Abominação

I

O que vou lhes contar agora é a verdadeira estória por trás de recortes de uma série de publicações feitas por William B. no ano de 1980 no jornal semanal The Inquisitor. O caso me chamou atenção, em um primeiro momento, por ser uma estruturada sequência de contos, a meu ver, de horror psicológico e, de certa forma, sobrenatural. Entretanto, maravilhado e interessado em saber dos por menores do processo criativo do autor, fui ao encontro de William no ano de 1995.

O senhor William agora morava no interior, em uma cidade decrépita de nosso estado, nas esquinas das ruas Ellm com Backer Hills. A casa, caindo aos pedaços, não possuía nem energia elétrica, muito menos água encanada. Will (a parti daqui tratá-lo-ei desta forma) trabalhava como “jardineiro” dos moradores da pequena cidade, sendo responsável por limpar aquele solo arenoso das ervas daninhas que se estendiam pelas ruas e terrenos baldios, recebendo em troca míseros centavos destinados a doses de whisky barato, e um maço de cigarros Camel, três por dia devo avisá-los. Sua alimentação era formada pelas doações que alguns vizinhos de bom coração, poucas devo ressaltar, uma vez que o homem era tão magro quanto um mendigo; a pele queimada, cabelos e barbas grisalhos compridos e desgrenhados, roupas esfarrapadas, e um tênis velho Nike de dar dó. Sobre a cabeça carcomida por pensamentos nefastos, um boné jeans tão sujo quanto os poucos dentes que mantinha intactos.

Depois de seguidas tentativas, consegui que Will me recebesse em sua humilde casa a fim de ouvir da boca daquele grande escritor como se deu o processo de criação de sua personagem Emily, as crianças e, principalmente, sobre o horror que se abateu sobre o protagonista, transformando-o em algo mentalmente instável até sua fatídica morte. Eu lera os recortes pelo menos uma dúzia de vezes, e a cada leitura ficava mais e mais intrigado sobre a verdade nas palavras de Will; como se a própria Emily fosse real e “meu herói literato” a conhecera intimamente.

Will relutou em tocar no assunto, e só após inúmeras doses de bebida – devo dizer muitas – as primeiras palavras saltaram para fora da mente daquele homem. Rendido aos fatos que me foram narrados, gastamos três ou quatro maços de cigarro em uma noite perturbadora. Eu que me mantinha abstêmio por um tempo acabei me rendendo, devido à narrativa, àqueles tubinhos cancerígenos mais uma vez.

Com os primeiros raios de sol tocando o solo, deixei meu ídolo em seu quarto escuro para nunca mais nos encontrarmos. Voltei para meu carro com uma pressa maior que o habitual, e enquanto dirigia pelos 200 km da volta, remoia todo o acontecimento daquele dia que, ao chegar em casa, tive a necessidade de transcrever para as folhas de meu caderno de notas usado em minhas investigações jornalísticas.

II

Naquela noite de 1975 o céu mantinha seu pesado tom de chumbo dos dias anteriores; chovia há pelo menos uma semana seguida, e nada indicava que as grossas nuvens abandonariam aquele solo maculado. A lama se formava em toda parte e mesmo na casa, de certa forma, nobre de Will, a coisa não era diferente: o pátio, formado por duzentos metros de gramado baixo estava encharcado, formando possas marrons aqui e ali; as árvores frutíferas, tão adoradas por Emilly, sua esposa, quando vistas da janela dupla da sala que dava de frente para estas, lembravam um pântano esquecido e gosmento em meio a tanta água. A casa, uma construção típica da época, assemelhava sua arquitetura as da antiga Amityvile, em Nova Iorque. Will dizia que a aparência não era coincidência, uma vez que seu pai a construíra assim inspirado nessas casinhas horrendas do condado de Suffolk.

Will preparava-se para colocar seus filhos Jim e Timmoty em suas camas após o término do jantar, enquanto bradava a costumeira discussão a cerca dos deveres de casa não realizado e dos afazeres domésticos nos quais eles “deveriam” ter auxiliado a mãe. Enquanto sobia as escadas para o andar onde se localizavam os quartos, Emilly questiona o marido quanto aos remédios que deixara de tomar naquela e na noite anterior, que foi simplesmente respondido por Will com um “estou bem”. Eis que se ouve o estrondo no quintal, como uma bomba que explodira a metros da porta de casa e partira em pedaços pelo menos três árvores, além de destruir por completo as flores roxas que ainda se mantinham vivas nos pequenos vasinhos próximos a fonte que ficava no meio do pátio.

Assustadas, as crianças em gritos e prantos se agarram forte ao pescoço do pai que corria escada abaixo na direção da esposa na cozinha; Emilly disparará um grito assim que, o que quer que seja aquilo que causou o estrondo, tocou o solo do gramado causando um clarão. Will deixa os filhos aos cuidados da mãe e, cautelosamente, dirige-se a porta da sala. A porta é aberta, a escuridão profunda na qual a rua, e possivelmente a cidade inteira estão imersas é completa, “não se via um parmo a frente do nariz”, como dissera Will durante nossa conversa.

III

Aqui acaba a história! Pelo menos parte dela. A parte que cabia a Will, e a sua memória já maculada e doente termina neste exato momento. O que continuo a lhes contar deste ponto em diante são apenas anotações em um caderno velho que Will fez enquanto paciente do San Patrick Institute, além de partes do texto original que batiam com seu relato. Se o nome lhes soa belo e reconfortante, não deverias pensar dessa forma, uma vez que o San Patrick é um açougue! O pior sanatório que já tive o desprazer de conhecer, na época em que investigava um caso de suicídio em massa de pacientes durante a passagem de um cometa.

Will recobrara a consciência algumas semanas após o incidente, lembrando-se apenas de um raio ter atingido seu jardim e partido suas árvores ao meio. Perguntava pela esposa e filhos, sem se lembrar de que os mesmo já estavam sepultados há dias. Nenhum parente veio vê-lo enquanto esteve internado, e os poucos que ainda moravam na cidade não queriam contato com ele, “ele é um louco! É tudo culpa daquele maníaco perturbado...”, foi o que ouvi pelo telefone de um primo de sua falecida esposa, no dia anterior a minha visita a casa de Will.

Os médicos que conversei não me revelaram muitos detalhes, a não ser que Will fora trazido com urgência a instituição mental aos gritos; estava em choque! Proferia palavras estranhas, e gritava como um louco pelos corredores que “Aquilo tinha cumido minha família! Aquela coisa saiu do solo e mato todos! Não pude fazer nada! Nada! Nada!”. O fato é que Will já possuía um histórico de insanidade e fragilidade mental diagnosticados, além da depressão que tratava com remédios tarja preta e terapias de grupo. Will fora acusado da morte da família, entretanto não me foi revelado os pormenores do caso. Retomo agora a versão que li nos cadernos de Will sobre o incidente, que mais tarde fora transformado em conto publicado no jornal já citado onde Will passou há trabalhar cinco anos mais tarde. Não estou aqui como advogado ou inquisidor de ninguém, apenas como um curioso tentando entender esta história macabra.

IV

Will abrira a porta e tentara a todo custo entender o que havia ocorrido. De certa, um raio caíra e abrira aquele buraco em seu quintal, teve sorte do mesmo não ter atingido sua casa. Eis que, antes mesmo de fechar a porta, Will sente a presença de algo se movendo na escuridão; o som de uma coisa gosmenta e borbulhante se esgueirando para fora do buraco feito pelo raio que ele descreveu “como se fosse uma enorme bolha de piche sinhô! Juro que cheirava como a própria morte [ele faz o sinal da cruz]” gelou sua alma e paralisou seus movimentos. Segundo ele, aquilo quando rastejou pelo gramado matou tudo que era vivo.

A esposa, horrorizada, empurra as crianças para cozinha, tranca a porta, e corre com o intuito de salvar o marido daquele vulto corpulento que, subindo pelas paredes de madeira da frente da casa, se esgueirava pelas frestas e janelas; ela empurra Will com força para o lado e bate a porta. Will, prostrado no chão, em choque, assiste a coisa quebrar a porta e, segundo relato do próprio, consumir Emilly até os ossos:

“a coisa pegou ela... pegou...era como se tentáculos de gosma a tivessem levantado no ar...sim, no ar! Sacudiu de um lado para o outro, e depois comeu ela...sim comeu! Eu pudia ver ela se mexeno no meio daquela coisa...pudia! a carne começou a derreter, os olhos saíram de suas órbitas, ela vomitava sangue em tremores violentos...eu vi tudo...eu vi tudo...e ela gritava, gritava, gritava”

Aquilo rastejou até a cozinha, arrebentou a porta, e fez em pedaços as crianças. Após o incidente, e o desaparecimento do tal monstro negro, Will levantou-se de seu canto cativo no chão frio da sala e percebeu o corpo da esposa, ou o que sobrou dela, em frente à porta quebrada da sala. Seus membros estavam em pedaços; a pouca carne que sobrara fora rasgada meticulosamente do pescoço até os pulsos e do quadril aos pés, expondo todos os ossos e tendões, como se ela tivesse entrado em uma sala de cirurgia, mas sem anestesia; havia sangue por toda a parte. Na cozinha, pedaços de cérebros, ou o que quer que fosse, estavam espalhados pelas paredes; as crianças foram ainda mais torturadas, tiveram suas cabeças cortadas brutalmente, sem o mesmo zelo feito com a mãe, e esmagadas de encontro à parede; abdomens abertos, órgãos internos pendurados e muito sangue.

Will correu de sua casa para a rua coberto com o sangue de sua família, um vizinho ouvira seus gritos de horror e correra para tentar ajudar em alguma coisa... Logo em seguida o homem estava se debatendo em paredes brancas e acolchoadas.

V

Como disse anteriormente, não é de meu feitio julgar uma pessoa. Eu, em minha humilde profissão, bem sei que o mundo está cercado de loucos vivendo normalmente entre nós, sendo contidos apenas por pílulas brancas e mágicas. Até mesmo nós, “pessoas de bem” só nos mantemos civilizados por termos “nossas pílulas brancas” a nossa maneira; ao menor sinal da falta de necessidade de uma civilidade pré-implantada em nossas mentes e nos tornamos animais sedentos por sangue, alguém uma vez chamou isso de sobrevivência. Enfim, o que escrevi aqui foi o relato de algo que vi com meus olhos, como a loucura transforma as pessoas de pais de família amáveis em monstros grotescos. Will me contou toda essa trama com lágrimas nos olhos arregalados, o que me impressionou mais ainda. Para ele aquilo foi real, aquela coisa que saiu do solo e trucidou sua família fora real, a gosma tentacular gigante fora real, os gritos, o sangue, tudo! Tudo fora real, mas o que é o real para você? Para mim? O que é real?

O fato é que a loucura de meu herói foi a fonte de uma obra prima, a meu ver, do horror moderno; desde Poe que não vejo nada tão original, apesar dos fatos que geraram tal obra. A forma como sua perdição criou modelos perfeitos para embalar leitores sedentos por algo novo é formidável, digna de um artista no auge de sua carreira, em outras palavras, “a arte está acima de qualquer coisa?”.