Inferno 
“E o homem, em seu orgulho, criou Deus a sua imagem e semelhança”.

- Friedrich Nietzsche

Acordei. Nossa! Que dor nas costas! É noite. Espanta-me não terem insetos ou quem sabe uma cobra subindo em cima de mim. Não sei como fui deixar a situação sair de controle. Mas, espera um minuto! Como vim parar aqui mesmo? Preciso reconstituir minhas lembranças. Resolvo levantar e me esconder logo, antes que alguém me ache. Após caminhar alguns minutos, encontro uma pequena caverna, não sabia que tinha uma aqui. Colho umas frutas para passar a noite. Minha sorte é que tenho um isqueiro para iluminar, aqui é muito escuro. Sento-me no chão, na parte menos visível de dentro da caverna e começo a lembrar, pelo menos isso não faz barulho, é a ultima coisa que quero provocar essa noite.

Escola Secundária de Martin Luther, 16 dias antes. Finalmente, 18 horas e 30 minutos havia acabado meu expediente. Precisava deixar o giz na sala dos professores e ir embora para minha casa corrigir tarefas e depois dormir. Saí da sala, atravessei o jardim que encurtava meu caminho para a outra parte do corredor. Segui em frente.

Quando cheguei até a sala fui abordado por Suzanne, a secretária do “mestre” Sebastian, meu superior. Ela me pediu que a acompanhasse até sua sala e o fiz com a maior má vontade da minha vida. Enquanto caminhava, percebia que nesse dia ela estava vestida diferente. Ela costumava andar com roupas que escondem bastante o corpo, dessa vez ela veio com decote, saia curta e cabelo solto. Bíblia? Pode esquecer.

Chegamos ao escritório. Ele dispensou Suzanne e contou o motivo pelo qual me chamou a sua sala. Dois alunos, que por “coincidência” eram seus filhos me denunciaram por blasfemar em sala de aula. Descobri o motivo e expliquei que se tratava do momento em que falei a respeito de Friedrich Nietzsche e citei algumas de suas falas. O tema era “filósofos do século XIX”. Vendo que não tinha mais como me intimidar ou me demitir por algo como “doutrinação ateísta”, resolveu me deixar ir embora. Estava irado. Não acreditava que havia perdido 10 preciosos minutos de minha vida dando explicações para me livrar de situações idiotas, mas eu mereço. Quem mandou ser professor de filosofia e sociologia numa escola altamente religiosa? No dia que eu  for ensinar Karl Marx e Friedrich Engels, eu serei demitido de uma vez.

Peguei minha motocicleta e fui ao meu apartamento, que está bem desarrumado. Após algumas horas corrigindo provas, fiz algo que realmente me dar prazer: dormir.

Acordei cheio de ideias. Queria abandonar aquele colégio insuportável, concluir minha carreira acadêmica para me tornar professor universitário, se não desse para trabalhar, moraria com minha mãe. Quem sabe eu não arranjo um trabalho com um salário tão bom quanto?

Durante a manhã fiz meus planos. Eis que a tarde chegou e fui trabalhar. Mas meus dias naquele inferno não passavam de hoje. Após minha primeira aula fui até o escritório do “mestre” para pedir demissão o mais rápido possível. Nesse momento o velho se assustou e começou a me perguntar e eu respondia meias verdades, só falei da parte de pensar no meu futuro, e não que eu odiava esse colégio. Ele me pediu que aparecesse em sua sala no final do expediente para ele dar uma resposta.


O dia foi normal como sempre, eu gastando meu conhecimento com pessoas minimamente interessadas. Ao final cheguei a Ms. Sebastian que me propôs ficar mais uma semana e acompanhar uma viagem dos alunos a uma chácara na Floresta Negra que fica ao redor da cidade de Furtwangen. Esse fim de semana foi o primeiro das férias. Após terminar de conversar, fui até a sala dos professores para tomar um chá.

Quando entrei deparei-me com as mesmas pessoas de sempre, com exceção de uma mulher de cabelos negros amarrados, feições finas, roupa preta e uma expressão carismática. Conversava com Albert, talvez uma das pessoas mais desagradáveis que já conheci, era o professor de religião. Ele falava, gesticulava e fazia expressões enquanto ela só ficava calada, escutando. Fui até os dois, mas porque estavam perto da garrafa de chá. Antes que ele a convencesse de saírem da sala dos professores, ela resolveu pegar chá e foi nesse momento que me notou. Eu a servi e começamos a conversar, enquanto Albert foi embora. Ela se chamava Norma, era professora de Literatura, e substituíra o finado professor Seymon. Nós conversamos sobre diversos assuntos como política, filosofia, história, sociologia e literatura. Ela conhecia as mesmas coisas que eu. Senti que tinha um bom motivo para almoçar na escola. Fiquei mais feliz quando soube que ela fora convidada para ir à viagem, eram poucos os professores disponíveis.

Nos dias que se seguiram eu sempre dava um jeito de conversar com ela. Norma era preciosa para mim naquele lugar, alguém que me entendia. Enfim veio o fim de semana.

Os ônibus chegaram às 10 horas da manhã. Tentei mas não consegui ficar no mesmo que ela, mas sim com a porra do Albert. Ele era do tipo que gostava de me provocar com os alunos. Ele se juntou a um grupinho que era composto pelos filhos do professor e mais uns três que ele dava carona. Depois de uma hora que eles falavam sobre religião, resolveram falar de política usando de um típico discurso nazista se referindo aos imigrantes que estavam aparecendo, ou das manifestações baseadas em ideais a esquerda como: “os males da humanidade”, enquanto esbravejava contra o comunismo. Eu não me importava muito. Eis que ele me chamou atenção dizendo: “ah, sinto muito Klaus, esqueci que estava aí”. Eu fiquei intrigado e perguntei o porquê dele ter dito isso. Sua resposta foi que isso poderia estar me afetando por eu “ser comunista”. Nesse momento caí na risada internamente e expliquei que minha visão política era anarquista, que não concordava com a ideia de existir um Estado, mas para provocar eu perguntei: “Diga-me. Por que odeia tanto os comunistas? Até onde eu saiba Jesus Cristo não privatizava o pão e o peixe”. Nesse momento o sorriso cínico se fechou numa expressão de seriedade, assim como a dos outros ao seu lado. E foi nesse momento que o ônibus parou para descermos.

A chácara não era o lugar mais lindo que já havia visto na vida, mas era decente. Parecia uma casa de lenhador, tinha enfeites de cabeças de animais nas paredes, um forro de pele de urso numa poltrona e quartos suficientes para colocar alguns grupos de 3 a 5 alunos. Mestre Sebastian ficou com um só para ele, Norma ficou com outras professoras e eu, curiosamente, fiquei com Suzanne, enquanto em outros quartos ficaram homens só com homens e mulheres só com mulheres.

Os primeiros três dias foram até interessantes, não havia aquela curtição dos clássicos filmes de terror slasher dos anos 1980. Nós passávamos quase o dia todo caçando. Foi aí que conheci pessoalmente um lugar que minha mãe jamais quis que eu fosse, a Floresta Negra. Eu via a beleza majestosa daquele lugar, troncos gigantescos, belos animais, era o típico cenário dos contos de Grimm. Porém, nesse tempo, o céu estava acinzentado, a luz ao cobrir aquele lugar o deixava mais escuro e sombrio. Era tudo muito silencioso e inquietante por lá. Eu sabia que, pelo menos naquela área, eu, meus colegas, e meus alunos estávamos sozinhos, porém, sempre que eu andava entre aquelas árvores, sentia que estava sendo observado. Por outro lado, minha relação com Norma vinha melhorando. Começamos a conversar sobre nós de forma mais íntima, ainda sem maldade. Enquanto Suzanne, que também despertou meu interesse, buscava formas de me seduzir. Durante a noite ela vestia ou uma camisola de seda, ou um pijama que se limitava a uma camiseta e short, ambos de tecido fino. Deitava-se ou sentava-se em posições provocantes, sempre quando eu podia perceber. Para deixar mais evidente, começou a tocar em assuntos um tanto íntimos. Por um lado eu queria pergunta-la o que estava acontecendo, pois achava muito estranho uma mulher que há uns dias se vestia como uma beata casta, jamais teria um comportamento contrário em tão pouco tempo. Por outro lado eu até gostava, era como algo proibido e excitante.

Na segunda-feira resolvemos ir embora durante a tarde. Eu tive que acompanhar os alunos enquanto eles e Albert iam tomar banho no rio. Eu lia um livro um pouco afastado da margem, eis que ouvi um barulho nas folhagens, olhei para o lado esquerdo e só vi um pequeno galho de planta se mexendo, como se alguém o tivesse balançado e ido embora quando eu percebi. Pedi a Albert para sair, pois não me sentia bem. Ele tranquilamente consentiu. Afastei-me dos outros e adentrei e relva procurando humano ou animal que causara o barulho, sentindo com maior intensidade que algo me observava, as folhagens das árvores dificultavam a iluminação da luz do sol. Estava frio. Novamente ouvi o mesmo som, primeiro muito alto e depois diminuindo, como se quem o causasse estivesse se afastando. Então o som parou. Recompus-me ainda com o coração acelerado, aquela floresta me dava arrepios. Eis que escutei gritos vindos do rio. Corri até o lugar e vejo Albert com mais seis alunos do lado de fora e um corpo boiando nas águas batizadas com seu sangue. Retiramos o corpo. A visão era horrorosa. Do peitoral à virilha não havia mais pele, alguns órgãos faltavam e os ossos estavam à mostra. Vomitei três vezes após ver aquilo.

Precisávamos imediatamente ir embora, eis que Mst. Sebastian nos informou que não podíamos sair, um dos ônibus havia quebrado e o conserto demoraria alguns dias. Fui o primeiro a manifestar minha insatisfação, a essa altura Norma era do tipo que segurava meu braço e pedia-me para manter a calma. A noite foi diferente, Suzanne não me seduzia, no lugar disso, chorava pela morte do estudante, mas se não o fizesse demonstraria uma das mentes mais cínicas daquele lugar.

Enquanto dormia, escutei um som de vozes. Fui discretamente até a sala, sem fazer barulho, logo me deparo com algo realmente assustador. Praticamente todos eles ajoelhados usando mantas brancas e vermelhas rezando para algo que se mexia debaixo de um lençol e em volta, velas acesas. De repente a coisa parou de se mexer e todos eles, ao mesmo tempo viraram suas cabeças para minha direção, estavam com olhos brancos e uma expressão animalesca. Comecei a gritar e eles a gritarem junto. Eis que o lençol da coisa é arremessado e eu fui acordado. Abri os olhos e encontrei Suzanne passando a mão em minha cabeça e com a mão cobrindo minha boca. Quando me acalmei ela explicou que eu estava gritando e me debatendo na cama, que estava tendo um pesadelo, talvez fosse causado pelo trauma que tenho com o fanatismo dessas pessoas.

Quando é de manhã enfrentei uma bronca de Mst. Sebastian por ter saído de perto dos outros, apesar de tentar me explicar, foi inútil, mas isso foi culpa do filho da puta do Albert, ele disse que eu não pedi autorização para sair, e aqueles retardados junto a ele confirmaram. As únicas pessoas que acreditaram em mim foram Suzanne e Norma. À tarde saímos na busca de encontrar o animal responsável pela morte do aluno, não queríamos que outro fosse assassinado. Andamos por várias partes da mata durante horas, mas não o encontramos. Quando chegamos estávamos exaustos.

Eu fui dormir cedo. Sonhava conscientemente com Norma, porém, no sonho eu não a via com o mesmo olhar de sempre. O interesse que ela despertava em mim não era só por sua inteligência ou personalidade cativante, mas pela sua beleza e sensualidade. Ela costumava usar saias longas e casacos que despertavam a minha curiosidade. No momento em que poderia dormir com ela, o sonho acabou e eu acordei igual a um louco. Ao me virar, vejo Suzanne sentada numa cadeira, se apresentando a mim como veio ao mundo com os cabelos ruivos cobrindo os seios. Levantei-me e rapidamente, fui até ela, peguei-a nos braços e a joguei na cama. Foi uma noite incrível. Estava tão fora de mim que o remorso por ter “traído” Norma veio só depois. Após de duas horas ela dormiu e eu comecei a me vestir para dar uma volta fora da casa e encontrei sobre sua saia uma aliança. Que merda! Ela é casada.

Saí do meu quarto e caminhei pelo corredor até a escada, com aquela maldita sensação de não estar sozinho naquele exato momento. Senti a dor de algo quebrando em minha cabeça e desmaiei.

Fui acordado. Estava deitado sobre uma mesa. Olhei para os lados e vi todos me olhando. Eu perguntei o que estava acontecendo e Albert deu um passo à frente. Ele falou que chegou minha hora, a hora em que eu pagaria pelos meus pecados. Eu não entendi quando ele apontou para um espaço entre o círculo de pessoas a minha volta e vi algo, uma silhueta de uma criatura grande, de média musculatura e os olhos brancos brilhantes. Enquanto eu via aquilo, percebia que o espaço que ele ocupava, deveria pertencer a Norma. Perguntei o que era a criatura e onde ela estava. Albert respondeu algo que jamais saiu de minha cabeça: “‘isso’ é o resultado de toda a blasfêmia covarde e nojenta que rebeldes como você proferem contra o sagrado criador e seu filho que morreu por nós. E por que sua amada Norma não está aqui? Essa criatura só acorda se for alimentada”. Quando ele terminou de falar, não acreditava no que esse psicopata havia dito, estava completamente transtornado. Comecei a gritar, praguejar contra todos que riam cinicamente, enquanto o monstro permanecia quieto. Quando as risadas acabaram, Mst. Sebastian autorizou para que criatura me atacasse. Ele deu um forte salto caindo sobre mim. Ele tentou abocanhar meu rosto quando eu segurei sua boca, mas cortei meu dedo no dente dele e chutei sua barriga, arremessando-o para longe de mim. Corri afastando quem estivesse em minha frente.

Consegui entrar num pequeno quarto anexo à casa e tomei uma espingarda carregada e uma caixa de balas. Fugi por entre as árvores enquanto ouvia o som daquela coisa se aproximando, achava que não passaria daquela noite. No meio do caminho eu tropecei sobre um galho no chão. Maldição! Quando me virei e o via se aproximando, atirei em sua perna, ele caiu. Levantei-me e fui até o corpo. Caminhei um pouco, deixei a arma cair no chão, fui para longe da criatura e desmaiei exausto.

Foi ai que eu parei. Após repousar na caverna, comecei a pensar sobre esse ser que me perseguiu e eu matei. Segundo Albert, aquilo que me perseguia, magicamente nasceu de toda a blasfêmia no mundo. Talvez fosse a mesma coisa que vi em meus sonhos, sendo invocada por eles, através de reza. Não me resta dúvida, aquilo não nasceu da blasfêmia, mas de todo o fanatismo deles, e não era algo incerto, mas sim Deus numa forma física, o criador no coração da natureza. Será que eu matei Deus? Será que o mundo agora é livre para o anticristo? Oh, não. Saí da caverna e segui até a casa, encontrei à arma, porém não o animal, então eu não matei Deus, mas sei que ele nasceu daquelas pessoas, uma aberração igual a elas, eu tnha que elimina-los.

Estava tudo calmo demais. Tentei abrir a porta, mas estava trancada, atirei na fechadura e empurri-a com o pé. As luzes foram acesas e todos apareceram do lado de fora assustados. Comecei atirando na cabeça de Mst. Sebastian que transava com Suzanne no sofá da sala, escondido dos outros. Até o fim da noite eu persigui e matei todos ali presentes. Alguns fugiram pela janela, mas nãoforam  longe demais. Agradeci ao “Deus da pólvora” por ter bala suficiente. A última era especial. Albert havia se escondido no sótão. Eu arrombei a porta e o encontrei encostado na parede chorando e me pedindo clemência. Por um momento eu quis aceitar, mas lembrei de o que ele fez à Norma. Peguei uma cadeira ao lado da cama, quebrei sua perna e usei-a para golpear sua cabeça. Em seguida posicionei a arma em sua boca e disparei. Apaguei minhas digitais e encostei suas mãos nelas criando uma cena de suicídio após matar praticamente todos os seus colegas e alunos, menos o professor de filosofia e sociologia que se escondia no sótão.


Tema: religião.
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 08/05/2016
Reeditado em 20/01/2019
Código do texto: T5629478
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