O Medo de Aline

- Eu tenho medo de altura.

- Eu tenho medo de aranhas.

- Eu tenho medo de tubarões.

- Eu tenho medo de cortadores de grama.

- Han?

- Ué, eu tenho medo. Aquele barulho me apavora. Aliás, mais pessoas morrem por causa de cortadores de grama do que por causa de tubarões, sabia? - Disse Isabelle. Nenhum de nós nunca tinha visto um cortador de grama pessoalmente, só na televisão.

- E você Aline, do que você tem medo?

- Do asilo. - Respondi, arrepiada, ajeitando os óculos. O resto você pode adivinhar: eles me convenceram a ir até o asilo. Ah, você não é da minha cidade, deixa eu te explicar: ele é o tipo de lugar onde crianças com insônia podem brincar na rua até tarde da noite. Bem, tecnicamente nós somos... éramos, adolescentes. Mas todo mundo nos chama de criança. Enfim, no meio da nossa cidade há um grande asilo desativado, uma construção antiga. As lendas da cidade giram em torno dele. Um lugar ótimo para uma brincadeira muito da sem graça.

Jadson arranjou duas lanternas para o grupo, nós entramos. O portão ficava sempre aberto, as pessoas usavam o terreno do asilo como depósito de lixo, de tempos em tempos a prefeitura manda. limpar. Jadson é muçulmano: usava chapéu de aba reta, brincos, projeto de bigodinho, traços árabes... Eu não sei muito sobre sua religião, só de algumas coisas que ele não pode fazer. Por exemplo, ele sempre usa camisas largas e calças, pois diz que nunca pode mostrar nenhuma parte do seu corpo abaixo do umbigo. Eu tinha pena dele, ainda mais nos dias quentes.

- Soube que o asilo foi fechado porque mataram um monte de velhinhos lá dentro, e... - Comecei, mas fui interrompida.

- Sim, sim, todo mundo sabe disso. E de um monte de outras histórias. - Era Maria, a loirinha que liderava o grupo. Tinha uma lanterna, Jadson a outra. Lá dentro, silêncio absoluto. E escuridão. Exceto Maria e Jadson, todos estavam visivelmente apavorados, mas ninguém tinha coragem de admitir. Coisa de criança. Eu tinha constantemente a sensação de que havia alguém me olhando.

- Será que tem aranhas? - Disse Valéria finalmente, tremendo, agarrada a mim. Ela era morena, cabelo cacheado. Tinha quinze, era bem alta, mas magra como uma tábua.

- Andem logo. - Ordenou Maria, mandona. - Vamos explorar todo o asilo e provar de uma vez por todas que não tem absolutamente nada aqui para ter medo.

- Só aranhas. - Alguém disse.

- E ratos. - Outro falou.

- E baratas.

- E poeira.

- E fantasmas.

- E mosquitos assassinos. Vocês sabiam que mosquitos matam mais do que...?

- Ah, calem a boca! - Gritou Maria, a voz ecoou. Nem havíamos passado ainda pelo que já foi a recepção. Finalmente entramos em uma porta, atravessamos um corredor. Tive vontade de sair correndo, mas agora não dava mais, porque para voltar eu teria que passar por aquela recepção escura e assustadora.

- Ai gente, tem alguém ali. - Apavorou-se Valéria. Jadson rapidamente apontou para a direção. Era só um quadro velho, sujo com alguma coisa, talvez tinta, talvez sangue seco, ou o que for, que ocultava o rosto da pessoa com roupas medievais. Alguma coisa caiu. Um vaso, talvez, fazendo muito barulho. Quase todos gritaram.

- Gente, melhor irmos embora. - Falei. - Por favor, vamos embora. Por favor...

- Isso mesmo, vamos embora. Estou começando a ficar com sono. - Disse Valéria.

- Eu também, preciso dormir. - Menti, forçando um bocejo. Mas eu minto muito mal, eles devem ter notado.

- Também preciso, minha mãe vai ficar preocupada. - Valéria bocejou também. Ah, não precisa segurar, eu sei que você quer bocejar também.

- Calma meninas, não vai acontecer nada. - Disse Jadson. - É só um lugar vazio. Não tem nenhum fantasma nem nada disso aqui.

- Vejam, que interessante. - Disse Maria. Chegamos a um tipo de arquivo, uma sala cheia de documentos, pastas e livros muito, muito, velhos. Finalmente alguma coisa legal. Planejei voltar, no dia seguinte, para dar uma olhada nesses documentos. Seguimos em frente. Outra coisa caiu, fazendo bastante barulho.

- Eu vou pegar vocês! - Gritou uma voz gultural. - Eu vou pegar vocês!

- Corre! Corre! - Valéria berrou.

- O que tá acontecendo? - Um de nós disse.

- Corre gente, corre.

- Vamos por aqui.

- Não, esperem, não saiam do lugar. - Maria ordenou, Jadson segurou Valéria. Nesse momento comecei a desconfiar que fosse algum tipo de brincadeira, já que eu não acredito em fantasmas e coisa do tipo. Se eu tive medo? Claro que tive. Essas coisas não existem, mas vai que... Enfim, depois disso a loira sussurrou. - Vocês sabem de onde veio o barulho? Não podemos sair correndo assim, vamos acabar nos machucando.

- Você é louca? Vamos embora logo.

- Calma Aline, calma. Você tá tremendo. - Marco me abraçou. Era meu melhor amigo. Doce, gentil, um amor de pessoa. Eu me sentia muito segura perto dele.

- O grito veio de trás de nós, da entrada. - Disse Jadson, fazendo-me arregalar os olhos. Não tinha certeza, para mim parecia ter vindo de todos os lugares. - Precisamos pensar bem no que fazer. Alguém trouxe celular? Isabelle, você não desgruda do seu, liga para alguém ai.

- Eu não posso. - Disse Belle, a patricinha do grupo. Pelo menos na aparência, porque nem tinha tanto dinheiro. Ela era a única que já tinha beijado alguém, por isso todo mundo dizia que ela era muito "pra frente". Para frente seguimos. Descemos uma escada para baixo, Maria adiante, Jadson na retaguarda. Mal atravessei a porta, Maria pareceu se assustar com alguma coisa. Com o medo, demorei a entender.

- Belle, cuidado! - Maria tentou segurar a voz. - Cuidado Belle, olha aquilo ali.

- O quê? O quê? Ah... - Quando Belle percebeu ficou furiosa, Maria soltou uma risada abafada. Era um cortador de grama, muito antigo, manual, encostado na parede. Só Maria e Jadson (que permaneceu do lado de fora, vigiando a escada) riram.

- Não é momento para isso!. - Repreendeu Marco, que se arrependeu logo depois. Poucas coisas metiam medo nele, duas em especial: Tubarões e Maria.

- Olha só como tu fala comigo, hein. - Maria era baixinha, mas encrenqueira.

Jadson gritou, a lanterna dele caiu, a porta se fechou. Tentamos abri-la, mas foi trancada por fora - lembrando agora, parecia que a pessoa em questão (se é que era uma pessoa, na hora até cogitei a possibilidade de ser algo não-humano) teve um pouco de dificuldade para trancar, já que tudo era muito velho, mas nós demoramos demais para reagir.

- Agora como vamos voltar? - Perguntei.

- Será que tem outra saída? - Disse Valéria.

Maria se adiantou, Marco pegou a lanterna de Jadson que caiu do lado de cá da porta, ficando na posição dele de vigiar a retaguarda. Tive a sensação de que o lugar ficava mais frio quanto mais avançávamos. Procuramos por um minuto aproximadamente uma saída, mas só víamos quartos. Eu tremia compulsivamente. Ouvi um barulho, algo muito baixo, que só eu e Marco prestamos atenção e olhamos para trás. Ele buscou com a luz alguma coisa, provavelmente achou que fosse um rato.

- Calma Aline. - Ele se aproximou e acariciou minhas costas. - Vai ficar tudo bem. - Suas palavras foram pontuadas por uma tremida e um gemido. Demorei um segundo para perceber o que havia acontecido. A lanterna, depois Marco, cairam no chão. Tive a sensação de ter visto um vulto. Maria apontou a lanterna rapidamente, Marco estava morto, uma facada bem aplicada nas costas. Finalmente apavorada ela mirou sua luz em todas as direções, suas mãos tremiam.

- Marco! Marco! - Valéria se jogou no chão ao lado dele, chorando. - Eu falei! Eu falei pra gente ir embora. Eu falei.

- Ele está... Ele parou de se mexer. - Eu disse, as lágrimas caindo. - É só um corpo morto agora. Precisamos sair daqui logo.

- T-tem razão. - Disse Maria. - Vamos embora, rápido.

Peguei a lanterna, avançamos. Alguma coisa nos atacou, depois sumiu na escuridão. Quem seria o próximo? Eu não queria morrer. Não, deve ser horrível. Uma hora você está ali, consciente, respirando, muito bem, e então... Você desaparece. Simplesmente deixa de existir. É apavorante, angustiante demais. Eu não quero isso, não podia deixar isso acontecer de jeito nenhum. Mas o que eu poderia fazer? Era fraca demais. Impotente. Não tinha o que fazer. Sem Marco e Jadson éramos apenas quatro meninas apavoradas. Sussurrava para mim mesmo: "não quero morrer, não quero morrer, não quero morrer". Eu estava na posição de Marco agora, protegendo a retaguarda. Então, eu era a próxima. Não, não podia ser eu...

Deixei a lanterna cair de propósito.

- Gente, eu não consigo. - Disse, chorando. - Por favor, alguém fica com a lanterna, minhas mãos estão tremendo muito.

Valéria de mim e ficou na retaguarda. Após alguns momentos, que pareceram uma eternidade, voltamos ao lugar onde Jadson desapareceu. Parece que andamos em círculos sem perceber. A porta estava aberta. Era nossa chance, talvez o assassino estivesse atrás de nós. Subimos a escada correndo. Valeria esqueceu de olhar a retaguarda. Mal passei pelo último degrau, ouvi algo estranho atrás de nós. A morena gritou e caiu escada abaixo. Eu e Maria nem olhamos, não tínhamos tempo a perder, continuamos correndo.

- Para onde é a saída? - Ela me perguntou.

- Eu... Eu não sei.

- Como você não sabe?!

- Você também não sabe!

- Sua tonta!

- Tonta é você!

- Ah, lá está ele! - Maria gritou e jogou a lanterna no chão, fugindo para a escuridão. Pulei para dentro de um armário e fechei a porta. Quieta, tentei me concentrar o máximo possível para ouvir alguma coisa. Silêncio total, por meio minuto, até que ouvi um berro de Maria, uma pancada seca. Depois veio um som estranho, que eu não pude identificar, talvez algo sendo cortado. Por fim ouvi alguma coisa sendo arrastada pelo chão, e depois o silêncio de novo. Ai eu fiquei bem quietinha por não sei quanto tempo. Pareceram horas, mas talvez minha noção de tempo tenha sido afetada pelo medo. Até que ouvi a voz de Marco me chamar, não muito alto:

- Aline! Aline! Está tudo bem. Aline!

Sai do armário, devagar. Vi a lanterna, posicionada em um canto para iluminar o corpo da Maria em uma poça de sangue. Aquela menina viva, mandona, corajosa, agora é pouco mais que uma pedra. Um corpo sem cabeça. Senti vontade de vomitar, de gritar, de sair correndo, mas peguei a lanterna e marchei na direção onde achei que veio a voz de Marco. Estava confusa, tinha certeza que vi Marco morrer. Mas se ele estava me chamando, só podia estar vivo. E seguro, ele não ia me colocar em perigo.

- Aline! Está tudo bem. Aline! Aline!

- Estou indo! Onde você tá?

Silêncio. Vi um rastro de sangue. Por precaução, fui na direção oposta. Os corredores pareciam todos iguais. Tudo muito velho, cheio de teias de aranha, vazamentos, cheiro de mofo. Cheguei no alto daquele lance de escadas onde Jadson e Valéria desapareceram. Estava super desorientada.

- Está tudo bem. Aline! - Ouvi a voz de Marco de novo, agora bem perto. Reconheci o lugar, vinha daquele arquivo com vários documentos.

- Marco?

- Aline! Está tudo bem. Aline! Aline! Está tudo bem. Aline! Aline! - Era uma pequena caixa de som, que foi instalada em cima da mesa depois que passamos por ali. O som ecoava pelo lugar. Era uma armadilha. Sai correndo, na direção da recepção, gritando por socorro. Tropecei em algo... Não olhei o que era, mas tenho certeza que era uma cabeça. Meus óculos voaram longe. Peguei a lanterna e corri assim mesmo, com a vista embaçada.

Cheguei na recepção e vi algo, alguém, com um manto negro - como a representação da morte - me esperando com um facão ensanguentado na mão. Parei. Gritei por socorro o mais forte que pude, corri de novo aquele lance de escada onde Valéria e Jadson sumiram. No desespero, acabei tropeçando nos degraus e rolei escada abaixo. Foi ai que eu desmaiei.

***************

- Isso é tudo o que eu consigo lembrar. - Diz Aline, que ainda se sente muito desconfortável na delegacia.

- Quando você acordou?

- No colo do meu pai que tava correndo desesperado comigo pela rua. É só o que eu sei.

- Tem certeza que não lembra de mais nada?

- Tenho sim, é tudo o que eu me lembro.

- Tudo bem, obrigado querida. Você passou por um trauma enorme, vá para casa descansar. Quanto tivermos mais notícias você será informada, ok?

- Ok, obrigada. Onde fica o banheiro?

- Ali.

Ao chegar ao banheiro, Aline verifica se não há ninguém por perto e faz uma ligação, sussurrando.

- Jadson, tudo bem? Sim, já dei o depoimento. Ele caiu na história como um patinho, nunca que alguém ia desconfiar que uma mocinha inocente como eu ajudou a matar os próprios amigos. Fiz a cara mais triste que eu pude. Tá bom, tchau. Salaam Aleikum.