o canto da cigarra

Não havia outro ruído a não ser o da cigarra que havia começado sua primeira e última serenata, seu último suspiro. Fiquei acompanhando, inerte, salvo algumas profundas tragadas de um poderosos cigarro. Era madrugada, tão abafada quanto o berro da cigarra. Pergunte-me se o artrópode tinha consciência que aquele seria seu último apelo à humanidade dos insetos. Quem liga para as cigarras?

O canto parecia ganhar amplitude, assim como a ansiedade que crescia dentro de mim, em um ritmo exponencial. O quanto aquele canto, aquele cri-cri, iria durar me fazia tremer por dentro, aquele seria o fim da existência daquele bicho, ele nunca mais iria viver, iria morrer, virar comida alheia, para outros insetos, para os decompositores de artrópodes.

A cigarra continuava a cantar, eliminava sua angustia através daquela serenata maravilhosa, um recorro à toda humanidade de toda agonia que ela havia vivido até o momento. Todas as noites que aquela cigarrinha passara em claro refletindo sobre a vida, todos os minutos que sofrera de insônia, toda a vida que não foi vivida.

O canto ainda perdurava e a ansiedade atingia o seu pico. Perguntava à mim mesmo se a minha ansiedade era igual à da cigarra, cheguei à conclusão que não. A minha era infinitamente menor que a dela. Eu não estava lá, na minha sacada, no meio da madrugada abafada, sôfrego, para morrer, mas ela estava, no seu cantinho, mato adentro.

Eu mal sabia onde essa cigarra estava, mas seu canto era tão audível e tão uníssono que me fazia querer procura-la. Inalei mais uma bocada de cigarro e o canto parou.

A cigarra havia morrido, fim da sua existência.

A verdade é que as cigarras, depois de seus cri-cri, não morrem de fato, apenas trocam de carcaça. É exatamente o que ocorre com a atual humanidade, fútil, porém útil.

Nathus
Enviado por Nathus em 22/10/2015
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