O MISERÁVEL

O miserável

Por Fernando Silva

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Na velha casinha à beira da praia sob a lúgubre lamparina que se via pelas frestas, os vultos já diminuíam, posto que era mais ou menos oito da noite. Não era costume dormirem tão cedo, mas aquele dia fora especialmente cansativo. Havia a família inteira se empenhado em abrir a “caeira” e coletado seis sacas de carvão de mangue. Todos estavam exausto e as crianças maiores já se recolhiam. Na cozinha permaneciam ainda a mulher, o marido e a filha caçula.

Haviam jantado e a jovem senhora pusera o que restara acondicionado nas panelas sobre o fogão e coberto com um belo guardanapo bordado em ponto cruz, que de linha vermelha, imitava uma revoada de guarás. Ganhara-o de presente de casamento. Fazia aquilo como num ritual inconsciente, como se preparasse a mesa para o jantar. Sequer se dava conta do que fazia, pois, nem percebera que tirara aquele pano especial. Não o havia tirado do armário desde o dia em que ganhara. Dizia que só o usaria numa ocasião muito especial. Quem sabe no batizado da caçula, quando o padre viesse tomar um café à convite. Entretanto, não se dera conta do que fizera naquela hora. Quem sabe por estar em demasia cansada.

Tão logo terminara sua tarefa, ainda correu a vista no alguidar sobre o jirau para ver se estava cheio de água, pois pensava em levantar cedo para lavar roupas e, se não, precisaria ir ao poço tão logo acordasse, visto que este era longe de casa. Não podia atrasar com os afazeres. Conferiu, pois, tudo e visto que o alguidar estava cheio, cobriu-o com uma pequena esteira de palha de babaçu; tomando a lamparina de cima da mesa e dirigira-se ao quarto.

O marido e as crianças já ressonavam. Tinha o casal três filhos entre dez e seis anos. A caçula dormia sobre o peito do pai ao acalanto de uma melodia sussurrada sem letra. Dormiam em uma rede à entrada do quarto; os dois meninos cada um suas redes ao fundo; a esposa armara a sua ao centro do quarto junto à do marido. Apoiara a lamparina sob uma pequena mesa ao canto do quarto; recitava o ângelus, pois não dormia sem sua devoção, quando escutou uma voz que se fazia acompanhar de palmas:

- Dona Maria! Oh dona Maria!

Ela assustara-se. Não reconhecera a voz, mas pensou se tratar de algum vizinho. Lembrou-se não ter vizinhos, pois o marido insistira em construir a casa próximo de uma campina, retirada e a certa distância do pequeno povoado. Uma vila de pescadores no litoral bragantino. A voz havia cessado e não se ouvia lá fora ruído algum. Pensara ter adormecido em meio à oração e sonhara de repente. Convencida, pois se deu, e deitou-se na rede retomando a oração quando novamente ouviu aquele chamado.

- Dona Maria! Boa noite, dona Maria!

Agora não restava dúvida; alguém estava a chamar. O marido ressonava e ela o acordara dizendo que tinha alguém lá fora. Ele de súbito, ainda sonâmbulo, sentou-se à beira da rede e acomodando a filha que permanecia dormindo; ergueu-se e tomando a lamparina que estava embaixo da mesinha; dirigiu-se até a porta e abrindo-a perguntou quem era.

Aproximou-se dele um homem já de meia idade com o rosto visivelmente marcado pelo tempo. Estava com uma pequena sacola à mão e cumprimentando-o pediu que lhe desse um copo d’água. O marido dormente, sequer questionara de quem se tratava. Ouviu aquele pedido como uma ordem e também convidara o desconhecido a entrar. a esposa permanecia no quarto, mas ouvia o que conversavam os dois homens. Ouviu claramente quando o homem disse:

- Chame sua senhora para cá! Venho de longe e além de sede tenho muita fome!

A mulher levantou-se rapidamente e foi até a cozinha onde os dois estavam já sentados à mesa. Saudou o desconhecido com um boa noite sonolento e, como se o conhecessem de longo tempo, passou a servi-lo; tomou a lamparina e reacendeu as pedras de carvão em brasa que jaziam à cinza no fogão; em pouco tempo passava um café, enquanto o marido e o estranho conversavam como conhecidos de infância. Estavam o marido e a esposa como que sob o encanto daquele visitante.

Ela perguntara se o homem teria jantado ao que ele respondera que não. Serviu-o o restante da comida que havia deixado do jantar. O homem comia como se o fizesse pela primeira vez em semanas; tinha os olhos fundos e as mãos ressecadas. A pele enrugada e tostada pelo sol deixava quase visível os ossos de seu rosto e de seus braços. Falava mansamente como se a voz fosse definhar a qualquer instante. Tomava bastante água enquanto comia como um animal voraz. O marido notara que o pote já estava completamente seco.

A esposa passara o café e colocara sobre a mesa. Preparava-se para voltar ao quarto quando o homem perguntou se ele poderia dormir ali naquela noite. Sua canoa havia se soltado de onde deixara amarrada e não sabia como iria fazer para voltar para o lugar de onde viera. Dizia o tal que viera de muito longe; amarrara a canoa na entrada do igarapé ali perto e descera para apanhar lenhas na beirada e quando retornou à canoa esta havia se soltado; como já era noite, resolvera pedir abrigo até a manhã seguinte quando sairia à procurar.

O casal nada questionava, apenas assentiram com a cabeça; a esposa foi até o quarto e acomodando um dos meninos à rede junto d’outro, desatou uma das redes e a trouxe para atá-la na cozinha para que o desconhecido dormisse. Não ousavam eles recusar abrigo a ninguém, nem mesmo a um estranho.

O marido atou a rede e afastou a pequena mesa para acomodar melhor o homem que agradecia e pedia que não se incomodassem tanto com ele. Antes que o casal retornasse ao quarto o homem olhou nos olhos de ambos e sombriamente sorriu; pediu ainda à mulher que lhe desse aquele belo guardanapo, ao que a jovem não ousara negar. O homem ainda pediu o que restara de água no pote e o café que estava no bule, acabou de consumir, só então se deitou.

O casal voltou para o quarto e o marido logo dormiu. A mulher estava sonolenta e logo se deitou, mas não conseguira dormir de todo. Algo a incomodava, porém não atinava o que seria; de olhos fechados, recitava novamente, agora em silêncio, o ângelus. Sentia-se tomada de uma grande paz sempre que o fazia.

Não possuía relógio, mas ouvira ela quando o galo cantara ao longe. Certamente já se dava perto da meia-noite. O silêncio era tamanho que se ouvia também o murmurar das marolas lá na beirada distante da praia. A maré vazava e os arrastadores de camarão deveriam passar por ali a qualquer instante, como era costume acontecer.

Uma sonolência agora tomava conta da moça e ela, por alguma razão, insistia em ficar acordada. Já terminara de recitar sua oração predileta, mas de certa forma, estava encantada com aquele homem que dormia na cozinha; pensava nele como se já o conhecesse de muito tempo; o pensamento era tal que seu coração palpitava mantendo-a, ao mesmo tempo dormente e lúcida.

O galo anunciou a madrugada pela segunda ou terceira vez. Sabia ela que já devia passar da meia noite. Virou-se calmamente na rede buscando uma posição confortável para finalmente adormecer. Como num arrebatamento repentino sonhava caminhando por uma densa mata rodeada de passarinhos que vinham cantar à sua volta. Agora todos dormiam e a pequena lamparina posta à porta iluminava a entrada do quarto e parte da cozinha. Tremulava ao sopro suave de um vento frio que penetrava pelas frestas da casa.

Subitamente a jovem senhora foi acordada por um gemido como que de um animal agonizando. Assustada, seus olhos buscaram as crianças e o marido que dormiam profundamente. Pensara que estivera talvez sonhando. Manteve-se quieta na rede e, olhando em direção à cozinha, pode ver claramente quando o visitante levantara-se e dirigiu-se até a porta do quarto, como se buscasse algo. Passos largos, porém muito suavemente. Não fazia barulho algum. É como se não pisasse o chão.

Ele fingiu dormir e mantendo-se quieta, observava o homem e o que pretendia. As chamas avermelhadas da lamparina revelaram um rosto macabro. Tinha uma feição cadavérica e um olhar sinistro. Um pavor tomou conta, acompanhado de um frio repentino, da jovem senhora. O homem olhou sobre todos os que dormiam e saiu do quarto rapidamente. Dirigiu-se à cozinha e, apesar da pouca luz, a moça pode ver quando este tirou a camisa e deixou à vista suas costelas. Através delas se podia ver tudo o que o homem havia ingerido.

O assombro tomou conta da alma da jovem mulher e parecia dominar a casa inteira. O visitante foi até o pote e lá vomitou toda a água que havia tomado à hora do jantar. O mesmo se deu quando ele se dirigiu ao fogão e também vomitou dentro das panelas tudo o que comera. Repetiu assim, também, com o café que havia tomado.

Terminada aquela cena macabra o homem retornou para junto da rede em que dormia e antes de deitar tomou a camisa e vestiu-se. A mulher observava tudo aquilo tomada de um pânico e um silêncio profundo. Antes que o homem vestisse sua camisa, ela notara que seu corpo estava como que de um cadáver mumificado e nada mais havia em seu estômago. Tudo o que havia consumido agora estava de volta aos seus recipientes. O homem, finalmente, deitou-se e dormiu. A mulher ouvia agora apenas sua respiração ressonando.

E moça, entretanto, não conseguira mais achar o sono. Seus olhos estavam secos e fitos em direção à rede do estranho visitante. Ela estava assustada com tudo o que presenciara e pensava em acordar o marido para que atacassem o estranho enquanto dormia. Sabia agora que não era um homem comum. Tratava-se de uma criatura horrenda com aspecto diabólico. Estava perturbada e não sabia o que diria ao esposo. Também temia que ao acordar o marido o estranho também acordasse e atentasse contra eles e as crianças que dormiam profundamente. Decidiu-se por aquietar-se e tentar rezar. O medo havia se apossado da moça tal que nem mesmo as palavras de sua oração predileta ela lembrava. Ouvira o galo cantar ainda uma vez e adormeceu profundamente em seguida.

Era seis e meia da manhã quando o marido puxando pela beirada da rede da esposa tentava acordá-la. Estranhara que ela ainda dormisse, pois era costume ela levantar-se antes dele; Por doze anos havia sido assim. Dessa vez ele e as crianças já estavam todos de pé; a moça dormia. O marido pensara que ela estivesse abatida por alguma febre. Tocou em seu pescoço com a costa da mão para sentir a temperatura; não notara nada diferente; deixou que dormisse um pouco mais.

O marido foi até a cozinha e notara a rede em que dormira o visitante, dobrada e pendurada a um canto. Não havia dele sinal algum na cozinha. Tudo estava no lugar como havia estado antes de terem se recolhido. As crianças acotovelando-se à mesa, já se preparavam para tomar o café que encontraram no bule sobre a mesa. Estavam arengando por causa dos copos quando a mãe saindo do quarto gritou para que não tomassem aquele café. As crianças contrariadas atenderam aos apelos da mulher.

Ela tomou o bule e foi até o jirau para lançar o café fora. Buscava também o marido que devia estar no quintal. Antes de jogar o café fora notara que este estava com cheiro e aparência de café ainda fresco. Olhou, porém para o fogão e, não vendo sinal de fogo, sabia que houvera coado aquele café à boca da noite. Lembrava-se que o estranho visitante havia tomado todo o café antes de deitar-se. Não podia compreender como isso era possível.

Foi até o fogão e viu as panelas cobertas com o guardanapo atado, do mesmo modo como havia deixado. Não acreditava em que seus olhos viam. Abriu as panelas e lá estava toda a comida, intacta como deixara após terem jantado; era costume da família, deixar o que sobrava do jantar para comerem à hora do lanche no dia seguinte.

Correu a mulher até o pote e notara que estava cheio; toda a água permanecia lá, límpida como se acabasse de ser filtrada; estava confusa e aterrorizada. Tudo não passara de sonho. Dormira em demasia abatida pelo cansaço? Sentia uma estranha sensação. Não sabia o que pensar.

Estava envolta em seus pensamentos quando o marido retornou. Havia estado na beira do igarapé; saíra atrás do visitante, pois este deveria estar procurando sua canoa que dissera ter fugido à boca da noite. Porém, o marido nada encontrou se não alguns pescadores aos quais indagou se haviam visto o tal homem; eles não viram ninguém.

Agora a mulher e o marido estavam tomados de um medo e se perguntavam se não estiveram ambos, sonhado com aquilo tudo. Não acreditavam algo assim pudesse suceder. Duas pessoas não podem sonhar as mesmas circunstâncias. Buscaram ver a rede na qual o homem havia dormido; a rede estava dobrada e atada na cozinha; sabiam que a haviam atado lá; o marido lembrava até mesmo do nó que fez; tudo estava devidamente em seu lugar; nada havia sido furtado pelo estranho, nem mesmo mexido de lugar; a mulher mostrou ao marido o pote com toda a água, como se ninguém houvesse dele retirado um único copo; as panelas e a comida, tudo estava como haviam deixado; a cada constatação lhes tomava conta o espanto. Estariam ficando loucos?!

Perdidos em meio a tantos pensamentos e perguntas sem explicação, os dois decidiram jogar toda a água do pote fora bem como o restante da comida. Nada comentaram com os filhos naqueles dias. Decidiram também que a partir daquele dia não mais deixariam sobras de comida de um dia para o outro e cuidavam sempre de nunca deixar café no bule para o dia seguinte.

Por semanas o casal buscava por vestígios daquele estranho visitante, porém jamais encontraram dele sinal; é como se nunca estivesse estado ali; ninguém em toda a vila havia sabido do tal sujeito; os arrastadores de camarão, quando indagados se não teriam visto, diziam que não; diziam ter estado a pescar aquela madrugada inteira lá para aquelas bandas, mas nada viram de diferente; nem mesmo uma canoa.

Quase um ano havia se dado desse episódio, quando chegou à pequena praia uma montaria, vindo da Vila Taquandeua. Dois homens desceram à terra e um terceiro ficou à bordo; dirigiram-se até a casa daquele casal e pediram água para beber. Estava o homem sentado à porta e a esposa ocupada nos afazeres da casa. Os homens estavam de passagem por ali, precisavam de água e também comida, antes que seguissem viagem.

O casal estava assustado, pois um dos homens tinha certa semelhança física com aquele antigo visitante. O sujeito, inquietando-se com o olhar suspeito do casal, perguntou se havia algo errado com sua aparência. Havia notado que a mulher tinha nos olhos um assombro ao olhar para ele. A mulher assentiu com a cabeça confirmando que havia algo de estranho neles.

Os dois homens indagaram o que seria. A mulher e o marido, então, passaram a relatar a história que se havia passado com eles à cerca de um ano atrás; como haviam eles recebido certa noite a visita de um homem ao qual deram abrigo por uma noite e que desaparecera sem deixar vestígios desde aquele dia; e como ambos os senhores se assemelhavam com aquele estranho em aparência.

Agora estavam os homens tomados de espanto com a história. O mais velho pediu que o outro fosse encher uma bilha que traziam com água e levasse para a canoa. E que não deixassem a canoa ensecar; ao que o outro atendeu prontamente. O velho ficou conversando com o casal e aconselhou que daquele dia em diante não ficassem mais ali naquela casa. Que buscassem abrigo na casa de algum parente e se possível mudassem para outro lugar, distante dali.

Antes de partir o velho contara que teria ouvido uma história que se dera com outra família, nas mesmas circunstâncias e numa vila não tão distante dali; contou que o casal havia comido os restos que o estranho vomitara nas panelas, pois pela manhã imaginavam terem aqueles, apenas sonhado tais coisas. Dias depois ambos começaram a emagrecer e ficando muito doentes vieram a morrer.

- Ainda bem que vocês não comeram! Dizia o tal homem;

E ainda acrescentou:

- Saiam hoje mesmo daqui! Busquem abrigo na casa de alguém! Não fiquem aqui nem mais um dia!

Demonstrando muito pavor, o velho, ao despedir-se ainda revelou que o tal visitante era conhecido como miséria e que voltaria a visita-los se não saíssem dali; sabia ele que eles não deveriam ter sobrevivido e muito menos contado essa história a ninguém.

Tão logo o homem se retirou, o casal arrumou todas as coisas e mudou-se a casa dos pais da moça onde passaram a morar por algumas semanas. Três semanas depois a vila estava tomada de medo, pois alguns pescadores diziam que passando pela antiga casa do casal, algumas vezes avistavam lá um homem muito magro quase como um cadáver e que à porta chamava pelo nome do casal e gemia como um animal pedindo comida e água. Ninguém ousava ir lá para ver e poucos se arriscavam a ir pescar lá para aquelas bandas à noite.

A moça veio a falecer semanas depois, acometida de um surto de loucura que a fez beber um pote de água após passar um dia inteiro comendo como um animal insaciável. O marido resolveu mudar-se para um lugar distante dali com as crianças. Perambulava notívago numa noite e foi até sua antiga casa; veio a falecer ali em circunstâncias macabras, deixando seus filhos órfãos.

Até os dias de hoje se sabe que a vila avistava, de tempos em tempos, a gritar noites seguidas, um homem alto, magricela com roupas maltrapilhas à procura daquele casal. Os filhos do casal vieram todos a morrer acometidos de doenças inexplicáveis e a vila veio a ser destruída pela ação das águas de novembro; os habitantes que ali viviam retiraram-se para outras vilas distantes.

Carpina
Enviado por Carpina em 11/11/2015
Código do texto: T5445317
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