eles passavam os melhores momentos – eles adoravam o vale, os lagos, mas acima de tudo amavam a companhia um do outro.

Depois de brincarem bastante, ficaram abraçados sobre a grama rindo e admirando os últimos raios de sol, até que Pedro falou: – Vamos filhote, precisamos entrar, daqui a pouco já vai anoitecer.

– Papai, por que o sol dura tão pouco tempo?

– Não sei meu filho, acho que ele é meio envergonhado – disse Pedro tentando disfarçar a tristeza.

– Se eu tivesse inventado o mundo, seria dia o tempo todo. Eu odeio a noite, tenho medo da escuridão! Algum bicho pode vir me pegar...

– Não precisa ter medo, eu sempre vou te proteger meu filhote! Nunca vai te acontecer nenhum mal.

– Promete Papai?

– Sim, com todas as minhas forças.

– Eu te amo Papai. Um tantão assim ó.. – disse Tiago abrindo os braços o máximo que podia.

– Eu também te amo muito meu filho. Agora vamos entrar que já esta passando da hora.

Nas províncias todos tinham seu ofício, os mais importantes eram: os Mantenedores, que produziam os alimentos; o Guardião da História, encarregado de todos os registros; os Mestres, que educavam as crianças; os Graduados, que detinham conhecimentos técnicos; o Regente, administrador da província e finalmente os Protetores, responsáveis pela segurança. Pedro era o líder dos protetores de Hulha Negra.

A província era um antigo presídio, localizado no Sul do Brasil. Muitas comunidades optaram por construções deste tipo para se protegerem de bandos armados que no início assolavam as regiões. Com o tempo, os ataques passaram a serem cada vez mais raros e em muitas províncias como Hulha Negra, alguns moradores optaram em viver em habitações no entorno das fortificações. Foi um processo lento, mas gradativamente, através de sistemas de captação de energia solar, as províncias estavam conseguindo reestabelecer serviços básicos como água encanada e iluminação, mesmo que de forma precária e com racionamento. Combustível ainda existia, mas era cada vez mais raro e a previsão mais otimista era que ainda levaria muitos anos para normalizar. Dentro das fortificações havia diferentes níveis de segurança, o Guardião da História ficava no local mais seguro, depois mulheres e crianças, todo o restante da população sem exceção tinha o dever de combater em caso de ataques à província.

Assim que entrou no portão principal, Pedro abordou o protetor encarregado.

– Boa noite, algum fato relevante para reportar?

– Não senhor, todo protocolo de segurança esta cumprido.

– O Guardião da História já se recolheu?

– Sim senhor, e as mulheres e crianças já estão se encaminhando para o nível dois.

– Ok, muito bem. Caso haja qualquer ocorrência, por menor que seja, quero ser informado de imediato. Tenha um bom trabalho.

– Com certeza, senhor! – disse o encarregado, que após Pedro se virar deu uma piscadela para Tiago.

Todos gostavam de Tiago, tinha seis anos, loiro de cabelos lisos, olhos verdes e com um semblante que misturava um jeito sapeca com um ar angelical. Tiago não conheceu a mãe, ela morreu no parto quando ele nasceu, mas para os que haviam conhecido Raquel, era impossível não lembrar-se dela ao vê-lo, tamanha a semelhança entre eles.

Pedro era moreno, alto e com excelente forma física, tinha aparência de um homem de 41 anos, sua idade real ninguém sabia ao certo, ainda mais com o novo ciclo de envelhecimento. Era um combatente nato, havia sido das forças especiais do exército, com diversos treinamentos de especialização, inclusive com o Mossad, a temida agência de inteligência do Exército Israelense.

Após jantarem, Pedro levou Tiago até o dormitório no Setor 2:

– Ok, Campeão! Cadê o meu beijo de boa noite?

– Boa noite Papai ¬– disse Tiago enquanto beijava a bochecha do pai e em seguida corria para se juntar aos seus amiguinhos.

A porta do dormitório foi lacrada por dentro como em todas as noites, mas hoje Pedro sentiu uma estranha angústia no peito. Há algum tempo já não era obrigatório as mulheres e crianças ficarem no abrigo, cabia a cada família decidir, mas mesmo sob os protestos de Tiago, este cuidado com a segurança do filho foi algo que Pedro nunca abriu mão. “Devo estar ficando ainda mais paranoico, não há lugar mais seguro do que onde ele esta”, pensou Pedro enquanto dava um suspiro e saía a passos lentos em direção ao seu dormitório.

*****

...Durante a madrugada...

Gazo, o Filho da Noite que seguia à frente liderando os demais sorriu deixando a mostra suas presas afiadas, sua boca fétida salivava pelas extremidades, por um momento fechou os olhos em estase ao antecipar o que estava por vir. O bando estava protegido sorrateiramente na mata que circundava a periferia de Hulha Negra, haviam cercado toda a comunidade. A besta inspirou fundo o ar da noite. A primeira casa da periferia estava a poucos metros, desprotegida, mas os muros altos com guaritas e a construção central tinha muita proteção. “São cautelosos estes provincianos, darão mais trabalho que os últimos, foram astutos ao usar este presídio para viver”, pensou Gazo ao ver refletores iluminando pontos estratégicos. A besta cheirou mais fundo. Parou. Abriu ainda mais suas narinas. Farejava coisas da casa próxima. Algumas galinhas. Pão. Perfume de mulher. Um homem. Gazo mandou os outros esperar e moveu-se vagarosamente, aproximou-se da janela e espreitou por entre as frestas da veneziana. Um lampião iluminava timidamente o quarto. Um homem dormia profundamente com a mulher ao lado. Salivou ao ver que no berço aos pés da cama, uma criança de cerca de um ano de vida, brincava calmamente mexendo as perninhas e segurando os pezinhos com as mãos.

De forma consciente, Gazo arranhou delicadamente as venezianas da pequena janela de madeira, o som foi quase inaudível, mas o suficiente para a mulher abrir os olhos e dar um pulo na cama. “Sempre admirei o instinto materno”, pensou ele em meio a um sorriso. Torturar suas vítimas lhe dava um prazer indescritível.

– Marcos, acorde! – sussurrou a mulher enquanto cutucava o marido. – Ouvi um barulho.

O homem deu um salto e já saiu da cama de arma na mão – Onde?

– Ali, na janela – sussurrou ela.

– Se for alguém querendo nos roubar de novo... vou dar um tiro na cara deste filho da puta – disse Marcos enquanto abria a janela com uma mão e apontava a arma com a outra.

Assim que abriu, deparou-se com aquela figura dantesca imóvel, com um sorriso cheio de presas lhe observando. Mesmo petrificado pelo medo, Marcos conseguiu atirar... “POW... POW... POW...” Foram três tiros secos à queima-roupa, nenhum acertou o alvo.

Com uma velocidade impressionante, Gazo agarrou o homem pelos cabelos e com suas presas afiadas estraçalhou sua jugular. Mesmo em pânico a mulher correu para pegar o bebê, mas não rápido o bastante. Ainda pelo lado de fora da janela, o ser demoníaco agarrou o pequeno por uma perna e ergueu o menino na altura de sua cabeça, a pobre criança suspensa no ar de cabeça para baixo chorava e se debatia assustada.

– Pelo amor de Deus, meu filho não... – Implorou a mulher com lágrimas nos olhos.

– Deus não existe – sussurrou a besta abrindo as ventas e farejando o bebê...

– LARGUE MEU FILHO SEU DEMÔNIO AMALDIÇOADO!!! – gritou a mulher atacando a criatura com todas as suas forças.

Com a mão livre, Gazo agarrou a mulher pelos cabelos e a ergueu no ar com o mesmo esforço tedioso que uma menina faria com sua boneca. A mulher se debatia furiosa como um animal, seus olhos vidrados, sua face era uma máscara de terror tomada pelo desespero ao estender os braços para resgatar seu filho e lhe alcançar apenas com o olhar.

De forma displicente, sem pressa, ainda com o menino suspenso e se debatendo, Gazo aproximou-se como se fosse beijá-lo... A mordida foi tão forte que não arrancou apenas sua bochecha esquerda, mas quase toda mandíbula, atingindo dentes e ossos.

A pobre mulher desmaiou ao ver a cena, como se tocada por um ato de misericórdia.

– Hummm... Não há carne mais tenra. Um presente para vocês meus irmãos – grunhiu Gazo com sangue escorrendo pela boca e atirando o pobre inocente por sobre os ombros em direção à mata. Ouviu-se um choro desesperado da criança, um baque seco, uma agitação nas árvores, urros bestiais... – e o bebê gemeu baixinho uma última vez.

O festim diabólico teve início. Os demônios atacaram as casas. Os protetores da guarita sul ouviram os gritos. O alarme soou. Todos os refletores foram ligados e a cena que viram foi aterradora. Todo o perímetro do entorno dos muros era um mar de sangue, pessoas saiam das casas gritando, corriam desesperadas numa tentativa inútil de escapar das criaturas que pulavam sobre eles de todas as partes.

*****

Deitado em sua cama, Pedro abriu os olhos alguns segundos antes do alarme tocar, o som estridente das sirenes confirmava o que seu instinto havia tentado alertar. Em poucos minutos Pedro já estava posicionado na passarela sobre o muro comandando os protetores na defesa da cidade, mesmo fortemente armados e atirando sem parar não conseguiam atingir um demônio sequer.

– Que porra é essa, Pedro? Já dei várias rajadas nestes bichos e não acertei nenhum. Parece que estamos atirando em câmera lenta... – gritou o protetor com a voz alterada, sua respiração descompassada denunciando que estava prestes a entrar em pânico – Meu Deus, toda esta gente sendo morta...

– Calma! Este muro tem mais de cinco metros de altura. Estamos numa posição privilegiada, vamos encontrar um jeito de detê-los. Continuem atirando! Mantenham-se firmes que vamos resistir – falou Pedro com voz grave e ar imponente, mas com sua alma devastada ao ver que todas as pessoas da periferia estavam condenadas.

Além de muito experiente em combate, Pedro era um líder nato. “Minha única vantagem é estar em um local alto e abrigado, mas não conheço meu inimigo”. Pensou ele enquanto lembrava um dos ensinamentos de Sun Tzu em A Arte da Guerra:

“(...) Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória sofrerá também uma derrota (...)”.

Pedro parou de atirar e para espanto dos companheiros mais próximos, agachou-se atrás da mureta de proteção e passou a observar. “Fortes. Ágeis. Humanoides. Inteligentes. Cruéis. Eles temem a iluminação dos refletores, a luz pode feri-los, ou no mínimo os perturba. Não usam armas. Usam garras e presas afiadas para matar. São em torno de quinhentos. Aquele mais alto é o líder. Muito rápidos, conseguem se esquivar das balas... se evitam as balas é porque podem morrer”... Levantou-se.

*****

Gazo estava sobre o telhado de uma casa, onde podia observar todo massacre que haviam infringido na periferia de Hulha Negra. Espalhados por todos os lados, corpos mutilados de homens, mulheres e crianças eram testemunhas da fúria implacável dos Filhos da Noite. O líder dos malditos farejava o ar noturno, inebriado pelo doce cheiro da matança que invadia suas narinas.

– Mestre, faz mais de uma hora que não deram um tiro sequer! Acho que estão apavorados demais ou ficaram sem munição... – disse o segundo no comando – ou devem estar se sentindo seguros atrás destes muros.

– Hummm... grunhiu Gazo – pode ser, mas creio que estão tramando algo. Não faz diferença, irão morrer de qualquer forma. Vamos nos divertir um pouco – falou a besta dirigindo-se ao portão principal.

– HÁ UM LOBO ENTRE AS OVELHAS??? – Gritou com voz gutural.

– NÃO, MAS HÁ UM LÍDER ENTRE OS HOMENS! SOU PEDRO, PROTETOR DESTA PROVÍNCIA – gritou ele ao aparecer sobre o muro.

– Hummm... a julgar pelos corpos aqui fora, você não parece muito competente – falou Gazo com ar de deboche.

– Você também não, criatura, ou acha que atacar sorrateiramente pessoas dormindo e indefesas acaso é um grande feito?

A expressão de Gazo era uma mistura de raiva e perplexidade com a resposta do homem a sua frente – Homem morto, você acredita que estas armas e muros conseguem nos deter?

– Queremos apenas viver em paz! Diga criatura, o que são vocês e o que querem?

– O que somos não importa, basta dizer que já fomos fracos como vocês! Agora somos fortes, a raça dominante, os predadores, e vocês apenas nossa comida! Mas vocês tem coragem, por isso tenho uma proposta a fazer: nos entregue suas mulheres e crianças e os homens podem ser como nós!

– Prefiro morrer mil vezes, demônio!

– Então que assim seja, homem morto. Antes que a noite acabe vou experimentar sua carne. Guarde minhas palavras: vou fazer você sofrer de uma forma que jamais imaginou ser possível – rosnou Gazo com os olhos injetados pela mais pura maldade.

*****

Hulha Negra era a maior e mais bem protegida província do Novo Mundo que se tinha notícia. Além de ser uma fortaleza, seus protetores eram muito bem treinados e também dispunha de grande quantidade de armamento pesado, fruto do conhecimento de Pedro de vários arsenais secretos do exército. Se Hulha Negra cair, a esperança da humanidade morrerá com ela.

Vindo de todas as direções, as bestas investiram de encontro aos muros da fortificação, Pedro observava os atiradores enfileirados sobre o muro com fuzis ponto 50 posicionados em trios como ele orientara, “um ao centro e a cada lado os outros dois num ângulo de 30 graus sobre o próprio eixo, com isso vamos conseguir atirar em várias direções simultaneamente”.

No solo, Gazo sorria e urrava grotescamente incitando os Filhos da Noite contra os muros, já começavam a se aglomerar uns sobre os outros para alcançar o topo, exatamente como ele havia planejado. “Achavam que estavam protegidos, não conseguiram disparar um tiro sequer”.

Sobre o muro os protetores olhavam aflitos para Pedro que com a mão fazia sinal para aguardarem. “Só mais um pouco, preciso deles aglomerados, só mais um pouco...”.

– AGORA! LANCEM AS GRANADAS E ATIREM À VONTADE!!

Homens surgiram por trás dos atiradores lançando granadas em direção a horda de demônios, ao atingirem o solo as Flashbang´s geraram uma luz intensa desnorteando as bestas, com os fuzis os homens começaram a atirar. O bando foi atingido em cheio, as balas .50 dilacerando os Filhos da Noite que tombavam em incrédula agonia.

Gazo urrava enlouquecido vendo seus irmãos se transformarem em uma massa disforme de sangue e carne. Pedro sorriu com esperança ao ver que aquelas coisas podiam ser mortas. Ao ver que alguns queriam fugir, o líder dos demônios mandou-os continuar o ataque. Foi quando Pedro deu a segunda ordem:

- ACIONEM AS MINAS! – Gritou ele.

Gazo não fazia ideia, mas em todo o terreno entre os muros e as casas haviam minas subterrâneas posicionadas em pontos estratégicos. As bombas transformaram toda a área em um mar de fogo, os demônios morriam um após o outro, vítimas das explosões, dos tiros que não paravam ou atingidos pelas labaredas. Vendo que iriam ser dizimados, os Filhos da Noite fugiram em direção à mata em busca de abrigo.

Das guaritas, ao verem a horda bater em retirada, aos brados os homens começaram a comemorar a improvável vitória. Gazo já estava entrando na floresta quando os sons chegaram aos seus ouvidos, à raiva lhe dominou, um ser poderoso como ele não iria admitir tal humilhação e deboche.

Olhou para seus irmãos, não eram mais do que cinquenta agora! Mandou ficarem preparados. Observou atentamente o terreno. Agachou-se, respirou fundo como que concentrando energia e se posicionando de quatro como um imenso leopardo, correu numa velocidade impressionante em direção aos muros de Hulha Negra.

Pedro viu a criatura atingir uma velocidade inacreditável, prevendo o pior gritou para os companheiros – Ataquem com tudo que tiverem. Ele vai tentar saltar o muro!

Gazo continuou sua investida, as balas zuniam sem atingi-lo, imprimiu uma velocidade ainda maior, usou uma pilha de corpos dos próprios irmãos como apoio e saltou! Estava agora sobre o muro da fortaleza. Os protetores tentaram atirar, mas à curta distância, no corpo a corpo, não tinham a menor chance! Vendo o líder acabando com as defesas da província em minutos, o restante dos demônios também saiu das sombras e partiu para o ataque.

*****

Hulha Negra havia sido invadida, praticamente todos os protetores estavam mortos e os nove que restavam gemiam feridos e dominados. O nível dois foi invadido, as mulheres e crianças foram amontoadas como gado no grande pátio interno da fortaleza.

Os Filhos da Noite haviam obedecido seu líder, nenhum havia matado Pedro durante o ataque, ele fora imobilizado e amarrado em uma tora de madeira colocada bem na área central do pátio.

Com o olhar, Pedro buscou pelo filho no meio da multidão e o viu no colo de Laura que o segurava de uma forma que ele não pudesse enxergar o pai. “Graças a Deus, pensou Pedro” vendo que Tiago ainda estava vivo.

– Tragam-me aquele ali – disse Gazo, apontando para um homem negro com uma grande cicatriz na face esquerda – era André, um dos homens mais corajosos e leais de Pedro.

– Lembra-se de minhas palavras, Homem Morto? Você vai sofrer com nunca imaginou ser possível. – sussurrou o ser demoníaco no ouvido de Pedro.

Colocaram André de joelhos em frente à Pedro, uma besta de cada lado segurando seus braços.

– Vamos ver como é a sensação de ver seus homens morrerem na sua frente.

– Não faça isso, por favor, eu faço o que você quiser – implorou Pedro – Gazo apenas sorriu.

Valente, em silêncio, André apenas fez um sinal com a cabeça que estava tudo bem.

– Você parece bem forte para um humano, será que é mais forte que um Filho da Noite? – debochou Gazo!

Com o homem ainda ajoelhado, as duas criaturas que o seguravam começaram a puxar seus braços. André começou a sentir a pressão em seus tendões. Fez força para resistir. As bestas, lentamente continuaram imprimindo tensão. O suor em seu rosto demonstrava o esforço sobre-humano que fazia para resistir. Uma dor insuportável. Seus músculos começaram a romper. A pressão continuava. André deu o grito mais horrível que Pedro jamais ouvira quando seus braços foram arrancados. O sangue voou longe atingindo o rosto de Pedro como o açoite de um chicote. André estava morto. Pedro arrasado. Os demônios riam de satisfação.

Um por um, das formas mais cruéis imagináveis os dez protetores de Pedro foram sacrificados na sua frente. Ao morrer, alguns foram valentes como André, outros choraram e imploraram por suas vidas. Pedro sentiu orgulho de todos eles.

– Agora é sua vez, Homem Morto! Vamos ver se ainda me lembro como se usa isso...

Um riso grotesco tomou a noite, e então Pedro explodiu num grito de dor. Olhou para baixo virando a cabeça para trás, não viu Gazo que parecia estar brincando de esconde-esconde, mas ao olhar para a perna via o cabo branco do facão de açougueiro. A faca tinha atravessado sua panturrilha direita, o menor movimento causava espasmos de dor pelo corpo inteiro.

– Veja o que temos para brincar agora ¬– disse Gazo, segurando uma espécie de espada com a mão direita.

O líder dos malditos levantou a espada, e quando se preparava para desferir mais um golpe...

– NÃO!!!!!!!!! – Gritou a voz do menino que tinha avistado o pai.

Pedro fechou os olhos com força, seu pior pesadelo tinha se confirmado. Agora o demônio sabia.

Em segundos, Gazo já havia arrancado o menino dos braços de Laura e segurava Tiago no colo, bem em frente de Pedro.

– Que garotinho bonito temos aqui – disse a criatura enquanto acariciava o rosto da criança com suas unhas afiadas.

Assustado, sem entender direito o que estava acontecendo e com aquele ser bizarro segurando-o, Tiago começou a chorar ao ver as lágrimas caindo do rosto do pai.

– Papai, não deixa este bicho me machucar... por favor papai...

Pedro tentou com todas as suas forças se livrar das cordas que lhe prendiam, não há desespero maior que a sensação de impotência de não poder salvar um filho.

– Filhote, o papai esta aqui. O papai te ama! – falou Pedro baixinho pela primeira vez sem saber o que dizer para tentar ao menos confortar o filho de alguma forma. Era um homem experimentado, sabia como aquilo iria terminar.

– Me mate, faça o que quiser comigo, mas não faça nada com meu filho... Eu te imploro. Você disse que já foi como nós, deve existir alguma humanidade em você.

Gazo sequer respondeu. Olhou para Tiago e perguntou: – Papai gosta de brincar com fogo, o titio Gazo também. Vamos brincar de fogueira?

Na sua inocência o menino respondeu: – Só se o papai puder brincar também!

- Há... ele não vai brincar, mas pode assistir.

Gazo fez uma fogueira... por boa parte da noite os gritos e súplicas desesperadas de Pedro se confundiram com as de Tiago. Algumas horas depois, Pedro ainda fitava com olhar vazio aquele pedaço de carne, preto e esturricado, em que haviam transformado seu filho.

– Cumpri minha palavra, Homem Morto?

A voz de Pedro saiu mecânica, sua essência havia morrido esta noite com o filho – Você matou meus amigos e meu filho. Acorrentou meu menino num espeto e o queimou lentamente, depois devorou seu corpo na minha frente. Sim, demônio, você cumpriu sua palavra. Agora guarde as minhas. Eu ainda vou mata-lo.

– Não, Homem Morto! Quem vai mata-lo sou eu!

Gazo retirou o facão da panturrilha de Pedro, encostou a ponta afiada em seu pescoço e pressionou lentamente até a lâmina mergulhar completamente em carne e sangue. Pedro não emitiu um som sequer e morreu encarando os olhos negros do demônio.

Um Filho da Noite se aproximou – Mestre, o sol esta quase nascendo. Precisamos voltar para o covil.

– OUÇAM, OVELHAS – bradou ele antes de partirem – Vocês irão viver para contar o que viram aqui, são testemunhas do poder de Gazo, Filho da Noite, o Senhor do Novo Mundo!

*****

Quando o sol nasceu em Hulha Negra, a visão era aterradora, corpos por todos os lados, dentro e fora dos portões. Os sobreviventes descobriram um pouco mais sobre os Filhos da Noite, pois os cadáveres das criaturas pegaram fogo assim que surgiram os primeiros raios de sol.

No pátio, jaziam o corpo de Pedro cercado pelo do filho e dos dez protetores que foram os últimos a morrer.

Tito Reginatto, o Guardião da História de Hulha Negra, havia acabado de sair do seu abrigo e seu sentimento era um misto de remorso e melancolia. Ele nunca se sentiu merecedor de tamanha distinção, acima até mesmo de mulheres e crianças. Mas todos concordavam que eles tinham que ser protegidos. Todos os Guardiões tinham dons especiais, uns se manifestavam mais cedo do que outros, mas todos tinham.

Além de Pedro, o Regente também tinha morrido. Restou a Tito liderar os sobreviventes da província, cuja primeira provação era enterrar seus mortos. Com o novo ciclo de envelhecimento e erradicação das doenças, fazia muitos anos que ninguém morria em Hulha Negra.

Haviam sobrado poucos homens vivos, agora a maioria eram mulheres e crianças. Eram muitos corpos, poucas horas de sol, e ainda tinham que pensar em como se organizar minimamente quanto à segurança quando a noite chegasse. Em função disso, mesmo consternado, Tito decidiu usar a escavadeira que dispunham para enterrar as pessoas em valas coletivas, trabalharam até o sol se pôr para conseguir ao menos enterrar os que foram atacados fora dos portões.

A noite havia chegado novamente.

– Tito, o que vamos fazer com os corpos que ainda restam dentro dos muros? Não podemos arriscar irmos à campina durante a noite, e com este calor, se esperarmos o próximo dia, o cheiro...

– Vamos cremá-los! – interrompeu Tito – Não me importo com o cheiro, mas não vou aguentar passar horas vendo-os assim, com seus corpos espalhados como animais abatidos. Vamos nos despedir dos nossos irmãos lhes concedendo ao menos certa dignidade na partida. É o mínimo que podemos fazer em respeito aos que morreram por nós...

*****

Os homens estavam construindo as piras funerárias no pátio central. Como podiam, as mulheres montavam guarda sobre os muros. Foi quando batidas secas no portão principal deixou todos em pânico. Algo estava novamente às portas de Hulha Negra.

Tito subiu correndo as escadas que levavam a guarita do portão principal – Você viu alguma coisa? – perguntou para a mulher que estava de vigia.

– Não senhor, eu não entendo, juro que não tirei os olhos da estrada – gaguejou a mulher, com suas mãos tremendo ao segurar a arma – as batidas ficaram mais fortes.

– Não se preocupe, vou até o portão ver o que esta acontecendo. Mantenham-se alertas! – falou para o restante dos homens e mulheres que se aproximavam.

– Quem é? – gritou Tito pelo lado de dentro do portão – Fale ou vamos atirar!

– Abram o portão, por favor – falou uma voz de homem.

– Primeiro se identifique... Qual seu nome, estranho?

- Vitor... Vitor Malta, Guardião da História de Rios de Cima!

*****

...O Covil...

Nas cavernas escuras, os Filhos da Noite tinham a proteção ideal contra seu maior inimigo: o sol. Os que atacaram Hulha Negra eram uma parte do bando, o restante havia ficado protegendo o covil.

– Quando vamos atacar os humanos novamente, Mestre? – perguntou Borr, o segundo no comando.

– Logo, mas antes teremos que reestabelecer nossas forças. No ataque a Rios de Cima não perdemos nenhum irmão, mas em Hulha Negra mais de quatrocentos e quase perdemos a batalha. Apesar de serem uma raça inferior, não iremos mais subestimá-los.

¬ Como esta nosso estoque de alimento? – perguntou Gazo com um ar sarcástico.

– Bem, Mestre! Temos comida suficiente para várias semanas.

– Ótimo, então não precisamos ter pressa, enquanto isso, vamos escolher os mais fortes para serem transformados.

*****

...Hulha Negra...

Vitor encheu outro copo de água e deu uma generosa golada. Estava cansado da viagem, mas nem se tentasse não conseguiria pregar o olho. Tinha que contar o que sabia com urgência para Tito, por isso os dois guardiões haviam se recolhido para conversar em particular.

– Nunca vou me perdoar! Falhei duas vezes. Primeiro ao não conseguir evitar que minha província fosse devastada, depois, não cheguei a tempo para alertá-los do perigo – disse Vitor dando um suspiro quase inaudível.

– Não se culpe meu caro, temos dons, mas ainda somos apenas humanos... Sei que sua província foi devastada, mas a crueldade que passamos aqui, a maldade na sua essência mais pura, o que fizeram com Pedro e o pobre Tiago, você não imagina o que...

– Eu vi o que fizeram com Pedro e o filho! – interrompeu Vitor.

– O que? – respondeu Tito, atônito.

– Meu dom! De alguma forma eu conseguia ver a essência das pessoas quando estavam próximas a mim, às vezes até mesmo o que algumas estavam pensando – se usado para o bem, isso é muito útil quando se esta construindo uma vida em comunidade. Mas depois da noite que fomos atacados, algo mudou, ficou mais intenso! Eu criei uma conexão com o líder das bestas independente da distância que ele esteja. Não é sempre, não controlo isso... mas muitas vezes eu consigo ver através de seus olhos... em outras consigo saber o que esta pensando. Quando ele matou Pedro e o filho eu vi... Meu Deus.. Eu vi... E não pude fazer nada!

– Vitor desabou num choro descontrolado.

Tito permaneceu em silêncio. Respeitou os minutos que o amigo precisava para se recompor antes de conseguir continuar:

– Tito, eu continuo vendo! Eles não mataram todos como eu havia pensado...

– O que? Vitor, tem certeza do que esta me dizendo?

– Infelizmente sim. Homens, mulheres e crianças presos como gado aguardando a hora de serem abatidos. Você não faz ideia o que fazem com eles... Tito, temos que fazer algo para salvá-los! Temos que ataca-los urgente, enquanto não se proliferam...

¬– Mas como? Deus é testemunha que eu daria minha vida por isso se fosse preciso, mas seria suicídio ataca-los, não temos a menor chance e...

– Seu dom – interrompeu Vitor.

– Não vejo como o que eu consigo fazer possa nos ajudar.

– Não o que você consegue, mas o que você pode conseguir a partir de agora. Tito, se o meu dom ficou mais forte o seu também. Eu sinto que você consegue. Por isso era tão importante eu lhe avisar, com seu dom poderemos salvá-los.

Tito ficou em silêncio pensando nas palavras do amigo, em seu peito sentiu uma pequena fagulha de esperança...

*****

...O Covil...

Entre os cativos, Borr caminhava arqueado com seu jeito dantesco de se movimentar, seus olhos atentos observando as pessoas que se encolhiam quando se aproximava. Divertindo-se vendo o pânico na face daqueles que eram escolhidos.

- Você! – agarrou o jovem de aparência asiática – Vamos ver se esta ovelha pode virar um lobo!

Em meio aos berros de pavor, o homem foi arrastado até uma galeria mais profunda da grande caverna. Tentou resistir, mas facilmente suas mãos e pernas foram amarradas para trás. Borr se aproximou com uma grande seringa, da agulha grossa pingava um líquido preto e espesso. O jovem se debateu desesperado ao ver o triste destino que lhe aguardava.

– Calma! Você foi escolhido, em breve você será como eu.

Com um baque seco a agulha foi cravada no coração do pobre infeliz. Assim que o líquido foi injetado, seu corpo começou a tremer descontrolado, sua coluna foi tensionada para trás num ângulo praticamente impossível, sua respiração ficou acelerada, espasmos involuntários atingiram seus membros, seus olhos ficaram completamente negros e subitamente seu corpo todo relaxou como se entrasse em um sono profundo.

“Somente mais alguns dias e quando acordar teremos mais um irmão” – pensou Borr enquanto se preparava para selecionar mais uma vítima.

*****

...Hulha Negra...

A grande pira funerária estava pronta, os corpos de Pedro, o filho, o Regente e os outros dez protetores um ao lado do outro no centro do pátio. Todos os sobreviventes de Hulha Negra estavam presentes, em um silêncio respeitoso acompanhavam a cerimônia de despedida de seus heróis.

Com a voz embargada, Tito falou algumas palavras em homenagem aos homens e ao pequeno Tiago, que estaria sempre presente em suas orações.

Com uma tocha, coube ao Guardião da História de Hulha Negra acender a pira. As chamas começaram tímidas, para em seguida suas labaredas ficarem cada vez mais altas e vigorosas.

Foi neste momento que algo estranho começou a acontecer, ao olharem para Tito, parecia que ele estava em transe. Seus olhos haviam ficado completamente brancos, seu corpo tremia levemente como se estivesse submetido a uma pequena descarga elétrica. Suas mãos espalmadas e os braços estendidos em direção aos corpos.

Muitos estavam surpresos, mas alguns poucos presentes já tinham visto isto acontecer com Tito – seu dom se manifestando – ele era capaz de curar pequenos ferimentos, além disso, as pessoas ficavam um pouco mais fortes do que antes. Mas era raro acontecer, e Tito ficava extremamente fraco, como se suas forças fossem sugadas.

As labaredas chegaram aos corpos, mas ao invés de queimá-los, nada aconteceu. Era como se as chamas fossem como vento em contato com as árvores. Uma fumaça densa cobriu as piras funerárias como uma cortina, tapando completamente a visão.

Ainda em transe, com sua voz parecendo vir de todas as direções, Tito começou a falar – Existe o bem, e existe o mal. Assim foi, e assim sempre será. Tudo que vive, pode acabar. Tudo que morre, pode voltar. Para combater um grande mal, um grande bem surgirá – após proferir as palavras, Tito desfaleceu completamente extenuado, sendo acudido por Vitor que o amparou com os braços antes que batesse no solo.

Por alguns instantes de silêncio absoluto, nada aconteceu... Em seguida, alguns sons foram ouvidos, como estalidos de gravetos ao serem quebrados. Através da névoa, o primeiro dos renascidos surgiu imponente. A grande cicatriz na face esquerda do homem negro não deixava dúvidas, era André, o primeiro dos protetores que havia sido morto na frente de Pedro. Um a um, os outros nove guerreiros surgiram. Os olhos claros, quase brancos, não era a única coisa que havia mudado, pareciam maiores, mais fortes do que antes. Uma brisa suave começou a soprar, dissipando lentamente a névoa que havia se formado e limpando o campo de visão. O corpo do regente continuava imóvel sobre a pira, na outra extremidade, Pedro estava agachado, segurando nos braços musculosos os restos mortais do filho enquanto lágrimas surgiam de seus olhos agora quase brancos.

*****

Vitor, Pedro e os outros dez renascidos, estavam reunidos com Tito no salão principal. Mesmo bastante debilitado e com dificuldades para respirar, o Guardião da História de Hulha Negra ainda encontrava forças para falar.

– Pedro, me perdoe, eu fiz de tudo para trazer todos de volta, mas Tiago e o regente eu simplesmente não consegui – disse Tito com a voz entrecortada.

– Não há o que perdoar meu bom amigo, eu sei muito bem disso! Nada disso é culpa sua, e sim daqueles demônios...

– Senhores, sinto muito que tenha que ser assim. Mas precisamos agir agora, temos pouco tempo – disse Vitor – eu vi através dos olhos da besta, sei onde é o covil – estão abrigados na velha mina de carvão. Precisamos libertar os sobreviventes das duas províncias enquanto ainda temos chance, eles não vão durar muito tempo.

– Ir atrás destas bestas é tudo que mais quero na vida – disse Pedro, sendo imediatamente apoiado por André e todos os outros renascidos.

– Vocês tem que partir agora, ainda durante a noite, precisam chegar nas cavernas ao amanhecer – alertou Vitor.

– Antes de partir há algumas coisas sobre as quais precisamos conversar, vocês não estão apenas mais fortes, vocês agora tem alguns dons que no momento certo irão se manifestar – disse Tito – contando tudo que os renascidos precisavam saber.

*****

Montando cavalos, todos de preto, usando roupas de proteção especial do exército que lembravam armaduras modernas, armados com pistolas automáticas e espadas na cintura ¬– sob o olhar cheio de esperança dos moradores da província, assim partiram os renascidos de Hulha Negra.

Já estavam cavalgando há um certo tempo quando André quebrou o silêncio.

– Puta que pariu! Se metade do que Tito falou for verdade, aqueles filhos da puta terão uma bela surpresa! – disse ele com a avalanche de palavrões que eram característicos de seu nada sutil vocabulário.

– Considerando tudo que aconteceu desde que estes demônios apareceram, não duvido de nenhuma palavra, neste Novo Mundo cada vez mais estranho, creio que nada é impossível – respondeu outro.

Pedro nada disse, com os calcanhares, apenas incitou seu cavalo a galopar ainda mais depressa. Tudo que sentia era um imenso vazio no peito e uma raiva crescente prestes a entrar em erupção.

*****

Faltavam poucos minutos para amanhecer, Borr, o segundo no comando, estava com outros cinco Filhos da Noite na entrada principal da caverna quando os avistou.

A poucos metros da abertura, onze homens estavam enfileirados lado a lado, com uma pistola em uma mão e a espada na outra.

Incrédulo com a ousadia e estupidez daqueles seres inferiores, Borr estava prestes a ataca-los quando lembrou-se das palavras de Gazo “não vamos mais subestimá-los..”. Decidiu não arriscar e enviar dois de seus lacaios:

– Matem-nos! Mas sejam rápidos, já vai amanhecer e pode ser alguma armadilha para atrairmos para fora.

As duas feras começaram a urrar furiosas. Curvaram-se ficando de quatro e dispararam velozmente em direção aos homens.

Os renascidos sacaram as espadas. Não sentiam medo, apenas raiva, em seu estado mais puro e irracional. Pedro brandiu sua lâmina prateada, agitando-a para cima e para baixo. Apertou os lábios, seu coração disparado. Não via a hora daquilo começar.

André passou o fio da espada no cano da pistola, apenas para ouvir o doce som de metal contra metal, em seguida, ansioso, cortou o ar repetidas vezes.

Os Filhos da Noite continuavam vindo como cães infernais, não reduzindo a velocidade frente a postura ousada dos renascidos. Estavam a poucos metros agora, rugindo de forma sedenta.

Pedro fez menção de dar um passo à frente, mas foi impedido pela mão de André em seu ombro: – Estes bichos foram os que arrancaram meus braços! Eles são meus...

André ergueu a pistola e correu cinco passos a frente, efetuando um tiro certeiro entre os olhos de uma das bestas. A segunda continuou a investida e deu um bote ao se aproximar. André retrocedeu os passos que deu em velocidade fantástica e ao esquivar-se, usando a espada cortou a cabeça da besta em pleno voo, com o monstro caindo estatelado aos seus pés.

Atônito com o que via, com dois irmãos sendo mortos por apenas um homem, Borr e os demônios restantes dispararam caverna à dentro, não sem antes experimentar um dos sentimentos mais antigos da humanidade: o medo.

Quando o sol começava a nascer, os renascidos mergulhavam na escuridão do covil, seus olhos emitindo um brilho intenso, ágeis e insanos, atacavam e destruíam os demônios com tiros, talhos e as vezes até mesmo com as mãos. Como Tito havia dito, seus poderes iriam se manifestar sempre que encontrassem algum dos demônios.

Gazo avistou a linha de guerreiros. Eles mantinham a posição, brandindo suas espadas. Um dos homens, com ira insana abandonou sua posição e avançou contra a besta, com velocidade impressionante e olhos faiscando de luz branca.

O renascido viu Gazo desviar-se de sua espada que apenas roçou na face do demônio. Havia levantado demais a espada deixando seu flanco aberto. Com as garras, Gazo desferiu um golpe em sua cabeça. Desequilibrado, Fábio caiu de joelhos. Em uma fração de segundos, o demônio estava às suas costas lhe agarrando pelo queixo e os cabelos.

Pedro sentiu o ódio transbordar ao ver o amigo tendo a cabeça arrancada. Os outros guerreiros ensandecidos, mandaram uma saraivada de balas em direção ao líder das bestas, o demônio desviou-se habilmente e agarrou a espada de Fábio.

– Não atirem! Ele é meu! – Gritou Pedro para os companheiros.

A besta atacou utilizando a espada desta vez. Pedro desviou para o lado deixando a fera atingir apenas o ar. Pedro desceu sua espada com fúria sem nada atingir. Porém, ao desviar-se – ainda impressionado com a velocidade do golpe – Gazo caiu no chão. A besta virou-se rapidamente e encarou seu oponente. Seus olhos cintilaram, consumido pela surpresa e pela fúria.

– Você! – berrou Gazo – Eu te matei!

– Sim, e agora eu vou matar você.

Pela primeira vez, o líder dos Filhos da Noite sentiu medo, estremeceu ao ver a lâmina riscando o ar e descendo pesada e certeira. Não sentiu mais medo. Não sentiu mais nada. Gazo, o poderoso líder dos Filhos da Noite morreu.

*****

A caminhada de volta foi dura, mas depois de alguns dias, sob o sol, os renascidos entravam nos portões de Hulha Negra trazendo consigo os homens, mulheres e crianças que pensavam estar mortos. Até mesmo alguns provincianos de Rios de Cima haviam sobrevivido.

Pedro não conseguia disfarçar a tristeza em meio a tanta alegria, a vingança não tinha aplacado em nada a dor pela perda do filho.

Foi quando viu Vitor ao longe na campina de mãos dadas com um menino. Não acreditou no que seus olhos viram. Disparou em direção à Tiago que corria sorrindo ao seu encontro.

Foi indescritível o que sentiu ao abraçar o filho.

– Papai, tive um pesadelo horrível. Que um monstro havia me matado...

- Eu também tive o mesmo sonho, mas agora esta tudo bem campeão...

– Como? – Pedro perguntou para Vitor.

– Após você sair, Tito tentou mais uma vez com o garoto. Ele conseguiu!

– Graça a Deus, eu já tinha perdido todas as esperanças. E o sonho?

– Isso fui eu, quando ele acordou entrei na mente dele e o sugestionei. É fácil com crianças, além disso, uma tragédia dessas é algo que ninguém deveria lembrar, muito menos os pequenos.

– Obrigado Vitor – nem sei o que dizer – onde está Tito? Preciso agradecer a ele?

Vitor baixou o olhar antes de falar – Sinto muito Pedro, ele já estava muito fraco e o esforço foi demais para ele! Tito morreu!

Pedro nada respondeu, nem se quisesse ele conseguiria. Apenas olhou para as campinas, as pessoas que haviam sido resgatadas, para o pequeno Tiago que brincava ao seu lado e agradeceu a Tito em pensamento. “Espero que agora tenhamos um pouco de paz”.

*****

...O Covil...

Nas profundezas da caverna, em um ponto que não tinha sido descoberto, Borr observava impacientemente os corpos que estavam em hibernação... “Até que enfim” – pensou ele quando finalmente o primeiro dos novos Filhos da Noite abriu os olhos.

*****

[...] e assim foi a batalha de Hulha Negra e a chegada dos renascidos. Em nosso íntimo sabemos que os Filhos da Noite ainda podem existir, mas os dez guerreiros da luz sobreviventes nos darão proteção. Eles tem dons especiais que se manifestam quando enfrentam as bestas, e assim, os renascidos são ainda mais poderosos que os demônios. Mas não são muitos e ainda não sabemos se outros surgirão. Ao menos agora temos uma esperança verdadeira que o bem será mais forte que o mal. Somente Pedro ficará em Hulha Negra, os demais serão enviados cada um para uma província como protetores.

Neste ciclo que esta iniciando, o Novo Mundo agora é um lugar místico, onde as forças do bem e do mal encontram diversas formas de se manifestar. Tenho muitas saudades do meu antecessor, e no meu íntimo penso que ele ainda nos fará muita falta em futuras batalhas que com certeza virão.

Com este registro, cumpro aqui meu dever.

Vitor Malta – Guardião da História da Província de Hulha Negra – Novo Mundo

22 de maio de 2131

*****

EPÍLOGO

...Muitos e muitos anos atrás, durante a época da grande onda de calor...

...Base Militar Secreta – Rio Grande do Sul – Brasil...

– Comandante, os testes com o novo soro falhou novamente. Perdemos os últimos voluntários, não temos mais ninguém.

– Meu Deus, estamos tão próximos de descobrir uma forma de tornar a humanidade mais resistente... As pessoas estão morrendo como moscas com este calor e as projeções do que estão por vir são ainda piores. Podemos estar a beira da extinção....

– A mistura do gene de vários animais, principalmente por causa das características do tubarão realmente os deixa mais fortes... o problema esta no controle... acabam atacando até mesmo o próprio grupo, fora as mutações e o desejo por carne...

– Não vou desistir agora que estamos tão perto. Vamos injetar o soro em mim, eu vou conseguir controlar os instintos!

– Tem certeza disso Comandante? O que seu filho pensaria disso?

¬ Meu filho também é militar, é integro como eu, mas Pedro nunca iria aceitar os riscos do que estamos tentando fazer aqui. Ele não sabe nada do projeto e se algo der errado digam que morri. Preparem tudo!

– As suas ordens General!

FIM

TEMA: DOENÇAS!

Maddox
Enviado por Maddox em 12/09/2015
Reeditado em 06/10/2015
Código do texto: T5380041
Classificação de conteúdo: seguro
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