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A MÃE (PARTE FINAL)
 
 
A noite decorreu de forma tortuosa para André. Logo que a polícia chegou à capela, procedeu aos trâmites habituais. Ele estava visivelmente perturbado, conduziram-no ao posto policial onde, juntamente com o coveiro e guarda do cemitério, que o havia encontrado adormecido, prestou declarações.
O comissário Chaves supervisionou o interrogatório, com o guarda Meireles a tomar nota.
André referiu o nome e idade da mãe, Adelaide Cunha Dias, de setenta e nove anos, que supostamente teria falecido vítima de AVC. Referiu que há alguns anos lhe tinham diagnosticado o mal de Parkinson, o que limitava e muito as suas faculdades motoras.
Entretanto, pelas cinco da manhã, chegou um grupo de polícias que tinha sido encarregue de procurar a vítima, supostamente desaparecida. Os recém-chegados conferenciaram com o comissário em voz baixa, a alguma distância de André.
Depois de algumas tossidelas, o comissário Chaves sentou-se ao lado dele e deu-lhe uma palmada amigável nos ombros.
- Então, senhor… André Cunha. Está mais calmo? Eu sei que as circunstâncias são más, mas o que tenho para lhe dizer ainda é mais aterrador – fez uma pausa e continuou. – Os meus colegas encontraram o corpo a cerca de duzentos metros da capela, numa viela ao lado de um restaurante oriental. Não foi fácil devido à escuridão. O pior foi constatarem que o corpo tinha a roupa parcialmente rasgada e apresentava sinais de violência, para além de marcas de mordidelas de ratos nas pernas. Parece-me que o tal restaurante tem de ser visitado pelos serviços da Autoridade Alimentar, tal o estado de nojice em que as traseiras se encontram, muitos restos de comida, que atraem os roedores. Admira-me que a senhora sua mãe tenha conseguido ir tão longe, certamente desorientada, deve ter caminhado com muita dificuldade na direção mais luminosa, pois apercebi-me que a rua era bastante escura e aquela hora já todos dormiam, o único local apelativo era o tal restaurante, bem iluminado pelos reclames fluorescentes. À primeira vista, parece que ela chegou lá pelos seus próprios meios. Fiquei perplexo pelo facto de ela ter saído assim da capela, mas talvez por ter percebido que tinha estado dentro do caixão deve ter ficado aterrada e fugiu sem ligar a mais nada, nem o viu. Bem, isto é o que supomos mas ainda iremos fazer umas peritagens, para além do corpo ir ser autopsiado, como é regra.
André olhava para ele, aparvalhado, sem perceber aquilo que ouvia, tão surreal era a situação. Antes de ir embora, por solicitação do comissário Chaves, referiu os nomes e contactos de todos os presentes no velório daquela noite. Depois, um carro da polícia levou-o até casa.
Durante alguns dias deram-lhe apoio por parte de um psicólogo da polícia, em sessões realizadas nas instalações daquela corporação.
Dois dias depois, o comissário esperou por ele à saída da sala onde tivera sessão de apoio psicológico e levou-o até à sua sala. Ali, convidou-o a sentar-se e referiu que o relatório preliminar estava concluído e ia lê-lo para que André ficasse bem ciente do que ocorrera.
- Pois bem. Desculpe-me se vou ser moroso, pois este assunto, pelo insólito, também nos impressionou. Fizemos uma reconstituição dos factos, tendo em conta tudo o que apurámos e a conclusão foi a seguinte: A única explicação para o facto de parecer morta é ter sido vítima de catalepsia patológica, que a deixou com sinais de morte aparente durante um número variável de horas. Pelo que o médico legista me transmitiu é uma ocorrência rara, que pode estar associada ao mal de Parkinson, de que sofria. De qualquer modo, acho que o médico que lhe passou a certidão é de uma incompetência gritante. Esta situação não é admissível na atualidade, constam vários registos de situações análogas mas acontecidas há muitos anos. Enfim… - Bebeu um gole de água e continuou. - Pela autopsia, ficámos a saber duas coisas: Que o óbito ocorreu entre a uma e a uma e meia e também que a morte foi motivada por estrangulamento. O que mais choca é que também foi vítima de tentativa de violação. O patologista recolheu provas evidentes dessa atrocidade.
André ficou em choque… Depois de tudo o que aconteceu, a mãe fora vítima de violação ou pelo menos de tentativa… “Melhor seria que a morte tivesse sido real na hora em que o médico anteriormente tinha declarado o óbito, certamente que ela assim não teria sofrido tanto nas últimas horas de vida.”
O comissário Chaves referiu ainda que o inquérito teria mais algumas diligências a cumprir mas no seu entender, no prazo máximo de dois dias poderia organizar novo funeral. Garantiu-lhe que a polícia faria tudo o que estivesse ao seu alcance para capturar os autores do hediondo ato.
Decorrido esse tempo, o funeral decorreu sem problemas, desta vez acompanhado por mais pessoas e André respirou fundo quando por fim o corpo foi baixado na cova e sete palmos de terra cobriram o esquife.
Cerca de duas semanas depois, o comissário telefonou-lhe convidando-o a comparecer no posto.
De novo foi conduzido para outra sala e depois de se sentar, o graduado Chaves referiu aqueles que considerava serem os derradeiros factos do crime.
- Pois bem, senhor André… Já capturámos os autores, foram dois sem-abrigo que já confessaram o crime após um longo interrogatório. Disseram que tinham encontrado a senhora sua mãe caída no local, nas traseiras do restaurante, debruçada sobre os restos de comida e alguns ratos a cercá-la. Estava desmaiada, certamente do esforço que fizera para chegar até ali. Revistaram-na e ficaram danados por não lhe encontrarem carteira ou valores. Um deles agrediu-a a pontapé, o outro então chamou-lhe a atenção pelo facto de a vítima estar caída meia exposta e tomado de desejo insano tentou violá-la mas não tendo conseguido, apertou-lhe fortemente o pescoço até a estrangular. Entretanto ouviram barulho, tiveram medo que alguém aparecesse e fugiram mas a senhora já estava morta. Você deve estar a interrogar-se como é que foram apanhados… Pois aconteceu que interrogámos a vizinhança e o certo é que os malandros tinham feito barulho, uma senhora que mora em frente do restaurante, certamente com insónia, espreitou pelo vidro da janela e viu-os, reconhecendo-os pois costumavam andar por ali a catar comida. Ela já cá veio testemunhar e tendo sido detidos, reconheceu-os na fila de identificação, sem dúvida alguma. Agora será apenas uma questão processual até o caso ir a tribunal e os desgraçados serem julgados e punidos. Claro que terá de testemunhar, tal como a vizinha do restaurante, peça vital nesta situação. Senhor André, de momento é tudo, depois irá ser convocado para comparecer em tribunal. – Apertou-lhe a mão. - Pelo menos desta vez a polícia apanhou os culpados, não é verdade?
- Muito obrigado por tudo, senhor comissário. Ficarei eternamente agradecido, quer a si quer aos restantes polícias que intervieram no caso. E também aquela senhora, que graças a uma inconveniente insónia ajudou e muito a capturar esses animais…
Despediu-se emocionado e depois de entrar no carro, dirigiu-se a casa. Pelo caminho surpreendeu-se pelo facto de há dias não chorar… Mas o sofrimento por que passara fora imenso e as lágrimas tinham sido substituídas pela revolta e pela sede de vingança. Sabia que o Código Penal português tinha penas muito brandas para assassinos, tanto fazia matarem uma pessoa ou vinte, o máximo previsto seria de vinte e cinco anos e raramente eram cumpridos mais de dois terços da pena. «Paciência, pelo menos teriam um longo período de “sombra”, afastados da sociedade.»
 
 
 
 
 
 
 
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 16/12/2015
Reeditado em 16/12/2015
Código do texto: T5481838
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