Sábado - DTRL 27

Há alguns anos um fato aterrorizante e ao mesmo tempo fascinante ocorreu comigo. Às vezes imaginamos que a realidade é totalmente conhecida, e de uma certa forma, tediosa. Acordar cedo, ver o sol nascer e seguir para a rotina. Comer, beber, dormir e amar. Porém há fatos que acontecem em certos becos escuros e perigosos, parecendo que não fazem parte desse mundo. É um lado desconhecido do Universo, que gera sensações que fazem o coração bater forte, a voz falhar e duvidar da própria sanidade. Vou relatar um caso que mudou meu destino, essa história está pedindo para nascer.

Fazia um mês que estava em Florianópolis, vim morar com um amigo de infância, meu objetivo era estudar para o vestibular. Naturalmente ele era a única pessoa que eu conhecia na cidade, meu círculo de amizades se limitava aos amigos dele. Havia esse sujeito, chamado Hélio, que fazia o curso de piloto de avião junto de meu velho amigo. Uma pessoa de fácil conversa, apesar de sua figura ser um tanto soturna. Era bem alto, deveria ter 2 metros de altura. De cabelos compridos no meio das costas, tocava guitarra em uma banda. Não era de sorrir muito, porém receptivo a conversas.

Em um sábado qualquer Hélio sugeriu assistir a uma banda em um bar da cidade. Era uma noite de verão agradável. Tenho a lembrança do vento soprar, trazendo frescor para aquela noite quente. Porém meu amigo de infância não iria, pois havia pego uma virose, como os médicos gostam de dizer. Eu não queria perder a apresentação, resolvi sair mesmo assim com o Hélio. Já havia me dado bem com o sujeito, pois nosso gosto musical era parecido. Havia um porém, ele queria ir antes no Centro Espírita que frequentava nos fins de semana.

Eu não sou uma pessoa religiosa, porém acredito que fé é algo pessoal. As pessoas são livres para escolherem o que quiserem. Não me importei de ir, já havia frequentado Centros Espíritas quando era mais jovem. Seria bom pra mim, pensei. Na hora combinada ele deu um toque no telefone, sinal para que eu descesse do prédio. Entrei no carro e Black Sabbath já estava tocando. Para começar o clima de festa, segundo ele. Rumamos para o Centro Espírita. Ele pegou a Avenida Mauro Ramos, eu sabia que havia um ali perto do Shopping Beira-Mar. Mas ele passou reto, imaginei que seria em um outro local. Começamos a subir o Morro da Cruz. Na época não era um local violento, logo não era perigoso subi-lo. Fiquei incomodado de não ter comentado onde era exatamente, apenas dizia que estávamos chegando.

O carro ia subindo o aclive que ia ficando cada vez mais acentuado, pegando várias ruas estreitas e pouco movimentadas. Eu não sabia aonde estávamos indo. Ele continuava a me responder, “estamos chegando” e o carro só ia subindo. Chegou um ponto que a rua de paralelepípedos terminou e se tornou chão batido. Era o ponto mais alto do morro. Descemos do carro e olhei em volta. A vista da cidade era maravilhosa. O vento continuava a soprar, as luzes da Ilha completavam uma bela paisagem noturna. Era de tirar o fôlego, eu nunca havia subido o morro antes. Era possível ver todos os bairros dali de cima, com luzes das casas parecendo com enfeites de Natal. Aquilo ajudou a me acalmar. Por outro lado, não saber onde iríamos me deixava um tanto nervoso.

Fomos até uma casa, a única naquela rua, que era bem grande. Segundo ele, funcionava como um Centro Espírita, porém não era Kardecista e muito menos ligado ao Espiritismo. Era uma religião bem antiga, tanto quanto o Cristianismo. Pediu desculpas por não ter falado antes, achou que se explicasse muito eu iria desistir. Ele queria ver a banda, ia ser divertido. De acordo com ele iria ser rápido, demoraríamos coisa de 30 minutos. Eu poderia ficar na sala de espera durante esse tempo. Como já estava ali, não havia muito o que fazer. Não fiz questão de esconder minha irritação. Ele poderia ter falado e não escondido desse modo. Estava arrependido de ter saído com esse cara.

Era uma sala espaçosa, com algumas cadeiras. Só nós dois estávamos no recinto. Ele entrou por uma porta e garantiu que iria ser rápido. Sentei em uma das cadeiras. Fiquei sozinho alguns poucos minutos, até que alguém entrou pela portal principal.

“Boa noite”, sorriu um homem grisalho.

“Boa noite”, respondi, apesar de ainda estar irritado. Não queria puxar assunto, mas o homem estava com vontade conversar.

“Noite bela lá fora não é? Esse vento afasta mesmo o calor. Nem precisamos de ventilador por aqui. Você está esperando por alguém?”

“Sim, senhor. Se chama Hélio. Um alto, de cabelos compridos.”

“Ah sei quem é. E não precisa me chamar de senhor, me chame de Pedro. Eu tinha cabelo como o dele, sabia? Hoje possuo apenas alguns fiapos nessa careca. Como o tempo é conosco! Terrível! Primeira vez aqui, imagino.”

“Sim. Não sabia que existia essa religião. Qual é o nome? Não vi placas e ele não me disse o nome.”

“Chamamos apenas de Noir”, e deu um sorriso. “Como chegou aqui com Hélio, posso lhe mostrar a Câmara principal.”

O homem levantou-se e foi em direção da porta por onde Hélio havia entrado. Ele aparentava uma certa jovialidade apesar dos cabelos brancos. Realmente havia o peso dos anos, mas ele não era um senhor lento, parecia bem ágil para a idade. Abriu a porta e sorriu para mim, me convidando. Pensei se ele queria me convencer a entrar para essa religião ou algo assim. Pelo menos seria algo a fazer, eu teria que esperar de qualquer modo.

“Vamos, aposto que você ficou curioso”, ele disse.

“Posso ir, mas não devo demorar muito. Não quero me desencontrar do meu amigo.”

“Estamos indo para o mesmo lugar que ele foi, você o encontrará lá.”

“Se for assim, tudo bem” e me levantei da cadeira, indo na direção da porta.

Lá dentro havia uma outra sala menor, contando com iluminação de velas enormes. Algumas tinham minha altura e queimavam ali, guardando uma escada. Eu olhei para ela e percebi que era dessas em espiral. Olhei para os degraus, tentando enxergar algo, mas estava muito escuro. O homem pegou uma vela menor e disse para segui-lo, pois lá embaixo havia algo bem mais interessante do que na superfície. Mesmo receoso, comecei a descer. Ele ia na frente com a vela e ia contando a história dessa religião obscura, Noir. Enquanto eu tentava olhar para os degraus, que eram curtos e feitos de pedra, escutava a sua história.

Era uma religião bem antiga, fundada em torno de 33 d.C. Era uma vertente do Cristianismo, porém existiam diferenças fundamentais. Eles acreditavam em certas obscuridades bíblicas, como os Nephilim, que eram gigantes que habitavam a Terra antes do dilúvio. E ia contando histórias, muitas delas antes da Bíblia e de Jesus. A escadaria não parecia terminar, olhei no meu relógio e percebi que já estávamos descendo há quase 10 minutos. Eu tive a impressão que estava ficando cada vez mais estreito. Comecei a sentir frio. Do meu lado esquerdo e direito só havia pedra antiga esculpida nas profundezas da terra. Atrás de mim escuridão, na minha frente luz de uma vela frágil, que iluminava mais ao velho do que a mim. Ela criava formas nas paredes, tentando vencer o escuro, mas eu sabia que ela nunca ganharia. A claridade, nesse local, nunca seria a rainha. Uma sensação de mal estar estar começou a tomar conta de mim. Imaginei um passeio com muitos discursos e não isso.

“Nunca pensei que desceríamos tanto assim, mal espero para chegarmos no fim.”

“A jornada é o que importa, filho. Se não fosse tão comprida e escura, você não se sentiria iluminado com as verdades que verá ao chegar no nosso destino. Você está secretamente sendo iniciado na nossa Ordem.”

“Como assim?”

“Essa é a sua provação. É como a descida de Lúcifer para o inferno, até o leito da escuridão. Você acredita no demônio?”, e parou de descer. Ele se virou para mim, sem sorrir. Estava sério, com a luz da vela iluminado apenas parte de seu rosto. Esperava por uma resposta minha.

“Figurativamente. Quero dizer, ele está na cabeça de todos, assim como o bem.”

Ele sorriu de uma forma maníaca, mostrando a outra parte do seu rosto, o iluminando totalmente. “Lúcifer é apenas um símbolo bíblico. A verdade é maior que essa, meu filho. Bem maior. Ele representa o mal, o tapa que se revida. Mas é apenas uma alegoria, uma palavra. A malignidade é outra, não Lúcifer e seus mil nomes. São apenas palavras escritas por anciões, homens mortos e esquecidos pelo tempo, que sabiam da verdade. Nós estamos aqui para celebrar essa sabedoria, você não tem ideia da honra que é estar aqui entre nós. Esqueça seu medo!”

“Eu não estou interessado nessa pregação, não concordei com isso”, falei agitado. “Quero voltar.”

O sorriso ensandecido desapareceu e ele voltou para a expressão de seriedade. Havia ódio em seu olhar. “Você tem a opção de subir outros 10 minutos no escuro. Eu vou terminar a descida. Não me importo se você chegar lá em cima ou não. Livre arbítrio, assim como Deus disse.”

Olhei para trás. Havia apenas escuridão. Eu estava me sentindo sufocado, as paredes eram estreitas e pareciam me prender ali. Observei o velho, ainda estava me olhando seriamente, com a luz . Ele simplesmente recomeçou a descer, calado. Os sons de seus passos iam ecoando no escuro, se tornando cada vez mais inaudíveis. Fiquei parado, me virei e comecei a subida. Tateei as paredes para me apoiar melhor e procurar pelo degrau que estava escondido no escuro. O encontrei e subi. Recomecei a busca pelo próximo. Como os degraus não eram uniformes, acabei pisando em falso e caí com meu joelho na quina. Pensei que seria melhor convence-lo a me dar uma vela lá embaixo e subir sozinho. Resolvi continuar a descida.

Quando cheguei perto ele apenas olhou para mim e sorriu, porém não falou nada. Foram mais 5 minutos descendo, apenas com o som de nossos passos quebrando o silêncio. Então comecei a perceber que havia luz aparecendo. Chegamos ao destino. Pisei para fora da escadaria e olhei em volta: eu estava em uma caverna. Era incrível pensar que algo assim estava escondido no centro da cidade. Ainda sentia tensão por causa da longa descida, mas aquilo era único. Haviam velas nas paredes e alguma tochas, parecia um daqueles filmes medievais. O teto era tão alto, que a luz não conseguia ganhar, fazendo com que a escuridão reinasse ali. Andamos na direção de algumas pessoas, deveria ter em torno de 15. Todos usavam robes negros e máscaras que pareciam feitas de crânio de boi. Eu levei um susto. Olhei para o lado e não vi o velho. Eu precisava daquela vela. Eu os ouvi falando, olhando na minha direção.

“Fráter Cornelius, dissemos que precisaríamos de dois homens e não de um”, uma das figuras mascaradas falou, com voz feminina.

“O outro ficou doente, Imperatrix”. Reconheci a voz de Hélio.

“Bastará se o ritual for feito corretamente”. Era a voz do velho, que vinha atrás de mim.

Então senti uma forte pancada atrás de minha cabeça. Caí no chão poeirento e não tive forças para me levantar, a última coisa que vi foram os pés daquelas pessoas. Desmaiei, e quando abri os olhos percebi que eu estava de cabeça para baixo. Minhas mãos estavam amarradas, meus pés presos por cordas no teto. Em minha boca um lenço, para que não conseguisse falar. Estava no meio de um círculo, desenhado com tinta vermelha. Tentei gritar, mas não conseguia. Foi quando uma dessas pessoas mascaradas veio com um chicote em minha direção.

“O momento é de calma. Fique quieto”. Era a voz do velho. Ele desenrolou um chicote no chão e foi para as minhas costas. Ouvia seus passos, indo de um lado para o outro, como se estivesse calculando algo. Enquanto andava, o chicote arrastava no chão, tal qual um animal vivo. Subitamente parou, e o chicote ficou silencioso. Havia nenhum outro som, senti o tempo parar, congelado naquele momento terrível. Eu respirava forte e tentava falar, pedir que parasse com aquilo. Ouvi o estalo primeiro, em seguida senti uma dor insuportável. Eu tinha uma boca e não podia gritar.

“Espero que entenda que o momento é de paz”, e então outra chicotada, que doeu mais ainda por ser em cima da primeira. Senti sangue umedecer minha camisa. Resolvi ficar quieto, pois tentar me mexer doía. Eu ouvi cânticos e orações, porém não entendi nada, parecia latim. Minhas costas latejavam, a cabeça não parava de rodar, sentia cada pulsação da ferida aberta arder. O sangue que pingava no chão se misturava com as lágrimas de meu choro silencioso e desesperado.

Quando me viraram para o outro lado, vi um buraco enorme no fim da caverna. Era um poço enorme, um rasgo gigantesco na terra, como se alguém a tivesse torturado e a rocha se rompeu, criando aquele buraco. Eles colocaram velas naquele local, que estava bem iluminado. Jogaram água no meu rosto, pois estava quase desmaiando. A mulher gritou.

"Testemunhe! Abra teus olhos! Tu vais te tornar um Súdito!"

Foi quando vi uma mão enorme sair do buraco, agarrando o chão, como se tentasse se levantar. E mais uma, e outra e outra. Então algo se levantou, uma monstruosidade horrenda que eu não sei descrever. Não era um animal, nada que vive na Terra se parecia com aquilo. Era enorme, deveria ter em torno de 4 metros de altura. Possuía quatro braços e quatro pernas, um olho no meio da testa. E como fedia, era esgoto puro, uma fossa séptica viva. O cheiro terrível me deu vontade de vomitar, mas a mordaça em minha boca poderia me matar sufocado, eu não tinha esse luxo naquela hora. Ele se movia lentamente em minha direção, se movendo como uma aranha. Eu não sabia mais se era real ou uma ilusão causada pela dor e pelo medo, como algo assim poderia existir? Chegou perto de mim com seu único olho, vermelho. Ele me estudava com aquele olhar terrível. Na luz ele parecia úmido e a pele pálida, grossa. Que ser era aquele? Por quê eu? Se eu pudesse gritar, minha garganta rasgaria e sangue sairia dela. O cheiro era insuportável.

"Mestre dos Desmortos! Trouxemos mais um sacrifício!"

Ele olhou para as pessoas, que estavam em silêncio. Então se virou novamente para mim e ficou apoiado nas pernas, com os membros superiores livres. Fiquei paralisado. Chegou mais próximo de mim e segurou minha cabeça com uma das mãos, como se segurasse um ovo frágil, em seguida vi outro braço se movendo e senti seus dedos longos segurando meu crânio. Começou me apertar com as duas mãos, a pressão era enorme. Ouvi meus ossos rangerem e estalarem, minha visão ficou turva e o fedor desapareceu. Foi quando minha cabeça deve sido esmagada. Meu cérebro deve ter caído no chão, assim como meus olhos. Eu não havia como saber, pois estava morto. Meu corpo foi jogado em uma vala qualquer. A conclusão da polícia é que fui brutalmente assassinado em um assalto, foi a explicação que deram para minha família, apesar da violência extrema em meu corpo. Quem cuidou de tudo isso foi o velho, meu guia da escadaria, que era Delegado de polícia.

Meu corpo se foi, minha alma imortal não. Ainda estou por aqui, nessa caverna escura. Minha alma foi moldada pelo Mestre, o medo se foi e a admiração por suas artes tomou o lugar. Me sinto transformado, recebi conhecimentos únicos. Não há como alguém não mudar. Adoro assistir os rituais semanais que fazem em homenagem a Ele, são viscerais. Eu não estou só, somos um exército de almas renascidas para Ele. Esse é nosso propósito: servir o Mestre dos Desmortos, o Rei das Entranhas das Terra. E eu estou feliz em fazer parte de seu reinado.

Temas: Religião, Sobrenatural.