As alucinações de Salvatore Vesentini - DTRL27

I - TRAIÇÃO

Abadia de Nonantola, norte da Itália. Ano de 1328 d.C.,

Não vejo luz das velas há muitos anos, desde que pararam de me vigiar. Sob a pouca luz do sol que recebo só percebo que o pedaço de pano que encontrei aqui já está amarelado e velho, mas foi de grande serventia para minhas anotações.

Devem fazer anos que estou preso, julgo, mas não sei ao certo. De qualquer forma, algo deu muito errado naquele exorcismo.

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Os fatos que relatarei ocorreram quando em uma pacata cidade interiorana da Itália, parti com três companheiros para o norte, buscando refúgio nas terras congeladas próximo ao mar do norte.

Estava muito frio quando partimos de Modena e minhas tosses sangrentas castigavam-me por demasio, além das péssimas dores na cabeça que me previa dos sonos e as fortes pontadas na garganta. Eu, Salvatore Vesentini, um ferreiro bastante prodígio para minha idade, dois curandeiros de Monte Cassino e outro curandeiro de um lugar qualquer, provavelmente de Bobbio. Não levavamos muita coisa pois nossa viagem era relativamente pequena, algo em torno de quatro dias de caminhada até nossa caravana.

A Santa Inquisição já havia torturado e matado muita gente por aqui e estava chegando a nossa vez de sermos interrogados. Seríamos julgados e de certeza condenados por pactuar com o demônio e praticar bruxaria. Um ato de heresia tremenda, que merecia ser devidamente punida, eu concordo, se tivéssemos algo a declarar.

Os Inquisidores, contudo, não nos deixaram outra escolha: fugimos antes que pudessem nos alcançar.

Já tinha ouvido falar bastante destes homens que torturavam horrivelmente em nome de Deus e logo abandonei meus bens e minha honra em troca da minha vida.

Na manhã em que partimos, pouco eu sabia que seria a última vez que veria aquelas verdes terras e tão frutíferas árvores em troca do terror que me instalou por completo alguns dias depois.

Já havíamos percorrido um dia de viagem e teríamos que parar para descansar. Como a Província de Pirlan ficava próximo do nosso caminho, decidimos que seria sábio parar por lá para nos protegermos do frio que a noite trazia e repousar para continuar nossa fuga da Inquisição no próximo dia.

Ubertino, um dos curandeiros, aventurava-se sempre à frente de todos, muito próximo de mim inclusive, e liderava nosso compacto grupo de forasteiros. Ele era um homem já de certa idade, meia altura, magro e com barbas grisalhas e falhas, mas tinha uma voz imperativa, além de uma enorme cicatriz no pescoço causado provavelmente por alguma fera. Suas vestes, como de costume para todos nós, consistia de grossas e pesadas túnicas de lã negra que cobriam o corpo todo mais o capuz, e geralmente estavam sujas e lamacentas, principalmente na parte de baixo.

O único problema para chegar a Pirlan seria atravessar o Via della Morte, como era chamado aquele pavoroso caminho repleto de escuridão e relatos de loucura, assassinatos e suicídios. A entrada era marcada por altas e espessas árvores que inibiam a presença do sol, mesmo no mais brilhante dos dias. Eu e Ubertino íamos sempre à frente, enquanto Michele e Federico nos seguiam. Logo avistamos cadaveres pendurados por entre as árvores marcando enforcamentos de homens, mulheres e crianças. Era um lugar abandonado pela esperança e atravessá-lo não nos fazia sentir melhor. A neblina que transpassávamos deixava o dia mais frio do que era de costuma naquele local, além do forte cheiro de carne em decomposição que sentíamos conforme caminhávamos. Comecei a ficar mais atento a cada pedaço percorrido, arregalei meus olhos e ficamos todos mudos. Pedaços de animais também eram vistos dilacerados e, por um momento, pensei ter visto também um braço humano separado por algumas árvores de distância do que deveria ser um corpo sem cabeça. Assustei-me quando percebia que parecia estarmos cada vez mais para dentro da floresta e a luz ia se turvando mais e mais, a ponto de impossibilitarmos separar o dia da noite. Mais adiante, jurei ter ouvido um grito de mulher pedindo por socorro inutilmente pois naquelas condições jamais nos atreveríamos a nos arriscar para salvá-la.

Lembro-me que ao chegar em Pirlan, minha garganta doía terrivelmente e a cada tosse parecia que minha garganta se dilacerava em vários pedaços. Acendemos uma fogueira baixa nas proximidades da cidade, só para poder dormir mais tranquilamente, após a travessia daquele caminho dominado pela morte. Mas para meu infortúnio, as vozes que eu ouvi suplicando por ajuda naquela imensidão de mágoa não saíam da minha cabeça e só pude dormir após várias horas.

Acordei em um dia claro e minha cabeça doía imensamente. Abri os olhos e não percebi que não me encontrava mais no local em que eu havia deitado. Perplexo, tentei me levantar e para minha surpresa, eu estava acorrentado pelo punho à uma parede de pedra.

Estava pasmo e não consegui pensar em nada, mas logo me ocorreu que também não estava mais na presença de meus companheiros. Gritei.

“EII!! ALGUÉM??”

Sem resposta. Tentei forçar as correntes para quebra-la mas não obtive sucesso.

“POR FAVOR!! ”

Fiquei em silencio por alguns segundos e ouvi o passos. Quando o homem chegou, senti-me grato.

“Federico! Veja, estou preso. Fomos descobertos? Os Inquisidores... “

O curandeiro olhou-me com desprezo e rispidamente me disse para que eu ficasse calado. Para minha surpresa, ele não tentou me soltar. Minha cabeça parecia estar sendo martelada em brasas. Ouvi Federico dizendo que eu era culpado pela peste que assolava Modena e dizimava centenas de pessoas todos os dias, por isso seria ali deixado acorrentado para morrer.

Compreendi então a farsa desde o início da nossa expedição, a mentira por trás do nosso companheirismo e a traição perante nosso objetivo principal, que na verdade, nunca foi fugir dos inquisidores da igreja. Se estou fadado a morrer pela minha tosse sangrenta, provavelmente pensaram que eu era o causador da peste. Um ato justificado, afinal eu tinha os mesmos sintomas que os desafortunados que morriam pela peste; sangue na garganta, olheiras e dores constantes no corpo. Sentia-me mal por dentro de por fora e sabia que minha doença iria me matar em breve, mas sabia também que não era possível que eu fosse o responsável pela promulgação da peste pois nada tinha a ver um problema com outro. Isso, pelo menos, era certeza.

A surpresa pela mentira foi imensa, mas alimentei meu coração com raiva.

Com o tempo, eu havia me cansado de gritar por ajuda. Sabia que meus antigos companheiros não estavam mais lá. Meu pulso começou a fica em carne viva devido às correntes. Estava acorrentado em uma espécie de armazém e alguns cestos estava do outro lado do recinto. Tentei alcançar dispendendo bastante esforço, quando senti que dentro de meu pulso parecia que algo estava sendo dilacerado para que eu pudesse alcançar um dos cestos. Puxei-o para mais perto, agoniando de dor e com o resto de energia que me motivava, derrubei seu conteúdo ao chão para ver o que dispunha na expectativa de me ajudar com alguma ferramenta ou qualquer coisa que me permitisse quebrar a corrente.

Na cesta não havia nenhuma ferramenta nem nada parecido, mas agradeci pelo que o destino me fornecera: grande quantia de mel. Estava faminto e portanto não perdi tempo. Enfiei a mão e comecei a degustar aquele sabor doce e delicioso. Comi muito e me saciei.

Sentei para repousar e então percebi a burrice que fiz: estava agora mais sedento do que nunca.

Revirei os outros cestos ao meu alcance em busca de água, mas em nenhum deles encontrei. O último cesto, contudo, era um latão velho. Não conseguia alcança-lo com minha mão, mas tentei arrastar com meu pé. Novamente, depois de muito esforço fiz com que o latão se movesse na minha direção, mas, pelo meu azar, derrubei-o e um líquido branco e viscoso eu vi se perder pelo chão.

“Leite? Afinal, essa cidade não está tão abandonada assim.”

Levantei o latão rapidamente e pude salvar alguns litros. O cheiro era terrível, mas minha sede me mataria mais rápido que minha tosse caso eu não a saciasse. Bebi direto do latão e lambi o chão para aproveitar tudo que tinha sido desperdiçado.

Mais uma vez, um ato que me rendeu prejuízos que só percebi alguns minutos depois: uma forte diarreia tomou conta do meu corpo e agora eu estava vazando por todos os lados, percebia que a temperatura do meu corpo aumentava e descia subitamente, tirando toda minha energia, meus olhos mal conseguiam se abrir.

Com o cheiro de fezes, mel e leite daquele armazém, primeiro vieram as moscas, depois os vermes e então ratos começaram a se apoderar do local. Eu continuava vomitando e defecando em consideráveis quantidades, tremia e tossia sangue a cada minuto. Meu pulso doía muito e eu não aguentava mais, tinha que morrer logo. Os vermes começaram a imperar completamente de mim e logo senti que em meu ânus e pernas aqueles bichinhos brancos que se contorciam inocentemente faziam um reinado e já consumiam libertamente da minha carne.

Dormia, acordava, vomitava, dormia novamente. Depois acordava e tinha mais uma crise de tosse e diarreia com sangue. Às vezes, sentia que meu corpo tremia sozinho enquanto minha fadiga e falta de ar me fazia contorcer-me sozinho pelo chão e sentia vontade de enfiar qualquer coisa pontuda em minhas entranhas para sangrar até morrer, em paz. Apesar de tudo, pelo menos de uma coisa eu estava determinado: de fome eu não iria morrer. Precisamente naquele momento, o único alimento que eu dispunha era o mel e, sendo assim, não pude parar de comer, enquanto mais ratos caminhavam pelo meu corpo inútil.

Clamei por ajuda mais uma vez. O castigo divino que me assolava era mais do que eu conseguia suportar e meus pensamentos se baseavam somente em tristeza por morrer sozinho e raiva de ter sido traído, além da dor. Pensei que iria finalmente morrer quando em uma crise de tosse, além do sangue que jorrou pelo chão, alguns vermes também saíram pela minha garganta, haviam entrado pelo meu intestino e percorrido todo meu corpo até a garganta. Podia sentir também que alguns vermes estavam confortavelmente alojados dentro do meu nariz e se deliciavam com vigor da minha frágil carne adoecida.

Eu estava podre por dentro.

II – SALVAÇÃO

Noites silenciosas se passavam enquanto eu aguardava a chegada da morte, que estava bastante atrasada, aliás.

Em um dia de insanidade, vi então que alguém se aproximava. Um homem, baixo. Não consegui perceber seus traços com perfeição pois meu estado físico e emocional era deploravelmente caótico, só percebi que era um senhor já de idade, um velho corcunda qualquer, que se aproximava com uma bengala de madeira. Contudo, algo em sua fisionomia me chamou a atenção mais do que qualquer coisa, o velho era completamente cego e seus olhos não possuíam brilho, eram totalmente escuros e mostravam sinais que suas pálpebras haviam sido arrancadas.

Tentei balbuciar qualquer palavra, mas novamente só pude gaguejar, enquanto observava o velho caminhar lentamente na minha direção. Ele pareceu se aproximar das correntes e eu perdi os sentidos novamente. Quando acordei, meus pulsos estavam livres.

Rastejei pelo chão imundo e fedorento e consegui alcançar o exterior do meu presídio. Mais adiante lá estava o velho salvador, encarando o vazio. Não consegui novamente dizer nada, nem chama-lo, gritar ou ao menos agradecer, perguntar quem era o meu salvador e dizer que ele seria recompensado. Ele, contudo, apenas apontou para uma direção que indicava um caminho pela floresta que tínhamos vindo anteriormente.

Não pensei duas vezes, minha mente estava atormentada pelo desespero e dor, mas aquele senhor havia me salvado, eu precisava falar com ele. Com aqueles olhos sinistros, eu o vi caminhar lentamente para o caminho apontado com seus dedos tortos e enrugados e assim rastejei até lá, em horas de mais coragem, arriscava ficar de pé, mas logo caía e ouvia minha cabeça apitar pelos ouvidos, desmaiando. Os vermes se despenduravam de meu corpo e acompanhavam os rastros de sangue pelo chão que eu estava deixando ao longo do meu trajeto. Percebi então que aquelas coisinhas brancas já estavam em considerável quantidade alojadas em mim.

Quando voltava à consciência, tentava novamente perseguir meu salvador e engatinhava mais alguns passos.

Foi então que, já dentro da sombria floresta, pensei ter ouvido cascos de cavalo e ruídos de carroça batendo em paus e pedras. Não sabia se estava tendo um delírio ou se era real, mas com todas as minhas remanescentes forças, gritei por ajuda. Fiquei mais espantado, na verdade, foi com a rouquidão da minha própria voz, que parecia ter um som de fundo de esgoto.

Só me dei conta que estava vivo ainda quando acordei dentro de uma espécie de carroça de madeira que balançava freneticamente, olhando para o teto sujo e rodeado por sacos brancos e cheios com algo que não soube o que era, além de alguns livros empoeirados.

Eu estava salvo, enfim.

III – REVELAÇÕES

“Não, não, não! NÃO!! Minha mente dói demais, não consigo suportar! NÃO! NÃO! EU ME LEMBRO! Sim, me lembro bem! “

Outros dizem coisas demais, eu não deveria ouvi-los.

Acordei vários dias depois deitado em uma cama de palha em um lugar desconhecido, com paredes de pedra e velas a iluminar o quarto. Toalhas com sangue faziam pilhas no chão ao meu lado, além de alguns utensílios que provavelmente serviram de suporte para algum curandeiro em meu auxílio.

Tentei me levantar, mas não consegui, ainda doía bastante minha barriga, embora eu já me sentisse um pouco melhor.

Um homem alto e rosado entrou no quarto. Encarei-o e ele me encarou de volta, sério. Logo tentei falar.

“Bom homem, quem é você? Salvou-me e devo minha vida também a ti! ”

O homem permaneceu parado, olhando ativamente para mim.

“SIIIM!!! FUI EU!! SEMPRE EU!!”

Permaneci encarando o sujeito, esperando alguma resposta, quando para minha surpresa me disse que ele não havia me salvado, ele havia apenas me encontrado.

“Encontrado? Mas eu estava praticamente morto quando... “

Antes que pudesse terminar minha sentença, já ouvia o homem dizer que eu seria levado para as masmorras da Abadia de Nonantola para cumprir minha pena por assassinar o monge Ubertino Barone, que juntamente com outros dois monges, Federico e Michele, partiram há cinco semanas de Modena rumando ao norte onde ajudaríamos minha tão amável esposa, longe de mim, que estava sob o comando de um demônio e um ritual de exorcismo iria libertá-la de todos os males que a afligiam.

“O que você está falando, homem? Estive fugindo da Inquisição com Ubertino e... “

O homem virou-se e disse algo a outros indivíduos que estavam do lado de fora, que prontamente entraram e me seguraram pelos braços, me arrastando e novamente me acorrentando.

“FUI EU! FUI EU!! AGORA EU ME LEMBRO!! EU ME LEMBRO BEM”

Eles disseram que minha história era falsa, que nunca existiu um velho cego. Eu delirava desde o começo, minha mente inútil que pregava peças e me fazia criar fantasmas.

Eles disseram que partiram sim comigo Ubertino, Federico e Michele, três monges, para exorcizar minha própria mulher que sofria a tempos. Eles disseram que então Ubertino recebeu uma carta do abade cuja abadia era local que minha esposa estava sendo mantida prisioneira para o exorcismo. Foi então que eles disseram que na carta recebida por Ubertino dizia que minha mulher havia morrido!

“E O DEMÔNIO SE LIBERTA! MAS LEVA MINHA ESPOSA, MINHA ESPOSA! ”

Logo ouvi eles dizerem que por raiva e perda de controle, assassinei a sangue frio um homem com uma grande cicatriz no pescoço, conhecido por Ubertino e que se recusou a avançar para a abadia depois de me negar ajuda no resto do caminho e estava pretendendo voltar para Modena.

“SIM, EU ASSASSINEI UBERTINO COM MINHA ADAGA ENFIADA NA GARGANTA. ”

E então ouvi dizer que os outros monges me aprisionaram e me deixaram para morrer. Não pelo medo de espalhar a peste pois ela nunca existiu, mas por segurança para eles mesmos. Abandonaram-me.

Eles disseram, ao me aprisionar nesta masmorra, que não havia nenhum velho que tinha me salvado.

“NÃO, NÃO HAVIA! MAS EU O VEJO AINDA HOJE, CONSIGO SENTIR A PRESENÇA DELE. ”

Eles disseram que os vermes que no meu corpo se instalaram comeram por inteiro minha mão acorrentada e que de tão podre que já estava caiu como farelo das correntes e assim me libertaram.

“MAS O VELHO CEGO ESTAVA PRESENTE, EU SEI QUE ESTAVA. ELE ME VIU, ELE ESTÁ AQUI AGORA. ”

Eles disseram que o pobre do Salvatore Vesentini ficou louco quando soube da morte da mulher, que seu delírio começou aí.

Agora estou novamente preso, mas acho que há algo errado comigo, pois outros monges que adoecem gravemente ou cometem pecado são postos na mesma masmorra escura e úmida que eu e parecem não me notar, olham de modo vazio para as correntes que me aprisionam, mas não vêm meu corpo. Ficam sempre distante. Vejo também o medo deles, quando me movo e as correntes nos meus pés fazem barulhos, sinto os gritos de pavor.

Não preciso me alimentar, pois meu corpo já se desintegrou.

Anos já se passaram e eu continuo aqui, a abadia na qual me encontro já ninguém habita, abandonada há muito tempo. Mesmo assim, prossigo sussurrando os nomes dos padres que me abandonaram enquanto a eternidade me permitir, pensando em como irei torturá-los e fazê-los gritar antes de matá-los.

E se hoje você está lendo esta carta é porquê você está agora do lado do que um dia foi meu corpo, local onde eu escrevi estas letras de ódio e portanto estamos muito, muito próximos. Minha abadia voltou a ser colonizada e graças a ti terei um corpo para minha vingança.

Antes, todavia, irei procurar o demônio que no mesmo instante em que foi exorcizado do corpo de minha amável esposa apareceu a mim como um velho sem pálpebras para me indicar o caminho da salvação e me fazer sofrer eternamente nesta abadia que, agora, compartilhamos no mesmo corpo.

TEMA – Religião, Mentira, Sobrenatural.

Lucas Restivo
Enviado por Lucas Restivo em 27/04/2016
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