O SEBOSO dtrl 25

Como hábito inerente a moradores de pequenas comunidades, toda tarde por volta das dezoito horas, Nando se abalava indo ao pequeno alpendre de sua residência para observar o movimento da rua. Era uma das poucas vezes que dava o ar de sua graça. Recluso convicto, mantinha-se ilhado na antiga casa da família.

Dona Zélia, uma senhora cinquentona de pele clara e olhos azuis vinha três vezes por semana certificar-se da limpeza e de que nada lhe faltava. A muito deixara de ser apenas uma diarista, amiga antiga da família já prestava este serviço desde que o rapaz ainda menino perdera os pais e sem ter a quem recorrer ela permaneceu na lida.

Quarenta e seis anos já pesavam sobre os ombros do solteirão, isso sem dúvida se tornava irrelevante, pois o que o deixava tão arredio seria seus mais de cento e noventa quilos bem distribuídos pelo corpo atarracado.

Sua obesidade, diziam os populares era algo genético, seus avós eram fartos, sua mãe, coitada, antes do falecimento do marido também possuía um porte avantajado. Nando quando jovem saiu ao pai, arteiro estava sempre correndo pelos parques da cidade. Seu peso aumentou enquanto sua mãe de tristeza ia misteriosamente definhado. A solidão ajudava e a mulher emagrecia a olhos vistos, parecia ter perdido o frenético vício em comida que por sinal devia estar sendo transmitido como herança ao filho.

Até que numa manhã de feriado o garoto chorava no portão. Acudido por vizinhos, correram ao quarto da mãe que a muito deixava de ser vista. Mesmo sob a vigília de dona Zélia, em cima da cama, contraído, encontraram o cadáver murcho da mulher que outrora caminhava a passos lerdos tendo sempre ao alcance um bocado de guloseimas.

Quando a polícia e os médicos vieram remover o corpo, o Dr. Bernardo que sempre fora o médico da família e necessariamente de todas as outras do lugar uma vez que era o único, se assombrou com a penúria de sua antiga paciente. Encolhida parecia uma antiga múmia ressecada. A defunta mantinha os olhos vidrados mirando um ponto desconhecido da parede, seus braços flácidos prolongavam-se pra fora dos lençóis que removidos, mostravam suas costelas insinuando-se sob a pele, os ossos da bacia pareciam alças de uma velha jarra de barro.

Nando ficou só, com exceção das visitas da empregada. O tempo se passava e sua opção pela solidão aumentava tanto quanto seu apetite. Sendo único filho, herdou além daquela residência outras quatro em pontos privilegiados com altos alugueis que lhe rendiam mais do que necessitava para aplacar sua gula voraz.

Primeiro, comer ajudava a lidar com a perda. Frequentava sempre o pequeno restaurante local, mais tarde com lanchonetes e pizzarias sendo instaladas pela cidade seu leque de gulodices expandiu. Com o peso se acentuando sentiu-se estranho ante os olhares inquisidores das pessoas. O telefone ajudou bastante, além de evitar estranhos não lhe roubava calorias, um entregador passou a lhe servir com frequência. Quando seus dedos de tão grossos não cabiam no orifício de discagem, ele fez uso de uma caneta.

Depois de anos, além do hábito de comer em exagero, Nando agora nutria uma estranha curiosidade que o fazia sentar ponto todas as tardes naquela varanda. Desde o início do semestre, estava sempre de sentinela, seu ritual era praticamente o mesmo, arrastava-se até sua cadeira e com esforço ajeitava suas ancas no móvel que mal conseguia lhe sustentar. Minutos depois surgia na esquina a doce Magnólia desfilando simpatia em cada gesto, seu olhar de cobiça acompanhava-a até os portões do colégio.

A menina possuía atributos de moça formada, apesar de jovem parecia uma mulher já aos quinze anos, seu corpo de contornos sensuais embalavam os devaneios do admirador. O solteirão simplório sonhava recebê-la no altar.

Tendo que passar diante da varanda, com o tempo Nando criou pretextos para cortejá-la. Uma boa tarde... Parece que vai chover... Hoje fez calor... Quando não se tem o que dizer, ele enveredou por todas as frases comuns aos de pouca lábia.

Sua aparência grotesca afastava qualquer interesse, suas banhas explodindo para fora das roupas sob encomenda, suas bochechas rosadas emoldurando os pequenos olhos negros não despertava nenhuma comoção. O que atraiu a menina foram os doces. Fraca por chocolate a pobre criança aos poucos se sentia atraída para uma armadilha, como as formigas procuram o açúcar toda tarde ela apanhava ali sua cota de jujubas.

Dona Zélia foi a primeira a perceber o estranho comportamento de seu patrão. Não se preocupou logo de cara, até achou normal. Nando continuava o mesmo glutão de antes, apesar de seu apreço pelo ócio parecia ganhar mais desprendimento a medida que avançava em sua conquista. Durante os dias de faxina tornou-se um pouco mais aberto, sua curiosidade sobre os jovens aumentava, queria saber o que existia além da visão proporcionada por seu alpendre. Deixou de passar a quase totalidade do tempo em seu quarto, esgueirava-se pela casa, ia mais vezes a cozinha, até ameaçava sair ao jardim. Ela que a muito não via tal disposição começou a se preocupar.

Numa pequena cidade todos se conhecem, o jovem parecia ser mais conhecido que o próprio prefeito. De várias as alcunhas a ele imputadas talvez a que melhor lhe servisse fosse a de “Gordo Seboso”, certo que isso nunca lhe chegou aos ouvidos, se chegasse ele pouco importaria. Sempre que se olhava no espelho via exatamente o que desejava ser. Foi levado a acreditar que quanto mais gordo mais saúde tinha. Segundo seus conceitos, possuía um porte elegante e muito bem apessoado, por isso motivo da inveja alheia. A gentalha não o merecia, diferente era apenas a bela Magnólia, esta seria digna de seu amor.

Zélia teve seu dia de folga, em casa, na zona rural da cidade andou de um lado a outro matutando sobre o que deveria fazer. Tinha alguma coisa errada, se deixasse nas mãos do destino algo terrível poderia ocorrer. Quase não dormiu, perdeu seu descanso em meio a terríveis conjecturas, finalmente o despertador soou, caminharia um pouco até a estrada de chão batido onde o ônibus colhia os pobres de pés empoeirados como os dela.

Chegou no horário de costume, sabia dos hábitos do patrão. Antes que ameaçasse sair da cama teria no mínimo umas duas horas para desempenhar suas tarefas. E ela tinha algo especial a fazer, sempre tinha...

Sorrateira foi ao quarto do rapaz. Dominado pelo ócio dormia profundamente, mesmo se quisesse talvez o som de um copo caindo não poderia lhe acordar. Na mesinha ao lado da cama uma coxa de frango parcialmente devorada servia de repasto às moscas imundas, alguns outros insetos também cobravam sua parte no butim. Zélia aproximou sem dar atenção a tanta sujeira, se pôs ao lado da cama.

Não necessitou movimento algum. Apenas sua presença bastou para que embaixo das cobertas uma coisa estranha acontecesse.

O homem continuava dormindo, porém seu corpo reagia ao odor afrodisíaco exalado pela fêmea. Tomado por um frenesi, ondas espasmódicas surgiam sem padrões por toda aquela massa de banha, de longe parecia que alguém agitava um desses colchoes d água, um som típico fazia lembrar o borbulhar da goiabada no tacho.

Em resposta a estes movimentos adiposos, Zélia se sentou no pouco espaço que ainda restava. Puxou as cobertas que foram ao chão, abriu a camisa de pijama do sonolento patrão. Tomada pela luxúria pousou sua língua num dos mamilos do moço. A cada carinho recebido mais se agitava a geléia humana. O corpo do Seboso parecia a superfície de um lago em noite de tempestade.

O momento crucial chegava, parecia que toda aquela banha explodiria cobrindo o local de gordura. A cama rangia ante tanto peso, o fervilhar das células ressoava no ambiente. Ela sabia que seu amado estava prestes a despertar. Um sorriso mordaz brotou em seus lábios.

Lentamente algo bizarro acontecia, seu companheiro erguia-se do leito.

Nando não estava só. Enquanto o jovem arfava com dificuldades outra pessoa parecia desprender-se de seu corpo. Foi questão de minutos até os dois indivíduos separarem-se por completo. O patrão permaneceu inerte, sugava com dificuldade o ar para os pulmões, seu rosto cadavérico denunciava anorexia em seu grau mais avançado, como sua mãe, de forma tenebrosa perdeu rapidamente toda a massa glútea, pele e ossos ficaram como despojos sobre a cama.

Por outro lado, um ser ainda sem forma moldava-se a semelhança humana. Em deleite, Zélia acompanhava o processo. Uma criatura singular surgia a sua frente. Seus músculos esculpidos pareciam de um branco quase transparente, seus tendões e veias eram percebidos em torno dos os ossos ainda maleáveis. Em quase tudo se divergia de um ser humano a não ser por sua postura bípede. Sua face não possuía expressões, seus olhos amarelos destacavam-se contra a luz, nariz e orelhas não passavam de pequenos orifícios, pelos eram inexistentes. Depois de tanta agitação a criatura agora movia de forma lenta como se investigasse o local. Seu sorriso não possuía dentes, só a gengiva arroxeada.

Jubilosa, a mulher aproximou tomando a mão de seu cônjuge.

Amaram-se ali mesmo, ao lado do pobre Nando que se contorcia como um epilético. Foram três horas de amor animal tendo como testemunha apenas o rapaz que definhava à espera da morte. Isso os deixava ainda mais excitados.

O tempo fluiu como mágica, devia voltar ao hospedeiro caso contrário os dois sucumbiriam. Num beijo de despedida o verdadeiro Seboso despejou nos pulmões da diarista o seu quinhão da parte vital colhida do patrão.

Rejuvenescida, a mulher mantinha-se com os mesmos cinquenta anos que possuía ao se juntar àquela família, isso há mais de oitenta anos quando a mãe de Nando ainda era uma garotinha. Seu feromônio não servia apenas para despertar o Seboso, ele também iludia as pessoas tornando sua presença entre elas tão natural que parecia até nem existir.

Tão rápido como surgiu, a massa adiposa engoliu o pobre rapaz que em instantes voltou a ser o gordo de sempre, jamais se lembraria do ocorrido.

Seminua e plenamente satisfeita, a mulher cobriu o patrão.

Enquanto passava um café podia ouvir o farfalhar do sujeito tentando se erguer do leito.

Durante o dia ela foi bombardeada por perguntas sobre o mundo além da clausura. Nando estava decidido, abandonaria de vez seus hábitos sedentários, procuraria ajuda profissional, perderia um pouco de peso para de vez conquistar a doce Magnólia.

A cada palavra o perigo aumentava, Zélia sabia que algo urgente deveria ser feito, seu peito queimava de ódio. Se o gordo encontrasse ajuda, certamente seu amado seria descoberto.

Cidade muito pequena, pouca coisa a se fazer. A maior distração era cuidar da vida alheia.

Nas tardes seguintes a colegial não voltou para buscar suas jujubas. Jamais voltaria. Alertados sobre as intensões do solteirão depravado, seus pais a trocaram de escola, foi viver com a tia em outra cidade. Mais um adjetivo se acrescentou a tantos a macular a alma do inocente rapaz. Não obstante possuir um coração puro, agora também seria pedófilo.

À revelia do rapaz, o boato sobre seus desejos sórdidos para com a pobre criança corriam à boca miúda. Todos lhe dirigiam impropérios, no começo pensou ser despeito, depois a coisa ficou seria. Com a ausência da amada, onde ele via perfeição passou a enxergar mais ainda a necessidade de se adequar às expectativas alheias. O feitiço do ócio e da gula pareciam ter chegado ao fim.

Mesmo não sendo dia de trabalho a diarista chegou cedo, por algumas semanas ela se apresentava no mesmo horário. Aos poucos o gordo deixava de sair à varanda, o povo acostumou a lhe virar o rosto, rápido ele não era mais visto.

Depois de alguns meses, ao chegar para o trabalho, dona Zélia chamou a polícia.

Seu patrão faleceu dormindo. Como a mãe, definhou bruscamente movido pela desilusão, em pouco tempo passou de obeso a anoréxico.

Na rua, o povaréu dava a notícia de que em desespero o gordo tomou um coquetel de raízes capazes de dissolver sua banha tão rápido que seu corpo não aguentou.

Nos exames médicos nada foi encontrado, o rapaz parecia que nunca havia pesado mais que uns trinta quilos, nenhum traço de gordura manchava seu organismo.

Após muitas perguntas e a remoção do corpo, a diarista fechou definitivamente as portas daquela casa que sem herdeiros passaria ao município. Se não fosse o doce perfume que exalava, talvez a gentalha notasse seu recente sobrepeso.

Tema: Criatura fantástica... A comida apareceu para justificar a aparência do protagonista.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 12/11/2015
Reeditado em 15/12/2015
Código do texto: T5446659
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