Eu Conheço Você

Estou distraído olhando para o acidente. È constrangedor ver tanta gente, de tantos lugares, correndo para olhar o que parece ser a desgraça de outros. O vendedor de cachorro quente, desviando de sua ocupação habitual apareceu para dar uma “espiadela” e tecer alguns comentários, como: “Tanta correria só poderia dar nisso”. Os lojistas também correram para ver o espetáculo juntamente com seus clientes, abandonando as promoções de ponta de estoque, todos balançando as cabeças e soltando seus melhores pesares, enquanto os paramédicos esperam os bombeiros soltarem os corpos das ferragens retorcidas.

Não sei se sobreviveu alguém na colisão entre o porshe e o celta. Admito que por alguns instantes o acontecimento prendeu minha atenção, mas tenho outros afazeres, como, vender mais coca por aí. E pensar que aquele motorista do porshe poderia estar usando o meu produto enquanto dirigia... Mas sinto um cheiro estranho vindo dali, algo indefinido e meio nauseante como mofo em uma construção atacada pela umidade.

Deixa isso pra lá, sou um sujeito ocupado, tenho que negociar mais um carregamento de coca vindo de Santa Cruz de La Sierra. Ouvi dizer que vários mulas morreram para conseguir passar este produto. Não me importa. Se estão nesse negócio têm que correr os riscos. Com apenas um quilo posso faturar alguns milhões. Não me importa se os consumidores finais morrerem de overdose. O Mundo é assim, é preciso existir os idiotas para que os espertos possam viver. E, depois, tenho que pagar a ultima prestação do iate. Também tenho que me preocupar em conseguir novos fregueses para a mercadoria oferecendo algumas festas funk regadas a uísque e cocaína. Só com gente da alta que pode pagar caro pelo vício.

Estes otários têm uma vida muito boa, com o papai comprando tudo o que eles querem e não precisam, enquanto as patricinhas saem de suas mansões luxuosas para o mundo do tráfico dançando funk a noite toda. Nunca vou me envolver com uma garota que goste de ser chamada de cachorra. Tive que batalhar desde cedo, traficando crack na esquina a noite para pagar as contas de casa. Meu pai morreu na cadeia, atacado por uma facção rival, quando eu ainda era criança. Ele era traficante e usuário de crack. Ele era burro. Eu não. Apenas trafico, nunca uso o produto. Estes almofadinhas ricos é que pagam todos os meus carros, meus iates, minhas festas, meus ternos caros e meu uísque importado, e quando estão no fundo do poço viciados e sem mais dinheiro da mesada do papai para pagar a cocaína, sempre podem roubar na rua para comprar crack. O crack é para os fudidos que não têm mais dinheiro, e assim morrem rápido. Quando um viciado em cocaína decai para o crack, é o fim da linha para o otário. Tudo bem, quando chegam a este ponto já perderam a utilidade, e sempre têm mais filhinhos de papai prontos, que não recebem a atenção do papai e da mamãe e que podem me dar lucro.

Abro meu terno Armani que parece manchado com alguma coisa, parece sangue, não deveria ficar tão perto do acidente. Procuro por meu celular para fazer uma ligação, mas não o encontro, devo ter esquecido em casa. Tudo bem... estou perto, só mais algumas quadras e chego ao encontro.

Humm! Sinto aquele cheiro novamente, cheiro indefinido, as vezes parece borracha queimada, outras vezes algo mais improvável, como inseticida. Vai ver fiquei impressionado com aquele otário do porshe encolhido dentro do carro espirrando sangue, cujo rosto não consegui ver. Esses otários não deveriam ter carteira de motorista, já que estão sempre chapados. Mas eu não estou neste mundo para criticar ninguém, estou aqui para recolher os lucros. E se dá para ter lucro com estes cérebros de geléia ao volante, melhor eu primeiro que algum concorrente.

Na esquina vejo um Mané, um mendigo agachado com uma caixa de papelão por cobertura, enquanto fuma mais uma pedra de crack. Este deve ser mais um da alta que de repente se viu sem dinheiro para o vicio. Eu deveria ter pena dele? Por ele ser tão fraco a ponto de não enfrentar as dificuldades e se entregar ao vício? Melhor assim... ter uma morte rápida se chapando do que viver as agruras de um mundo cruel e competitivo. Pelo menos eu consegui me dar bem nesta vida, não posso reclamar. Estes otários me financiam uma vida e tanto. Já paguei a faculdade de minha irmã na melhor universidade particular do país, comprei uma cobertura num apê para minha mãe e posso ter a mulher que desejar, modelo ou atriz famosa, todas caem na minha mão, o resto do mundo que se dane.

Caminho tranquilo enquanto passo por pessoas de todos os lados correndo para ver o grande acontecimento. Noto sombras indistintas como a me seguir, e aquele cheiro fétido vem novamente carregado pelo vento. Esta cidade toda é um grande lixão, cheio de ratos de duas pernas que se espremem para tentar passar a perna uns nos outros, e obter mais alguns trocados para mais uma pedra. Não me agrada andar por aqui, me sinto melhor em minha nova mansão, mas tem coisas que não se pode confiar a simples capangas. Afinal, eu mesmo já fui um capanga e passei a perna em muita gente para hoje ser rico e ter influência. Ainda tenho que dividir a propina entre políticos, policiais, juízes e mais gente que se esconde por trás da fachada de “gente honesta”.

Que horas serão agora? Num movimento reflexivo levanto meu pulso para ver as horas em meu rolex importado, e aí percebo que não o estou usando, assim como minhas correntes de ouro. Será que esqueci tudo em casa? Estou ficando com a memória ruim. Deve ser esta vida estafante, sempre preocupado com todos os detalhes e sempre desconfiando de todo mundo. Quando terminar aqui vou passar na farmácia e comprar algumas vitaminas, preciso estar sempre em forma física e mental para enfrentar toda a gente deste submundo. Um passo em falso e alguém me passa para trás.

Finalmente cheguei ao ponto de encontro, e lá estão os “caras”, esperando, com jeito desconfiado.

- E aí pessoal, espero que não tenham esperado demais, fiquei detido por algum tempo num acidente aqui perto, e... – Noto que eles parecem alheios à minha presença, como se não estivessem me vendo. Aceno os braços, mas eles parecem não notar. Que tipo de brincadeira estão armando para cima de mim?

Repentinamente o ar fica mais gélido e o cheiro que eu senti por todo o trajeto, volta de maneira sufocante. No beco à minha frente, uma sombra escura toma a forma de um homem. Um velho, de cabelos grisalhos e um sorriso nos lábios. Ele parece ser o único a me ver aqui no beco. E eu não resisto.

- Ei, quem é você? O que está fazendo aqui? Não vai me dizer que é cana.

- Eu sou Radamante.

- Quem? – de repente parece que o homem assume um tom sinistro em sua voz e se agiganta quando se aproxima de mim.

- Eu sou aquele que julga os mortos.

De repente o acidente lá atrás vem à minha mente como num flash e eu vejo claramente o rosto do motorista do porshe. Sou eu. Eu estou morto. O pânico me invade, os pelos de minha nuca se arrepiam diante do estranho homem. È quando eu finalmente reconheço que cheiro é este que estive sentindo. È enxofre. O homem à minha frente que diz se chamar Radamante se transforma. Chifres crescem em sua cabeça, um rabo pontudo agora é visível e asas de morcego esvoaçam. Não consigo me mexer de tanto terror.

- Talvez você me conheça por esta outra forma. – diz a criatura enquanto sombras vindas não sei de onde me envolvem.

Só tenho tempo para um ultimo grito.

- Nããão...

E este grito morre em minha garganta enquanto sou carregado para as trevas.

...Fim...

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 26/10/2015
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