para a Criatura Fantástica
que conheci como meu pai
 
“Então a escolha é sua
Quantos pecados podem ser seus
No meu reino a escolha final
É sua!
 
Você pode levá-los
A qualquer hora
A próxima coisa que vou pedir
Tudo que você tem a fazer é sangrar”
 
Grim Reaper – See you in hell
 
Sonhei com o meu pai.


Um sonho “real”, como um relato!

Vou escrever antes que se torne apenas uma sensação; se bem que muitas coisas nesse sonho foram vividas por nós e estão gravadas na minha vida no formato boas lembranças e outras...

Desse sonho, uma dúvida tornou-se certeza: meu pai foi uma criatura fantástica!
 
            Estávamos na nossa chácara em Mairinque, interior de São Paulo, e meu pai andava preocupado com alguma coisa. Naquela época, anos 70, quase anos 80, a energia elétrica ia só até a venda do seu Nelson, no ponto final do ônibus que saia da zona urbana para a rural. Mas a vida própria do meio do mato pulsava: passarinhos e pássaros maiores, cobras, tatus, cachorros do mato cavando sobre os buracos dos tatus para pegá-los, insetos barulhentos ou muito quietos, vaga-lumes que nunca me esquecerei, de vez em quando uma jaguatirica dava o ar da graça mostrando a cara por detrás de uma árvore, gente simples que cumprimenta todo mundo semi-tirando o chapéu e muito eucalipto rangendo assustadoramente esfregando-se uns aos outros, farfalhando suas folhas cheirosas, que dão um bom xarope; eucaliptos colossais que espetavam o céu de um azul tranquilizador.
            Nossa chácara era num morro, com um barraco de madeira erguido no meio, uma escada cavada na terra, alguma plantação, um poço mais acima e um banheiro que era uma fossa cavada no chão, com uma plataforma e um buraco, e uma estrutura de pau-a-pique para abrigar quem fosse fazer suas necessidades. O desejo do meu pai era construir uma casa para passarmos finais de semana e até a semana toda, mas ficou só no desejo.
               A primeira vez que fomos passar um final de semana na chácara, choveu e a água começou a escorrer por dentro do barraco e o beliche afundou na terra molhada. Meu pai mandou minha mãe e eu para a parte de cima do beliche, pegou a enxada e abriu um canal no meio do barraco para que a água, que invadia nosso lar, escorresse e saísse pelo outro lado. Deu certo e lembro-me de ter me divertido, até onde foi possível, com a aventura; afinal tinha cerca de sete anos.
            No sonho que tive com meu pai, vi-o sair do barraco, no meio da chuva, com a enxada nas mãos e passos decididos que afundavam na lama e minha mãe me abraçando, assustada, gritando que ele voltasse. Com a porta aberta, o vento apagou o lampião e o medo do que havia dentro da escuridão me fez molhar o pijama. Alguns segundos depois a chuva parou e após mais alguns segundos meu pai voltou e, sem esbarrar em nada, riscou o fósforo, que iluminou seu rosto sério, e acendeu o lampião.
            Ele estava encharcado, a água pingava da aba do chapéu, sentou-se em silêncio e a cadeira foi afundando no barro. Quando ele se deu conta e levantou, vimos um corte do lado direito do seu rosto. Ele disse que foi um galho de árvore que o machucou. Minha mãe desceu do beliche e foi cuidar do ferimento. Lembro-me de ouvi-lo dizer para minha mãe, com voz trêmula, que o corte foi pequeno porque teve sorte. Lembro-me também de ver os pés da minha mãe afundando no barro.
            Aí o sonho mudou para nossa casa em São Paulo.
            Naquele tempo meu pai estava exagerando um pouco na bebida, mas naquele dia ele não bebeu e mostrou-se preocupado, distante, falou pouco. De tempos em tempos ele ficava assim e hoje sei que a primeira vez foi naquele final de semana lá na chácara.
            Era um dia quente, com passarinhos cantando o dia todo na árvore da calçada, o rádio da vizinha tocando música, mas houve um momento como se o mundo parasse e o tempo mudasse num piscar de olhos. Meu pai mandou que ficássemos dentro de casa e saiu. Estava tenso. Minha mãe e eu tivemos a quase certeza de termos visto um vulto pela janela indo na mesma direção que ele foi.
            Estava com frio e minha mãe abrigou-me num abraço apertado. Ouvi seu coração batendo mais alto e a respiração mais rápida. Perguntei o que estava acontecendo e ela não respondeu, mas murmurava alguma coisa, tipo uma oração. Assim como a chuva passou rápido naquela noite lá na chácara, o frio passou e os passarinhos voltaram a cantar e o rádio da vizinha continuou a tocar música e o sol ainda estava quente.
               Quando meu pai entrou em casa com a mesma cara séria, notei que suas mãos tremiam e ele foi direto para o quarto. Minha mãe foi atrás e, da sala, ouvi uma conversa distante, tensa e ininteligível. Lá fora as plantas da minha mãe, que ficavam no corredor ao lado da casa, estavam pretas e murchas; não parecia que foram queimadas com fogo. Naquela noite meu pai não fez desenhos de carros e tratores comigo antes da hora do jantar; ele nem jantou.
               E o sonho pulou para a chácara outra vez.
               O dia amanhecendo, o cheiro apetitoso das folhas de eucalipto, o orvalho reluzindo, a terra úmida e o céu azul surgindo por detrás das árvores deixaram-me animado. Eu queria andar junto com meu pai, falar com ele, contar causos de criança, fazer perguntas, mas ele não estava por perto. Uma sensação de medo começou a incomodar-me quando minha mãe mandou que eu entrasse e fechou a porta do barraco. Os passarinhos pararam de cantar e os eucaliptos pareciam mais nervosos, rangendo mais alto e farfalhando assustadoramente suas folhas. Vimos, por debaixo da porta, uma sombra passando bem devagar para o lado de cima da chácara.
               Não demorou muito e meu pai entrou, com a mesma cara séria das outras vezes. Os passarinhos demoraram a cartar novamente e os eucaliptos acalmaram-se um pouco. Decidiram que voltaríamos para São Paulo o mais rápido possível e enquanto arrumavam as coisas, fui até perto do poço, na parte de cima da chácara. Gostava de olhar de lá de cima o telhado do barraco, as laranjeiras, os limoeiros, os pés de cana e de milho, a horta de alface, os abacaxis, as bananeiras, as abóboras como que esquecidas no chão, tudo cercado por eucaliptos gigantescos nas duas laterais e nos fundos. Na frente do terreno, lá embaixo, a rua de terra por onde passava o carro do Seu Jairo, dono da chácara no fim da rua sem saída.
               Olhei a paisagem em volta e uma coisa andando entre os eucaliptos, do lado esquerdo, chamou minha atenção. De onde estava não consegui ver direito, então desci e contornei o barraco. Ouvi meu pai, lá dentro, dizendo para minha mãe que era mais seguro ficarmos em São Paulo, que se alguma coisa grave acontecesse comigo seria mais rápido de socorrer. Nem dei bola e continuei na direção do que me chamou a atenção. Parei na porta do barraco e olhei para a trilha que meu pai costumava usar para cortar caminho quando queria ir para a rua de cima. Era uma trilha quase inexistente, entre os eucaliptos, com o chão forrado de folhas que crepitavam debaixo dos pés.
               Entrei no que achei ser a trilha e fui subindo, subindo e subindo. Vi uma coisa comprida e preta no caminho e em volta as folhas no chão estavam pretas também, como as plantas da minha mãe naquele dia, lá em casa. Cheguei mais perto e vi que a coisa comprida era uma cobra morta. Sabia qual era a sua cor original e tentei controlar o pavor, mas não deu. Corri pelo caminho que pensei ser o de volta e não cheguei a lugar nenhum quando já devia ter chego à porta do barraco.
Parei e olhei em volta, com a certeza de estar perdido. Entre os eucaliptos que rangiam, senti a temperatura baixar rapidamente e toda a vida parou de se manifestar a minha volta. Vi um vulto de gente deslizar a uns trinta metros de distância. Parecia que vestia um manto comprido com capuz e carregava uma enxada apoiada no ombro, com a lâmina para cima. Bem lá de longe ouvi uma voz me chamando e, nessa hora, a pessoa de capuz virou-se para mim e tive a quase certeza de ver dois brilhos vermelhos saírem de seus olhos.
Não consegui respirar, não havia mais ar onde eu estava. E sem ar ninguém tem controle sobre o próprio corpo. Devo ter cambaleado, me debatido ou simplesmente desmaiado e logo morrido. Durante esse processo, que no sonho pareceu real, vi aquela figura de capuz flutuando, olhando para mim com duas luzes vermelhas no rosto inexistente, e segurando uma ferramenta que, com certeza, não era uma enxada.
E sonho mudou de local.
               Como se saísse de um túnel, ou de um torpor, através de uma luz leitosa e quase tensa, vi uma sala branca e ouvi um chiado. Aos poucos defini, mesmo que embaçado, o rosto do meu pai, depois o da minha mãe, depois o de uma mulher vestida de branco que não reconheci. Senti um pouco de vida voltar ao meu corpo e os músculos ainda moles.
               Acho que com onze ou doze anos passei a ter crises fortes de bronquite e as noites eram terríveis. Meu pai não dormia e, praticamente toda noite, me colocava sentado nos seus ombros, me segurava pelas pernas e braços e me levava rua à cima, a toda velocidade, até o pronto socorro do Hospital Santa Cruz, para fazer inalação. Hoje sei que resistindo àquela pressão toda, ele bebia um pouco só de manhã, para acalmar o sangue, porquê precisaria estar inteiro de noite para me carregar até o pronto socorro.
               Essa parte do sonho aconteceu de verdade. Foi a pior crise de falta de ar que tive naquela época e cheguei ao hospital desmaiado, sem respirar e gelado. Quando abri os olhos e identifiquei os rostos, meu pai estava chorando. Até seu último instante de vida só o vi chorar naquele momento. É possível que tenha chorado em outras ocasiões, mas na minha frente só daquela vez.
               E foi naquele dia, também, que vi pela primeira vez uma pessoa morta. Era uma senhora numa maca do outro lado da sala onde eu estava. Enquanto o médico olhava no relógio, um enfermeiro cobria o corpo preto fosco. Aconteceu com aquele corpo o mesmo que com as plantas da minha mãe e a cobra na trilha. Lembro-me de ouvir o médico reclamando que não entendia porquê ela morreu; aquela senhora já estava estável e fora de perigo.
               E o sonho me levou para adiante numa linha do tempo que era a minha história de vida.
               Desembarquei aos quinze anos, no dia do meu primeiro porre. Estava jogando dominó com os amigos e o copo de cerveja não chegava à metade; por mais que eu bebesse o copo sempre estava cheio! Erro de principiante! Resultado: fui encontrado no banheiro, com a cabeça caída dentro do vaso sanitário após vomitar. Depois meus amigos bêbados levaram-me para andar, tentando fazer passar o efeito do álcool. Saí pela rua da madrugada andando de quatro e vomitando. Não sei como, mas fui levado para casa e colocado na minha cama. E, lá, deitado, vomitei outra vez.
               Essa parte do sonho é um pouco confusa, mas como aconteceu de verdade e pelo que fiquei sabendo depois, posso deduzir que meu pai levantou-se, incomodado com o barulho, e encontrou-me quase afogado no meu próprio vômito. A parte mais nítida do sonho foi a água fria caindo do chuveiro sobre mim. Meu pai dava tapas no meu rosto, me chacoalhava, esfregava meus braços e tentava manter-me acordado.
               Vários tapas depois tomei um pouco de ciência do que acontecia e vi, onde a luz não chegava, o que parecia serem dois olhos vermelhos. E onde a luz do banheiro alcançava, quase encostada ao chão, tive a impressão de ver a barra desfiada de um trapo muito sujo e, lá no alto, o brilho de um metal contra a luz.
               Após aquele dia tivemos um período calmo: não tive mais coragem de beber e meu pai parou por um bom tempo. Mas o sonho não teve piedade de mim; correu, sem que eu percebesse, para o dia mais difícil da minha vida: meu pai teve um infarto e chegou ao hospital segurando-se firme a um fio de vida!
               Após a sua internação, aconselharam-nos a irmos para casa, mas ficamos; tanto no sonho como na realidade. Como se alguma coisa me chamasse, olhei para fora e vi passando por detrás de um pilar o vulto que apareceu em outras ocasiões; só não via seus olhos. Tudo virou silêncio e a temperatura caiu rapidamente. Aquele vulto vinha andando na minha direção, com pés inexistentes, e por dentro do capuz, os olhos outrora vermelhos, apagados. Ele não carregava uma enxada; era uma foice.
               O sonho correu adiante, mas devo dizer aqui o que aconteceu de verdade naquela noite.
               Estava tentando consolar minha mãe e o medo de ser o homem da casa com trinta anos era meu foco. Sentimos um calafrio ao mesmo tempo e fomos atrás de informações sobre meu pai. Ninguém dava informação alguma, mas ouvimos uma enfermeira falando ao telefone e como ela mencionou o nome dele e solicitou uma vaga na UTI, deduzimos que estava vivo.
               E meu pai viveu por mais tempo do que imaginei que seria capaz, afinal ficou com algumas sequelas e sua vitalidade diminuiu rápido. Foi um período que tive a oportunidade de aprender sobre a velhice, desmistifica-la um pouco e deixar de ter medo de envelhecer.
               Voltando ao sonho...
               Como disse, meu pai ficou com algumas sequelas e uma delas era engasgar com facilidade. Então ele foi internado com quadro de pneumonia provocada, provavelmente, por um grãozinho de arroz que foi parar no pulmão após um engasgo e infeccionou. Mesmo solicitando a sua liberação e me prontificando a leva-lo ao hospital todo dia para tomar o antibiótico, que não era vendido em farmácias, por causa da sua debilidade física decidiram que ele ficaria internado. E o que eu temia aconteceu: contraiu duas infecções hospitalares, ficando quase vinte dias internado.
               Em várias ocasiões teve falta de ar intensa e, na sua condição física, tive medo de uma parada cárdio-respiratória. Quando isso acontecia, aquele vulto de manto comprido e capuz aparecia refletido na noite por trás do vidro da janela, com os olhos vermelhos apagados. Eu, numa ingenuidade de desesperado, segurava a mão do meu pai para que, caso ele morresse, pudesse trazer sua vida de volta.
               As imagens no sonho passaram rápidas de internação em internação; de pneumonia em pneumonia; de infecção hospitalar em infecção hospitalar. E a figura de manto negro, capuz e foice aparecia sempre no reflexo noturno da janela do quanto do hospital, com os olhos apagados.
               E, veloz como o piscar de olhos, o sonho levou-me para meus quarenta anos. Vi-me em casa sem poder respirar e minha mãe ligando para alguém ajudar a me socorrer. Mas o que me fez esquecer minha mazela por dois segundos foi ver meu pai andando rápido, com um equilíbrio que não tinha mais por causa da sequela adquirida, rumo à sala e apontar o dedo em riste para o alto, na direção de dois olhos brilhantes e vermelhos.
               Acordei, ou penso que acordei, no hospital, com um monte de gente de branco falando e falando uns com os outros e o ar faltava-me ainda mais. As imagens pareciam um pouco embaçadas, mas vi minha mãe falando e gesticulando nervosa com um médico e, atrás dela, a figura de capuz, flutuando a um palmo do chão, com os olhos vermelhos acesos e a lâmina da foice brilhando. Sem controle do meu próprio corpo, sem ar, sentindo de verdade que morreria, querendo levantar-me e tirar minha mãe de perto daquela figura, comecei a sentir frio e mais frio e mais frio.
               Então tudo parou, e no silêncio aquele barulho que ninguém quer ouvir num hospital; aquele sinal sonoro que a máquina emite quando dá “game over”, quando a pessoa desliga, quando alguém que é importante para alguém falece, soou alto, estridente, comprido, sem volta.
               A falta de ar parou como num passe de mágica e senti muito sono. Antes de fechar os olhos, vi, numa maca ao meu lado, o corpo preto fosco, como outros que já vi, de um homem de idade avançada sendo coberto com um lençol e os médicos discutindo o que poderia ter acontecido, já que o paciente estava estabilizado.
               E dentro do sonho, pseudoacordei fazendo massagem cardíaca no meu pai, na manhã de um domingo lindo. Minha mãe desesperada e eu concentrado. Enquanto isso, a figura indesejada, com os olhos apagados e a foice abaixada, como se não precisasse mais dela, estava ao meu lado. Os passarinhos cantavam na árvore do jardim, a vida pulsava na rua, o sol brilhava mostrando as cores como elas realmente são, um dia inesquecível de tão lindo!
               E essa mesma figura, com a mesma atitude de cansaço, de olhos apagados, apareceu ao meu na delegacia, para fazer o B.O. e no reconhecimento e liberação do corpo. Foi um entardecer memorável de tão gostoso.
               A figura indesejada também esteve presente no velório, sem sair do lado do caixão, como se sentisse mais do que eu a morte do meu pai, que acabara de comemorar oitenta e seis anos de vida e quarenta e cinco de casamento. Sabíamos que essa hora estava próxima por causa de suas condições físicas, mas não sabíamos como ou quando aconteceria.
               No dia seguinte, durante o enterro, numa manhã ensolarada, essa presença desapareceu, não sei por quanto tempo, quando caminhei em sua direção gritando a única pergunta conhecida que não tem resposta:
          —Por que?

CRIATURAS FANTÁSTICAS

Bom dia amigos do DTRL. A consideração de vocês chega a me emocionar! Muito obrigado por isso. Hoje, 30 de novembro, faz três meses que a Criatura Fantástica, que conheci como meu pai, se foi, por isso gostaria de fazer algumas considerações e até justificativas: pode parecer que estou ausente das mídias do DTRL por necessitar de um tempo, mas, na verdade, estou envolvido e absorvido por outros projetos também, além de estar sem whatsapp no momento. Escrever este conto foi uma alegria, ao invés da tristeza que possam imaginar, porque colocar meu pai na literatura era um sonho antigo. E foi fácil também porque as lembranças são nítidas; a maioria do que foi descrito no conto aconteceu mesmo e o que parece literatura é literatura mesmo. Sinto que falta muito de literatura ainda, afinal foi escrito em dois dias. Então, amigos, comentem a literatura também, sem receio algum. Também comemoro um ano de DTRL e, como já disse várias vezes, foi o que preencheu um espaço importante que estava vago na minha vida: o espaço da arte. Um abraço carinhoso e respeitoso a todos.
Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 26/11/2015
Reeditado em 30/11/2015
Código do texto: T5461172
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