Medo da verdade DTRL 25

Ana está dormindo, ainda não sabe, mas está atrasada para o estágio. O alarme do celular disparou há quarenta minutos. Ela não ouviu, estava muito baixo e o som fora abafado pelo travesseiro. Seus lábios permanecem comprimidos, ela tem medo. Os cabelos longos e castanhos espalhados na cama, flutuam em ondas vagarosas, como imersos no mar. O corpo gelado pesa no colchão, seus pés e mãos esticados não obedecem seus comandos. Agora está acordada, porém não desperta, sua mente foi ativada, mas o corpo não. Alguém grita, seu coração dispara, o tremor da cama é o único movimento que seu corpo experimenta. Estão batendo na porta do quarto, seu gato esperneia no corredor, a maçaneta voa pelo cômodo encravando na parede oposta, tamanha é força de lançamento. A porta abre rangendo, um homem entra, ela sabe que é um homem apesar de ele não possuir um rosto, só uma boca sem lábios, dela pendem as vísceras do gato Putz. O homem sem rosto avança e não está sozinho, atrás dele surgem outros, com braços longos e dedos que arrastam no chão. Ana tenta gritar, seu corpo inerte e frágil não obedece. Seus olhos estão abertos vertendo lágrimas que aquecem a pele, fora isso tudo é paralisia. Seu cabelo esparramado toma forma de mãos, com o toque aveludado as mãos de cabelos envolvem o pescoço dela com delicadeza.

As criaturas no quarto respiram ruidosamente e parecem sorrir. Lentamente o homem sem rosto se aproxima, encostando no pé de Ana o dedo comprido e fino, do tamanho de um antebraço humano. Roçando-o no calcanhar dela, a sensação do toque é densa e a reação é nula, a textura da pele dele é grossa e escamosa. Segue acariciando-a entre os dedos do pé. O homem sem rosto caminha com a mão em sua perna, feito um afago divertido de um amante, a cada pequeno passo que dá com as mãos encrava mais as unhas na pele desprotegida. Ele para no ventre enquanto uma segunda criatura sem rosto acaricia sua outra perna, um pedaço do gato caiu de sua boca, ainda está quente e Ana acha que sentiu a carne pulsar um instante. Ele faz um círculo na virilha. As mãos pressionam o pescoço fechando completamente a garganta por um minuto, depois aliviam a pressão permitindo algum oxigênio entrar, ela sente a intenção dos dedos repugnantes, a mente grita, entretanto somente ela pode ouvir, e ninguém pode saber o quanto está horrorizada. O homem sem rosto aparece na frente de seus olhos, a boca sem lábios exibe dentes grandes e inumanos, entre eles pequenos pedaços sanguinolentos de seu gato. A segunda criatura sobe na cama, arranhando suas coxas, fazendo quatro grandes sulcos com as unhas. O hálito dele chega à garganta, é intenso e possui um sabor desconhecido, mas no fundo da alma ela sabe do que se trata, é o gosto de Putz, o sabor quase vivo de seu sangue e vísceras. Com as duas mãos ele segura sua face, começa a introduzir um dedo em cada ouvido, a dor toma conta de tudo. Ana consegue sentir as unhas dele escavando espaço dentro de sua cabeça, a segunda criatura pretende fazer o mesmo, invadindo seu corpo lentamente, por caminhos que não ousa sequer imaginar. As mãos apertam seu pescoço, passou mais de um minuto. Dessa vez não há alívio, Ana está morrendo.

Um som nada característico substitui o barulho estrondoso dos ouvidos, dissolve o sonho que virou pesadelo, um tipo de pesadelo intenso e uma experiência extra corpórea, que somente quem sofre de paralisia do sono é capaz de experimentar. O telefone fixo na sala toca, no quinto toque ela abre a boca e leva as mãos ao pescoço ainda rígido. “Estou atrasada!” Pensa instantaneamente. O horror se foi, ao menos em parte, tudo aquilo fora real, mas em outra realidade, nessa de agora, Putz ainda está vivo e ela também. Depois de anos sofrendo deste mal, aprendeu a deixar para trás todo o pânico que vez ou outra a acomete. Verifica as horas no celular e corre para atender a ligação. Do outro lado uma voz ainda mais desesperada. É sua mãe, uma senhora de sessenta e dois anos de idade, mineira de nascença e roceira por escolha, que acompanha os noticiários do Rio de Janeiro, para saber como anda a cidade em que a filha reside e estuda.

— Ô Filha! Graças a Nossa Senhora que você ta em casa!

Ana não pode ver a mãe, mas isso não impediu de visualizar sua imagem fazendo o sinal da cruz, embalada pelo tremor das mãos.

— Mãe eu to muito atrasada, o que aconteceu? — Perguntou Ana impaciente, não com a mãe e sim com ela mesma por ter dormido além da conta.

— Não sai de Casa Aninha, liga no noticiário aconteceu uma coisa horrível. O Prefeito falou pra não sair de casa.

— Como assim? O que ta acontecendo?

— Aninha, não sai de casa! Escuta sua mãe, minha Nossa Senhora, liga no noticiário agora.

Ana aperta o controle da televisão freneticamente. As mãos transpiram enquanto ela aciona os botões errados, até que a imagem aparece.

— A Ponte Rio-Niterói permanece fechada nos dois sentidos! — A repórter ajeita os fones no ouvido, o barulho do helicóptero faz com que ela grite. — A Marinha resgatou doze pessoas, ainda não sabemos seu estado de saúde. É com vocês ainda no estúdio.

O apresentador do jornal que está no ar a mais de três horas, permanece em pé em uma bancada atualizando a população aflita. A maior parte do que é dito no jornal não é notícia de fato e sim especulações que narram um vídeo de péssima qualidade. A única informação concreta é que por volta das seis e meia da manhã de segunda-feira. Um grupo de pessoas parara seus carros de maneira voluntária, em pontos diferentes da Ponte que corta a baia de Guanabara. Saíram e pularam da ponte.

— A concessionária da Ponte acabou de disponibilizar mais imagens. — Anunciou o apresentador visivelmente eufórico com a notícia. — As cenas são chocantes uma senhora parou seu carro jogou um embrulho e logo em seguida pulou. — A família já confirmou que o embrulho... — O homem faz uma pausa. — Trata-se de um bebê, seu filho.

Ana encerrou a ligação com promessas vazias de não sair de casa. O choque inicial de estar atrasada foi substituído por outro imensamente maior. Algo assustador e inexplicável estava acontecendo. Cansou de ver a imagem da mulher jogando um bebê pela ponte, mudou de canal, todos falando sobre o mesmo assunto.

— A contagem inicial mostra vinte e nove casos. Nunca antes a cidade do Rio de Janeiro presenciou um episódio como este. — Uma nova imagem era repetida, desta vez um homem corpulento arrancava uma mulher de um carro branco. Após jogá-la o homem pulou sem hesitar.

— Santo Deus que merda é essa... — Disse Ana, não verdadeiramente para Deus. As palavras foram direcionadas para uma região qualquer do cérebro que fosse capaz de administrar as informações. Ela não notou, mas copiou o habitual sinal da cruz de sua mãe.

Passou cerca de uma hora alternando canais. Trinta pessoas sem ligação aparente desceram de seus carros e saltaram da ponte. Em diversos pontos nos dois sentidos e no mesmo horário. Através dos veículos abandonados a polícia entrava em contato com as famílias. A cidade travou com a interdição da ponte que só reabriu quase quatro horas após o ocorrido. Ana se pegou coçando novamente a parte de trás do ombro direito, fazia um tempo que aquilo incomodava. Sentiu uma fisgada e quando puxou a mão, duas unhas estavam recheadas com lascas de pele e sangue. Deu um pulo do sofá. Alguém esmurrava a porta da frente. Carol adentrou o apartamento, com olhos arregalados e os cabelos desgrenhados, vestia a mesma roupa do dia anterior.

— Ana! Pelo amor de Deus! Ana me ajuda! — Gritava a amiga aos prantos. Carol olhou para a televisão ligada certificando-se que Ana já estava a par dos acontecimentos.

— O Beto! Ele é um dos trinta! Ele pulou da ponte esta manhã.

— Que?! Você tem certeza?

— O carro dele foi abandonado no vão central! Acabaram de ligar... — Carol sentou no chão entre a sala e cozinha, gritando e chorando.

Ana não sabia o que fazer, a melhor amiga entregava a pior notícia do mundo o irmão dela, o rapaz que Ana amava desde a adolescência estava morto. — Não, não, eu vou ligar pra ele, e você vai ver... — O choro chegara a voz antes de brotar dos olhos. — Isso deve ser um engano. — Disse, com coração batendo nos ouvidos de forma que passou a ser difícil escutar a voz da amiga.

— É verdade Ana! Tem um vídeo, ta passando toda hora. — Com a menção do vídeo Ana parou segurando o telefone. — Ele é o homem do carro branco, é ele. — Confirmou a melhor amiga.

Ela parou resgatando na memória a visão, um homem corpulento puxando uma mulher de um carro. O Carro branco igual ao de Beto, poderia ser qualquer carro, mas agora ela sabia que era o carro dele, o adesivo na traseira. Seria mesmo o adesivo que eles colaram nas últimas férias em Minas Gerais? As cores eram iguais: vermelho e amarelo. Escrito “I Love Pão de queijo da Edinha.” Ana tocou o rosto lembrando-se do beijo de Beto, nesse dia ele abraçou a mãe e ela. Cada uma embaixo de um braço sentiu seu perfume e ganhou um beijo molhado no rosto. Ele sempre fazia aquilo de abraçar e beijar as pessoas, era natural e agora parecia muito distante da realidade. Largou o telefone na bancada da cozinha americana e escorregou para o chão. Engatinhou para a amiga e pousou a cabeça em seu colo.

Ali choraram por um tempo entre lembranças e a repetição exaustiva das notícias. No local onde estavam não era possível ver a televisão, somente ouvir, mas o assombro de telespectador havia passado. A curiosidade mórbida que sentimos diante dos desastres alheios desapareceu no segundo que a desgraça não era mais alheia. A dor era verdadeira e presente, sólida como concreto e quente como brasa. A perda era daquelas jovens mulheres e ninguém mais choraria as mesmas lágrimas que elas. Carol perdera o irmão e Ana o grande amor de sua vida. Juntas, seus lamentos consolavam-se da mesma forma que um instrumento musical completa uma orquestra.

— Por que ele faria isso, Carol? — Perguntou Ana, que abraçava o próprio corpo, apertando os brancos e roçando as unhas na pele arrepiada. Como quem rejeita algo repugnante.

— Não sei, não faz sentido. Meu irmão é a pessoa mais alegre desse mundo, você sabe. Ele era a pessoa mais feliz que eu conheci. — Carol não parou de chorar as lágrimas continuavam a escorrer ininterruptas, como um vazamento hidráulico. O que oscilava era o timbre da voz, que dividia-se entre desesperado e resignadamente triste. — Ele era... nunca mais poderemos dizer ele é.

— Não é ele, Carol. Não acredito! E tem aquela mulher que ele jogou. Quem era aquela mulher? Por que todas essas pessoas pularam ao mesmo tempo? Isso ultrapassa a loucura. — Ana balançava a cabeça de um lado para o outro, repetindo o gesto de não, no fundo de sua alma negar a morte dele aproximava seus corações e isso fazia sentir-se melhor. — Mesmo que por algum motivo, que não conhecemos, ele pudesse acabar com a própria vida. Sabemos que o Beto nunca machucaria uma mulher. Nunca, nunca, nunca.

— Tem razão, nisso você tem razão.

Carol sabia o quanto Ana, uma estudante de direito poderia ser persuasiva. Entretanto aquele argumento era irrefutável, sua mãe sofreu violência doméstica por anos, e Beto que cresceu limpando seus ferimentos, se tornou um ativista defensor das mulheres. O homem que apareceu no vídeo foi violento e assassinou uma mulher. Mais do que qualquer coisa aquilo não fazia o menor sentido para elas. O telefone celular de Carol tocou. Ela atendeu respondendo de forma seca e monossilábica.

— Encontraram o corpo, Ana, querem que eu reconheça.

— Eu vou com você. — Disse tentando tranquilizar à amiga.

— Vamos logo então só quero isso acabe.

Quando estava pronta para sair elas se abraçaram, primeiro com delicadeza e depois com força apertando uma as costas da outra. Fez o sinal da cruz em parte como um pedido de desculpas a mãe. Prometera que não sairia de casa. Antes de fechar a porta olhou para o sofá recordando-se da última sexta-feira que assistiu filmes ali, Beto sentado do lado direito, derramou o balde de pipoca no tapete. Ele sorriu e disse:

— “Não fui eu, foi o gato!” — E apontou para animal que estava dormindo no seu colo, Putz o gato, abriu o olho e desceu do sofá. Beto então pediu desculpas a Putz pela mentira e todos riram. Ele não gostava de ver ninguém triste. Ana pensou, e apesar de chorar, uma pontinha de algo bom passou por seu rosto, como a primeira gota de chuva. Insuficiente para matar a sede, mas grandiosa por fornecer esperança. Pegaram a barca para o Centro do Rio, passar pela ponte estava fora de questão, ainda não estavam preparadas. Carol se aninhou na cadeira debaixo dos óculos escuros, não disse, mas era claro que evitava olhar a ponte. As pessoas ao redor não facilitavam a tarefa de tentar pensar em outras coisas. Todos insistiam no mesmo assunto e diversas eram as especulações que rodeavam as trinta mortes daquela manhã. Ana contemplou a construção monumental, o dia estava bonito, o céu azul e a baia de Guanabara brilhavam ao sol. Quase um insulto ao seu sofrimento. Um dia terrível como aquele deveria ser feio, nublado e triste. Olhou para o ponto mais alto da ponte e não conseguiu imaginar: Como alguém poderia pular lá de cima? Muito menos Beto e improváveis vinte e nove pessoas no mesmo dia.

Ana que possui uma memória do tipo seletiva autônoma, (era assim que Beto a definia), ou seja, só é capaz de se lembrar das coisas em momentos inúteis, se lembrou dos conselhos de um professor, um advogado criminalista de sucesso: “São as pequenas coisas que te fazem vencer, o geral todos sabem. O resumo passa na televisão e os caras do boteco discutem. Se atente aos pequenos detalhes, eles sempre fornecem as respostas.”

— Os pequenos detalhes. — Repetiu.

— O que disse? — Perguntou à amiga.

— Quando foi à última vez que esteve com ele?

— Ontem à noite. Antes de perguntar eu respondo, ele estava normal. Saiu cedo para ir no laboratório colher sangue, foi pedido do médico que eu mesma marquei pra ele semana passada.

— Ele estava doente?

— Não doente de verdade, só uma crise alérgica.

O homem sentado ao seu lado levantou-se, a barca ainda não havia atracado, mas ele queria seguir para porta. Isso enquanto uma voz no alto-falante dizia para fazer ao contrário. Ela levantou para que ele passasse e leu a manchete de capa em seu jornal. “Crise financeira chega ao dízimo e igrejas estão endividadas”. Quando esse jornal foi impresso o mundo ainda era a mesma porcaria maravilhosa de sempre. Pensava Ana em pé com a mão no peito, como se fosse possível com o gesto acalmar o coração. Amanhã no próximo jornal, será apenas uma porcaria.

Chegando no Instituto Medico Legal perceberam que um aglomerado de reportares aguardavam os parentes das vítimas. Com perguntas que beiravam a crueldade, eles acotovelaram-se para conseguir uma variedade de respostas, que resumidas falavam as mesmas coisas. Os parentes que ali estavam revelavam sempre o mesmo, seus entes queridos eram pessoas boas, e não acreditavam no que estava acontecendo. Um certo repórter investiu em uma mulher baixinha questionando se era verdade que seu filho havia sido preso um ano antes por roubo à mão armada. A mulher deu um soco no microfone e proferiu uma dúzia de palavrões. Enquanto a câmera estava ligada o repórter dizia: — Me desculpe, senhora, só estou fazendo meu trabalho e tentando esclarecer os fatos.

Quando a câmera foi desligada ele parecia satisfeito e Ana pensou, em que o fato do rapaz ter sido preso ajudaria naquela situação? Como os antecedentes criminais esclareceriam os acontecimentos hediondos daquele dia? Para a mãe do ex-presidiário não importava se o filho tinha feito algo estúpido e errado como assaltar alguém, ele estava morto e esse era o único fato que importava a ela. O repórter estava do outro lado, do lado que ela estava quando ligou a televisão de manhã. Para ele a tragédia era alheia, e ele não seria capaz de sentir toda aquela dor nem estando rodeado dela por todos os lados. Entraram no IML escoltadas por policiais, e com uma quantidade alarmante de microfones e gravadores projetados para seus rostos, de maneira agressiva e intimidadora. No céu helicópteros faziam a cobertura. Ana estremeceu ao perceber que a mãe certamente a reconheceria na televisão. Um assistente social ás acompanhou até uma pequena sala. Lá, ele aconselhou a não dar entrevistas, e tentar responder aos investigadores, todas as perguntar possíveis com a maior quantidade de detalhes. Um policial entrou na sala carregando uma pasta.

— Boa tarde. — Ele disse.

Só o outro homem respondeu, Ana segurou a mão de Carol com força.

— Sabemos que é um momento muito difícil para a senhora. — Ele fez uma pausa e abriu a pasta. — Tiramos uma foto de uma tatuagem no corpo, que acreditamos ser de seu irmão, gostaríamos...

— Meu irmão não tem tatuagem. — Interrompeu Carol muito impaciente.

— A senhora já informou isso no relatório, mas através das imagens do vídeo acreditamos que seja ele, e a tatuagem é escondida.

— Deixa eu ver. — Ana puxou a imagem impressa em uma folha A4. — Que isso? É a bunda dele?!

— Não, senhora. O desenho está localizado na parte de traz da coxa. — Respondeu o homem desconfortável.

— Nesse caso todo o processo de liberação do corpo será mais rápido se houver um reconhecimento pessoalmente. — Disse o assiste social. — Um psicólogo pode acompanhá-las se acharem melhor.

— Beto não tinha tatuagem na bunda, moço. — Respondeu Carol, voltou-se para Ana com olhar de súplica. — Por favor Ana, não posso fazer isso. — Apertando ainda mais forte sua mão. — Mesmo sabendo que não é ele não quero entrar. Sabe, ele não tinha tatuagem, então não é ele. — Carol desviou o olhar para a foto em cima da mesa, um símbolo feio e meio torto de cor avermelhada parecia um carimbo e lembrava o número 30.

Sem dizer nada levantou-se para ir reconhecer o corpo. O homem perguntou qual era seu parentesco com a vítima, e antes de responder Carol disse que Ana era namorada de Beto. A situação não permitia, mas ela sorriu. A sala onde o corpo aguardava estava muito fria e mais organizada do que esperava. Não era um local para aquele tipo de procedimento, e ela suspeitou que aquela situação fosse especial até mesmo para as pessoas que lidavam com a morte todos os dias. O lugar estava mais para um escritório do que um necrotério. E todos eram muito educados e condescendentes, gentis ao ponto de despertar desconfiança, de que alguém não seria daquela forma, dia após dia, recebendo corpos e familiares chorosos. O homem perguntou se poderia levantar o plástico que cobria o cadáver, ela autorizou. O estômago encolheu, um suor repentino escorreu pelas costas e um calafrio geral percorreu sua pela. Ana abriu a boca soltando sons quase inaudíveis, por conta de um timbre próximo do inalcançável pelo ser humano. Sons finos e arfados, como a atitude de uma pessoa sem ar.

Foi isso que a visão do corpo inchado de Beto provocou nela. Era ele! Não havia duvida. É certo dizer que não era o Beto que conhecia, o rapaz alegre de sorriso fácil, que distribuía abraços às meninas e apertos de mãos com estalos altos aos meninos, e aos meninos de que gostava muito, abraços também. Aqueles abraços que levantavam o outro do chão por um segundo. Aquele a sua frente era uma versão sinistra dele, de olhos fundos e esbulhados, a boca semiaberta e a pela branca e fosca. Era uma casca, só um corpo orgânico que carregava uma alma pura e maravilhosa, era o resquício da pessoa que amava. Era o Beto, mas era o Beto morto. Ana não chorou a dor fora chocante o suficiente para paralisar todo o corpo, é bem provável que as lágrimas estavam se acumulando em algum reservatório interno. E dentro de uma ou duas semanas elas trasbordariam de uma vez. Certamente em um local inapropriado como na fila do banco ou espremida dentro do ônibus cheio, na hora do engarrafamento. Ela iria ficar em completo desespero e não sentiria vergonha, as pessoas a sua volta cochichariam coisas ridículas como: deve ser por causa do namorado. Alguma senhorinha cederia um lenço e daria bons conselhos dizendo que tudo iria passar, enquanto acariciava seu braço.

Seu celular tocou e desfez a cena da senhora que a acalmaria dentro de alguns dias, olhou no visor e era sua mãe, desligou o aparelho com culpa. A vibração do celular foi curativa e um resquício de racionalidade veio à tona. — Quero ver a tatuagem. — Disse, engolindo uma bolota seca garganta abaixo. O homem ponderou um instante, até que acatou o pedido. Ana ficou olhando o desenho por um minuto inteiro, o homem perguntou se estava bom e ela concordou. Na verdade queria gritar bem na cara dele: Está bom?! Está bom?! O homem que eu amo está morto e tem uma tatuagem ridícula na bunda! E você me pergunta se está bom? Ao invés disso apenas concordou, o policial não tinha culpa. Realmente era uma tatuagem, de aparência ruim com se não tivesse dado certo, conhecia Beto desde criança e ele não tinha aquilo. Era um desenho horrível, para outra pessoa seria motivo suficiente para esconder, mas Beto era divertido e tirava uma piada dos lugares mais inusitados. Ele teria feito daquilo a piada do ano. Todos esses eram bons argumentos. Para contradizer tudo, a tatuagem estava lá, insistente e sem sentido.

Um táxi foi chamado, saíram do IML de vidros fechados embaixo de pedidos de entrevistas. Carol estava confusa e fraca, mantiveram o silêncio na presença do motorista. Ana não queria mais especulações na televisão, pelo olhar do homem ele estava atento a cada respiração delas. A amiga não percebeu a malícia em seu olhar. Notou cada olhada dele pelo retrovisor e sentiu vontade de chutar a cabeça dele, todas às vezes. Andaram abraçadas até a estação das barcas como um casal, Ana com o braço nos ombros de Carol e ela com o braço em volta de sua cintura. Em passos lentos sem pressa alguma de chegar em casa. Não sabia quais pensamentos passavam na cabeça da amiga, mas ela estava a maquinar tudo que sabia sobre o caso, quando saiu do IML fez uma promessa silenciosa ao falecido amigo. Descobriria a verdade. Um homem passou por elas e desferiu uma cantada grosseira, Carol estava ali, porém ausente, não importando-se com o mundo a sua volta.

A raiva que sentiu do sujeito aqueceu seu corpo que começou a suar. Imaginou as criaturas de seu sonho andando atrás do infeliz sem educação, o homem sem rosto o seguiria até sua casa e no minuto que ele fechasse a porta e desse as costas, dedos finos passariam por sua nuca. O homem sem rosto prenderia a língua do sujeito entre as unhas e a arrancaria, caído no chão aos gritos afogados em sangue, ele iria se lembrar de todas as cantadas ofensivas que fez na vida e iria se arrepender. Todavia o homem sem rosto, não estaria ali para perdoá-lo de nada. Ele enfiaria os dedos sob o queixo do insolente e arrancaria toda a pele da face, exibindo músculo ensanguentado e gordura branca. Olhou para trás e viu o homem já distante, desapontou-se quanto notou que ninguém o seguia. O homem sem rosto era só seu. Sua patologia.

Talvez tenha sido esse o gatilho para lucidez. Em momentos de delírio temos pensamentos sólidos e coerentes, a questão é que nos forçamos a esquecer da loucura e perdemos esses pensamentos. Apressou o passo. Nesse momento queria chegar rápido em casa, não na sua casa, mas no apartamento de Carol e Beto. A polícia traçava em que grau as vítimas estariam relacionadas, onde moravam e trabalhavam, e o que fizerem no dia anterior. Para Ana essas eram informações secundárias, segundo o professor o resumo que passava na televisão. Ela iria atrás dos detalhes, as pequenas coisas que fariam sentido para ela. E em sua loucura talvez encontrasse a resposta para todas as perguntas, acalmando assim seu coração.

Executou pequenas tarefas pelo apartamento, segurou a mão da amiga enquanto ela ligava para parentes. Choraram em silêncio e quando Carol adormeceu Adentrou no quarto de Beto a procura dos pequenos detalhes. Mesmo ela não saberia dizer o que procurava. Quando encontrasse saberia, revirou gavetas parando vez ou outra para cheirar casacos e acariciar fotos. Ligou o computador a proteção de tela foi um freio, uma foto dos três no quintal de terra tomando banho, um dia qualquer depois das aulas, uma tarde quente de sol e um banho de mangueira. A água fez da terra lama, a lama tornou-se festa e a festa fez-se eterna em suas lembranças. Um dia feliz da infância que ecoaria para sempre, quantas vezes olhava nos olhos de Carol e Beto e enxergava as crianças sujas de lama e sorrisos desfalcados por dentes de leite?

Iniciou uma pesquisa na internet sobre a tatuagem vermelha, acessou alguns sites, queria saber o significado do símbolo. A cada página aprofundava-se em um universo menos condizente com Beto. A busca pelo significado do símbolo sempre levava a lugares obscuros e significados sombrios. Magia negra e seitas pouco conhecidas. Nada foi encontrado, pois sem saber exatamente o que procurar sua pesquisa era vaga e infrutífera. Acessou o histórico de navegação do amigo, encontrou redes sociais, emails e sites de jogos. Uma visita frequente a um site desconhecido chamado Rubrovalle, mostrou-se a única coisa diferente. Abrindo a página, uma tela vermelhava totalmente limpa, sem nada escrito, após alguns segundo uma pequena caixa no centro solicitava uma senha e nada mais acontecia. Vermelho pensou Ana. Essa cor estava espalhada como pequenas pistas: a tatuagem e o site. Procurou por arquivos gravados no computador, uma pasta foi encontrada e novamente uma senha era solicitada, tentou algumas combinações aleatórias e desistiu.

Revirou gavetas de roupas e uma chamou sua atenção, a última gaveta só possuía peças de cor vermelha. Puxou da memória e não recordou-se do amigo em nenhuma daquelas roupas. Após esse detalhe olhou tudo mais devagar. Na estante de livros a maioria dos títulos pertencia ela, Beto pegava tudo emprestado, mas o empréstimo dele era para sempre. Os livros nunca voltavam e ela despedia-se dos amados livros quando ele levava um para casa. Passou os dedos nos exemplares lentamente lendo todos os títulos quando parou. Entre dois livros muito grossos, um pequeno e fino caderno preto repousava. Somente um olhar atento notaria, sua cor mistura-se aos livros das laterais. Um caderno preto com nada escrito atrás ou na frente. Sentou-se na cama e abriu, já na primeira página o coração disparou, o símbolo da tatuagem estava desenhado a lápis. Nas páginas seguintes o caderno fora preenchido com diversas citações, algumas, conhecia de personagens famosos na história da humanidade, muitas outras desconhecidas para ela, frases como:

“O verdadeiro ato de fé é doloroso, requer coragem e é insano. A dádiva é proporcional ao ato.” S.P Franco

“O futuro será construído por poeira, assim como o passado. No futuro a poeira do universo correrá em nossas veias, construindo uma nova vida.” Dr. Mário Costello.

Folheou o caderno e ele estava preenchido até o fim com frases como aquelas, todas escritas com a letra do amigo, em caligrafia caprichada e precisa. Começou a ficar nervosa, as frases continham mensagens vagas, mas o conteúdo era forte para quem realmente quisesse acreditar. Falavam de vida e morte; fé e sacrifício. Pesquisou sobre o doutor Costello, mas não encontrou nada além de suas impressionantes credenciais de geneticista molecular da maior universidade do país. Tudo que leu possuía um cunho quase que espiritual. Ana sabia que Beto era Ateu, mas o tipo de ateu que acompanhava a mãe a missa quando ela pedia, acompanhava de olhos fechados a oração no jantar na casa de anfitriões. Era um homem convicto, entretanto, maleável que respeitava a crença dos outros. Seria ele o tipo de pessoa a acreditar em coisas como aquilo? Não, ele não era esse tipo de homem, pensou. Voltou para o computador e assistiu o vídeo de Beto, já disponível no youtube.

O relógio ao lado da imagem mostra 06:28. O carro parou bruscamente ele saiu do lado do motorista, a porta do carona já está aberta, abriu-se antes do carro parar, uma mulher sai, carros passam buzinando, eles falam alguma coisa, Beto coloca as mãos nos ombros da mulher, ela reage com violência. Eles encostam na mureta, ela faz gestos bruscos debatendo-se, parece estar lutando com ele. Quando der repente ele joga a mulher pela ponte e pula em seguida.

Ana volta o vídeo várias vezes. Eles discutiam...Ela não queria pular e ele a jogou. Aproximou o máximo que pôde a imagem, mas não era possível ver com clareza a feição das pessoas e não reconhecia a mulher. Assistiu outros vídeos das vítimas pulando, quatorze no total, todos iguais, parando os carros subindo na mureta e saltando. A semelhança era óbvia, todas as pessoas faziam movimentos lentos, sentaram na mureta e pularam de frente. Seus corpos caíram estranhos girando no ar. Na sétima vez que assistiu ao vídeo, notou, talvez não fosse aquilo que parecia ser. A notícia foi dada como dois assassinatos no meio de vinte e oito suicídios. Naquela manhã ela acreditou nessa versão, pois o vídeo se mostrava inquestionável, a imagem provava, mas percebeu, não foi isso que aconteceu. Olhando atentamente, Beto estava convencendo a mulher a não pular, ele balança sutilmente a cabeça e realmente parece gritar a palavra não, eles lutam, mas ela consegue se soltar, na imagem parece que ele a empurra, mas não é isso que acontece, ele tenta segurar sua roupa. Quando ela pula rolando de lado, ele pula de cabeça atrás dela. Beto é o único que pula de cabeça. Ele não queria se matar! Ele pulou atrás dela! Queria salvá-la.

Ana estava convencida de que Beto não cometera suicídio, muito menos assassinato. Ele na verdade não pulou, mergulhou de cabeça. Os pensamentos fervilhavam em sua mente. Ligou a televisão com o volume baixo, não queria acordar a amiga no quarto ao lado. O noticiário especial daquela noite tratava o incidente de diversas formas, cada apresentador com sua teoria, todas estranhas, mas possíveis e lógicas em suas loucuras. Nesse momento, estava convencida da inocência de Beto, mas era evidente que ele estava envolvido em algo perigoso. O modo mais prático de descobrir alguma coisa esclarecedora seria encontrar as senhas. Vasculhou todo o quarto, esvaziando armários e gavetas. Não encontrou mais nada, voltou-se para o caderno de citações. Fez uma busca pelo autor da primeira frase S.P Franco, descobriu que era um professor universitário, encontrou muitos artigos científicos de sua autoria. Doutor Franco era um antropólogo, iniciou a leitura do primeiro artigo que encontrou e não gostou do que viu. O estudo abordava um incidente de suicídio coletivo em uma tribo indígena.

As peças soltas em sua cabeça iniciaram o doloroso processo de encaixe. A compreensão lenta dos fatos causava confusão e dor. O antropólogo pesquisava sobre suicídio e naquela manhã vinte e oito pessoas se suicidaram no mesmo lugar e hora. Seu melhor amigo tentou evitar que uma mulher fizesse o mesmo. Agora ele estava morto. Ana ouviu na televisão o uso da palavra insano pela primeira vez, estudiosos especulavam sobre teorias para o ocorrido, o adjetivo caiu no gosto da imprensa e “os insanos da ponte”, seria mencionado muitas vezes daquele momento em diante. Ela chorou e as lágrimas foram diferentes, de todas as outras que derramou naquele dia. O choro era silencioso e primitivo, mordeu o punho fechado com força suficiente para sentir dor e deixar uma marca. Saliva escorreu pela mão dolorida. Queria gritar e quebrar coisas, mas o corpo não respondia. Se Beto estivesse louco sua loucura estaria espalhada por seu quarto. De alguma maneira ela ainda estaria ali e agora penetrava através de cada poro suado de sua pele. A loucura do inexplicável a envolvia em sua rede de coisas sem sentidos, mas reais como o vento e intransigente como o ar que precisamos respirar. Levantou-se e foi tomar banho com os dentes fechados em uma mordedura feroz de raiva e incompreensão. Ficou imóvel debaixo da água quente, o tempo passou, poucos minutos tornaram-se muitos. Só saiu quando era difícil respirar dentro banheiro, tamanho era a quantidade de vapor dentro dele, que começou a sentir uma espuma de água e sabão na garganta. Passou a mão pelo espelho para poder se enxergar. Os olhos fundos e vermelhos contrastavam com a pele branca de aspecto doente.

Notou que coçava o mesmo ponto nas costas, não percebeu que fazia isso antes de se ver no espelho. Retirou a mão e as unhas continha sangue, ficou assustada. Virou de costas para ver o ferimento, passou uma toalha no espelho. A imagem tornou-se nítida aos olhos, mas não a mente. Olhou sem piscar por vários segundos, respirando muito rápido e começando a tremer, de repente sentiu muito frio apesar de o banheiro estar feito uma sauna a vapor. Entre pequenas dilacerações Ana reconheceu a mesma marca que viu no corpo de Beto. Avermelhada com pontos roxos de uma ferida um pouco antiga. Parecia mais um ferimento do que uma tatuagem. A loucura do quarto entrou no banheiro, colando o pé na porta e gritando com ela. Beto não falou sobre a tatuagem, porque não sabia. Pensou com uma convicção que só os loucos têm. Ele foi ao médico por causa de um problema alérgico, alérgico a isso! Exatamente como eu, meu corpo rejeita essa coisa, o dele também deve ter rejeitado. A perna direita tremia e o piso do banheiro estava gelado e molhando, seus olhos vermelhos tornaram-se alertas e esbugalhados, levemente desfigurados por um frenesi mental. Retornou para o quarto, vestiu as mesmas roupas sem se enxugar e respigou água para todos os lados. A marca parecia o número trinta. Usou o número para tentar abrir as pastas secretas do computador com a senha, mas era uma senha de seis dígitos. Levou as mãos no rosto e ficou ainda mais assustada, trinta, esse era o número de mortos naquela manhã. Às seis e trinta da manhã. Colocou no campo da senha o número trinta três vezes. O arquivo foi aberto. Três novas pastas apareceram intituladas de: banheiro, investigação e ativação respectivamente. Dentro da pasta banheiro uma série de vídeos e documentos. Clicou no primeiro vídeo intitulado: banheira.

O vídeo começa com uma adolescente dentro de um quarto a câmera parece ser de seu computador. Ela digita no teclado e sorri, de cabeça abaixada com um fone de ouvido, não olha diretamente para a câmera. Sem nenhum motivo aparente ela para de digitar e o riso morre em seu rosto. Ela levanta a cabeça, olha para frente, olhos vítreos e sem emoção. Levanta com movimentos rígidos e entra dentro do banheiro. A câmera continua filmando é possível ver a jovem ligar a torneira e encher a banheira, olha para água, imóvel permanece sem emitir nenhum som até que a banheira esteja quase cheia. Ela tira toda a roupa e entra na banheira, antes de deitar olha na direção da câmera, não parece notar que está sendo filmada. Ela deita, a água começa a transbordar, então submerge. Bolhas de ar explodem na superfície e é possível ouvir o barulho. O vídeo é acelerado e passam-se dez minutos, a jovem ainda não volta a superfície. Um telefone toca ao longe, ouve-se passos, alguém bate na porta, um homem entra.

— Alice? — O homem chama, a voz dele é rouca e meio sonolenta.

Ele segura um telefone sem fio. Para no meio do quarto, olha para o chão, acabou de sentir a água molhar o carpete. Olha para o banheiro, ele entra devagar.

— Alice? — Chama novamente, parece mais desperto e apreensivo. Para na porta do banheiro, a mão que segura o telefone começa a tremer e deixa o aparelho cair no chão, uma peça se solta liberando uma pilha, faz um som surdo e molhado quando bate no carpete encharcado. Ele balança a cabeça para os lados e corre, escorrega no chão e cai de joelhos.

— Minha Filha! — Ele grita, mas Alice não responde.

Ele puxa a menina de dentro da banheira, ela está morta, ele sabe, todos sabem, mas ele tenta fazer respiração boca a boca. Abre os olhos dela e pede que respire. Uma mulher entra no quarto e começa a gritar. Seu grito é muito alto e não é mais possível ouvir o que o homem esta dizendo. Ele está com a jovem no colo acariciando seu cabelo e se balança para frente e para trás. A mulher está abaixada no meio do quarto segurando o estômago, gritando, um som que vêm de todos os lugares e pertence a todas as mães que perderam um filho. Um som que parece não ter fim, um grito capaz de ecoar para sempre. A imagem fica congelada nesse ponto o vídeo chegou ao fim, mas Ana sabia o que aconteceria quando viu a adolescente ligar a torneira e sentar na borda da banheira. Ela iria se matar, seus olhos diziam isso.

Abriu um arquivo de texto com o mesmo título, deu um pequeno pulo da cadeira. Encontrou uma série de fotos, homens, mulheres e até crianças todos mortos. Compreendeu que morreram por afogamento, algumas fotos foram tiradas com o corpo ainda dentro da banheira e outras no chão. Em seguida, fotografias de marcas, a mesma desenhada em seu corpo. Deu um grito abafado pela palma da mão. Todas aquelas pessoas foram marcadas para morrer. Exatamente como ela e Beto. A imagem da jovem na banheira incomodava não apenas por ser trágica. Assistiu sua morte e começou a acreditar em algo sobrenatural, os sites de ocultismo, se encaixavam ali. Magia negra era uma explicação vaga, porém era uma explicação, porque biologicamente ninguém consegue se matar deitando por vontade própria em uma banheira. Algo tem que impedir mecanicamente que pessoa venha à tona em busca de oxigênio.

— Não. — Murmurou na tentativa de afastar o pensamento de que ela também estava marcada.

Completamente apavorada, corria os olhos pelas fotografias, os arquivos de Beto mostravam outros incidentes. O arquivo banheira mostrou um suicídio, as fotos revelavam casos idênticos, um documento apontava para uma realidade ainda pior. Como no caso da ponte, os suicídios da banheira acorreram em uma mesma cidade no mesmo horário. Ficou muito claro que Beto investigava aqueles casos, mas como ele teve acesso aquelas informações? As fotos por exemplo eram numeradas, fotografias usadas por autoridades policiais. Acalma-se garota, Beto não se matou, ele possuía a marca, mas não era um suicida. Você também não vai fazer isso.”Começou a pensar na marca e em como adquiriu aquilo sem perceber. Algumas fotos mostraram marcas semelhantes. Era evidente que as marcas estavam relacionadas ou resolveriam todo o mistério. Como isso não passou na televisão? Por que esse caso da banheira não veio a público como aconteceu na ponte?

Aquelas pessoas deveriam fazer parte de alguma seita e tiraram a própria vida em algum pacto de morte. Essa foi a conclusão que Ana chegou, isso já acontecera antes, seitas que convenciam seus integrantes a cometer suicídio coletivo. Essa possibilidade foi levantada no jornal no caso da ponte, mas Ana não lhe concedeu crédito, pois Beto era ateu. Agora que sabia que ele não havia atentado contra a própria vida e sim tentado salvar uma. Estava pronta para acreditar em um pacto de morte. Se isso fosse verdade não tardaria de ser descoberto, a ligação dessas pessoas apareceria rapidamente, o grande problema era saber como ela estava envolvida naquilo? Nunca tentaria se matar! Não era uma pessoa religiosa, mas acreditava em Deus, sua mãe, católica devota de Nossa Senhora, ensinou tudo sobre o cristianismo e acreditava com todo o coração em grande parte dos ensinamentos, que teve quando criança. Nesse momento de sua vida acreditava com maior convicção. Misteriosamente estava envolvida, a marca na pele não abria margem para dúvidas. Pense nos detalhes Ana.

A batida de seu coração transcendeu o estágio que se ouve o pulsar do músculo cardíaco nos ouvidos. Seu cérebro pulsava em uníssono com ele. Foi capaz de sentir grandes jatos de sangue quente banhar sua cabeça de forma dolorosa. A pasta secreta que abriu continha três outras a primeira ela já havia explorado, encontrando os suicídios da banheira. Duas outras restavam a segunda pasta intitulada de investigação e a terceira de ativação. Ana tremeu de leve ao abrir a terceira pasta, temeu ver outros vídeos de pessoas cometendo suicídio, ou fotos de seus corpos. A pasta não abriu, deu vários cliques com mouse, impaciente. Um som alto preencheu o pequeno quarto, Ana soltou um grito e se jogou para trás na cadeira. Era música, ao clicar várias vezes para abrir a pasta clicou também no primeiro arquivo dentro dela, o áudio daquela música. As caixinhas de som apesar de pequenas eram potentes.

Ana correu para desligar, pegou uma caixa de som nas mãos e não encontrava o botão de volume, derrubou o objeto na mesa aumentando o barulho do quarto. Na outra caixa encontrou o volume, abaixou rápido até deixar o quarto quase no silêncio. Levantou da cadeira e foi até a porta, colou o ouvido nela. Meu Deus! Espero não ter assustado Carol... Voltou com a mão no peito, nunca levou um susto desse tamanho. Sentou de novo, olhou para uma lista muito grande de arquivos de áudio. Não reconhecia a música, mas era boa, do tipo popular e faria sucesso nas rádios. Acalmou-se ouvindo com atenção a letra, mas não era nada diferente das outras: um rapaz apaixonado por uma garota. Os detalhes moram aqui. Pensou, reconheceu o que procurava desde o início, a música era um detalhe. Repetiu o áudio, dessa vez com o fone de ouvido. Anotando frases que soavam estranhas. De costas para porta não viu quando uma pequena fresta se abriu. Estava muito concentrada na letra da canção. A fresta aumentou e iluminou o rosto de Carol, um olhar vítreo e brilhante, mas diabólico como o riso de um assassino. Seu rosto não tinha expressão, estava relaxado de um modo que era difícil acreditar que estava acordada. Nenhuma linha de expressão contornava seus olhos, não piscava ou desviava o olhar. Ficou parada um bom tempo, até que entrou devagar sem emitir nenhum som, parou atrás de Ana. Nesse momento Ana viu a sombra e abriu a boca para dizer seu nome, que morreu antes do fim.

— Ca...

Carol agarrou seus cabelos com a mão esquerda e puxou sua cabeça para trás. Provocando grande dor em Ana, que de olhos esbugalhados não conseguiu soltar um grito, o que saiu de seus lábios repentinamente secos foi um pré grito. Um fôlego que tomamos antes de gritar, a fração de segundos que precede o desespero. Seus olhos se encontraram e Ana viu neles seu horror, o mesmo olhar da adolescente que se suicidou na banheira. Com a mão esquerda, Carol deslizou uma faca de cozinha no pescoço de Ana, a lâmina prateada cortou fácil carne, músculo e veias. Sangue escorreu em velocidade do corte profundo. Ainda tentou falar alguma coisa, levou as mãos no rosto de Carol tentando segurá-la e impedir que continuasse. Agarrou a alça de sua blusa e quando a faca começou a cortar sua carne o tecido rasgou. As mãos caíram lentamente para o pescoço tentando reter o vazamento. O gosto e a textura do sangue vieram a boca, lembrando o hálito do homem sem rosto. A última coisa que Ana viu antes de morrer, foi o seio descoberto da amiga, e a mesma marca que tinha em seu corpo. Ana se arrependeu de não ter atendido a ligação da mãe no IML e pela primeira vez teve medo de verdade, ela estava acordada e seu assassino tinha um rosto.

***

Na tarde do dia seguinte, uma mulher de quarenta anos e cabelos negros chegou a porta do apartamento de Carol e Beto. Seu nome era Carla, ela bateu durante trinta minutos enquanto fazia ligações de seu celular. Por fim o chaveiro veio e abriu a porta, ao entrar no antigo quarto de Beto a tia de Carol encontrou a própria sobrinha morta. Carol estava sentada, encostada na cama, a cabeça para trás, exibia uma grande fenda enegrecida. Uma mancha escura percorreu a abertura de seu pescoço até o chão. Muito sangue espalhado para todos os lados, encharcando e colorindo o tapete cor de areia. Ana estava quase na mesma posição, ocupando a cadeira giratória do computador. Carla gritou e desmaiou, o chaveiro gritou e correu. Da portaria a polícia foi chamada, mas era tarde, ambas estavam mortas, e nenhuma investigação iria esclarecer o motivo. O notebook de Beto, que Ana usava na noite anterior, desligou com o fim da bateria. Os arquivos da pasta secreta nunca foram encontrados pela polícia. A perícia muito sobrecarregada concluiu que Carol assassinou Ana e depois se matou. A insanidade pareceu figurar naquela família, com sérios problemas psiquiátricos e envolvimento com uma seita perigosa. O assunto foi desviado para esse sentido, nada foi esquecido por semanas até que se iniciaram os jogos olímpicos. O estado do Rio de Janeiro receberia os jogos e a questão foi dada como finalizada. Não era bom para a imagem da sede olímpica, tamanho alarde sobre assassinatos e pactos de morte de magia negra.

***

CONTEÚDO DA PASTA INVESTIGAÇÃO (Arquivo ondas de rádio)

Os áudios são os ativadores. Mensagens são transmitidas através de ondas de rádio. Uma lista de músicas foi identificada, não está claro o teor das mensagens, somente seu potencial perigo letal. Todas as pessoas infectadas pela nano partícula, que entram em contato com a mensagem, executam de forma mecânica suas instruções. Ainda não foi descoberta a via contaminante, mas muitos indivíduos apresentam um processo alérgico no local de inserção das nano partículas. É desconhecido o número de infectados ou com que intuito essas pessoas foram marcadas. Roberto, estou enviando uma lista de músicas, de nenhuma maneira ouça esses áudios, mas fique atento a menção deles na mídia. Estou com medo, não é mais seguro manter contato, esse será meu último email. Estou saindo do país, aconselho fazer o mesmo e levar sua família. Meu laboratório foi invadido e toda minha pesquisa foi roubada. Nenhum país da América é seguro! Identifiquei casos em quase todos. Acredito que o pior está por vir. Tenho medo de um ataque em massa. Uma mensagem direcionada a todas as pessoas. Isso é muito maior do que imaginávamos. Rubro Valle, não é uma seita como pensamos, Roberto, é uma organização, uma ordem ou uma empresa. Não importa o que seja meu amigo, mas estávamos errados, são perigosos não por convencer outras pessoas. Eles controlam outras pessoas. Ficarei longe da tecnologia, através dela eles controlam nossa mente. Tenha muito cuidado, estamos em perigo, o mal está dentro de nós. Correndo em nossas veias, e pode ser ativado a qualquer momento ao som de uma balada inocente, isso não é paranoia minha filha se afogou em trinta centímetros de água. Já perdi demais, me entrego agora à loucura, pois a razão só resultou em morte.

Dr. Mário Costello

Fim

Queridos autores meu tema é a paranoia, me perdoem por este "contão", o texto que estava escrevendo para esse desafio não ficou pronto a tempo e tive que inscrever este que já estava pronto. agradeço a todos que chegaram aqui, comentem, a opinião de vocês é muito importante, obrigada.

Glau Kemp
Enviado por Glau Kemp em 25/11/2015
Reeditado em 08/12/2015
Código do texto: T5460645
Classificação de conteúdo: seguro
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