PAPA LEGBÁ E A BONECA VUDU Dtrl 27

Não passa um único instante dessa miserável vida que não me arrependa do pecado do meu nascimento. Ao fechar os olhos, no silêncio, ainda ouço o suspiro final da mulher se esvaindo em meio a uma torrente de sangue. Sinto o pesar por ter esgueirado como um verme entre suas pernas enquanto coberta de suor esforçava para trazer ao mundo esta cria maldita. Os filhos da morte apenas desgraças trazem à suas famílias.

Por castigo, enrolado no lençol ainda sujo de fezes, fui confiado à parteira que daria o destino merecido a tão desprezível criatura, nem os soluços de fome abrandariam aqueles corações partidos que num ato de reprovação davam as costas à medida que caminhávamos.

Quase sufocado pelas lágrimas, chegamos ao terreiro de Mãe Dondinha, lugar temido, porém procurado em horas de aperto. A velha catimbozeira, mestra da antiga magia negra aguardava aflita a oferenda preciosa, seria um belo sacrifício aos espíritos que unem vivos e mortos, esperavam assim que os orixás naquela noite dar-se-iam por satisfeitos abrindo os caminhos para a infeliz de quem roubei a vida.

Naquelas primeiras horas de vida, enxergava tudo distante, parecia estar no alto de um prédio de quinze andares testemunhando pela janela de vidro insetos alimentando-se de um pequeno monte de estrume. Os mandingueiros vestidos com túnicas de sisal escondiam o rosto com a palha temendo que algum desencarnado reconhecesse sua cara voltando depois para cobrar alguma demanda. Os atabaques ditavam o ritmo, enquanto em volta da criança nua alguns dançavam descontrolados entoando velhas cantigas. As fogueiras acesas espalhavam a luz afastando o breu da noite auxiliadas por velas coloridas que ardiam sobre altares improvisados. Sentada num toco de cajueiro, Mãe Dondinha baforava seu fumo misturado a doce erva de guiné. O tempo corria indolente, esperavam a meia noite chegar, deitada numa esteira de bambu a criança chorava com seu corpo açoitado pela brisa que especialmente naquele momento trazia consigo um enjoativo cheiro de cravos, em seus tornozelos treze miçangas encomendavam sua alma.

O ritual em breve teria início, na hora dos mortos o vento forte agitou a copa das árvores, folhas secas se misturavam à poeira, os tambores aceleraram, a velha estremeceu. Perto do menino, os guias rodopiavam tomados por forças desconhecidas, o fogo queimava com mais vigor. Um sujeito atarracado gritou parecendo que alguém apertava seu pescoço, outros caiam vítimas de espasmos que levavam a convulsão.

Os instrumentos calaram-se ao ecoar bem longe uma risada macabra, aqueles que permaneciam de pé divisaram contra a luz da lua uma figura muito magra com a pele negra pintada de branco, o sujeito caminhava gingando desengonçado, seus membros compridos além do normal estavam cobertos de feridas que exalavam o cheiro da podridão, as unhas retorcidas não pareciam humanas, seu rosto fino de olhos grandes amarelados era encimado por uma cabeleira crespa de onde brotavam inúmeras tranças que unindo-se bem no alto formavam um estranho cocar, os dentes salientes traziam pavor apesar do largo sorriso. Aquilo não era um simples Exu, estavam diante de algo ainda desconhecido nas crenças do candomblé, de tão perversa até mesmo a feiticeira sentiu calafrios percorrerem sua espinha.

Eu via a criatura que ao caminhar, farejava de forma bestial tudo a sua volta, vez por outra escapava uma risada medonha, chocalhos preso nos tornozelos e pulsos produziam o único som naquela escuridão congelante. Bamboleando sobre a oferta, acariciou-lhe a face, de forma suave debruçou sobre o corpo inocente vomitando uma densa nevoa negra que rapidamente foi tragada pelo menino, de longe parecia um enxame de moscas. O forte cheiro de enxofre tomou conta do ar, castigando a todos com o hálito da morte. Da forma como chegou, a entidade partiu.

Uma cabra baliu amarada no esteio do portão, o bicho foi arrastado ao centro do terreiro e sem piedade teve seu pescoço cortado, o corpo foi jogado nas chamas crepitantes da fogueira, ainda hoje sinto o cheiro da carne queimando.

Como filho da morte fui abençoado com o sangue quente, faminto, bebi das veias dilaceradas da cabeça decepada daquele animal. Dali em diante todos sabiam que meus caminhos estavam abertos, nem homens, nem espíritos interviriam na minha sorte.

Foram anos de preparos nas artes místicas primitivas, segui servindo fiel os preceitos do terreiro, mantive inabalável minha fé nos dogmas ancestrais, pesquisei a fundo o mundo dos orixás e mesmo assim em toda a Bahia jamais outro alguém deu notícias da misteriosa criatura.

Agora aprisionado, certifico que verdadeiramente nunca fui livre, era cativo de uma crença equivocada, a religião não é má, as pessoas ali haviam optado pela maldade, tantas oportunidades temos de abraçar o caminho certo, mas no fim a semente havia sido plantada em solo fértil, deixei germinar a perversidade. Todo crime tem seu ônus, poucos serão dignos da redenção.

Cumprindo minha sina, fui enviado pela velha macumbeira ao Haiti, berço do vudu americano, uma magia antiga tão poderosa capaz de subverter a própria vida controlando os mortos, encontraria um velho bruxo que teria quase duzentos anos, recebendo dele a amaldiçoada boneca crioula, um artefato rústico capaz de coletar almas viventes aprisionando-as dando assim a seu portador o controle sobre os corpos vazios.

A passagem pela capital foi curta, Porto Príncipe não ia bem, a cidade castigada pelo terremoto reerguia-se em meio à miséria, escombros por toda parte, pessoas implorando qualquer tipo de migalha, por sorte fui reconhecido ao tocar o solo. Passamos a noite numa barraca improvisada junto a tantas outras ocupadas por gente que sabia apenas lamentar, um povo sem esperanças acostumado com o sofrimento. Partimos rumo o interior ao nascer do sol.

Enquanto caminhávamos, as estradas poeirentas ficavam estreitas, além dos veículos da assistência humanitária nada mais circulava. Os dias ficaram lentos, as conversas enfadonhas, os insetos um flagelo insuportável, até que nos encontramos diante de um pântano semelhante a um mangue. Já estava tarde, não éramos esperados aquela noite apesar de que em duas horas poderíamos encontrar nosso destino, mas caminhar ali poderia ser ariscado, mais uma vez acampamos ao lado da trilha.

Durante a noite embalada pela sinfonia de insetos famintos, entre um coaxar de sapo e o pio da coruja quase dava para distinguir as suplicas de clemência entre tantos outros lamentos, acostumado com os mistérios da escuridão não me abalei, sabia que logo a frente residia um grande mal e desde pequeno aprendi a conviver com ele.

O dia rompeu quente como sempre. Retomada a caminhada, cruzamos uma pequena ponte de madeira, viramos a esquerda por um caminho ainda menos usado. O solo firme virou brejo, passava-se das oito da manhã, o sol forte brilhava acima das árvores de copas baixas fazendo emanar do chão uma espécie de nevoa produzida pela evaporação da umidade noturna, a cada passo a sensação que algo se movia embaixo de nossos pés parecia mais nítida, era como caminhar sobre milhares de serpentes sempre a nos observar.

De fato, por entre os arbustos brejeiros ocultavam-se alguns sentinelas que pareciam presos entre duas épocas distintas, seus movimentos lerdos denotavam pouca força de vontade, verdadeiros fantasmas entre os vivos.

Numa clareira logo a frente descortinava-se nosso destino, o lugar era pobre como todo o resto ali encontrado. Um terreno amplo cercado por um muro de galhos, animais domésticos circulavam livres, no fundo um casebre de madeira com teto de zinco se erguia a um metro do piso evitando a lama do período chuvoso ou a invasão de animais silvestres.

Algumas pessoas guarneciam o local, sujeitos de corpos avantajados parcialmente ocultos nas sombras, ao passar por um deles notei os olhos vazios onde há muito já não existia alegrias, seu corpo forte com as carnes apodrecidas exalava um amargo cheiro de culpa, seus pulmões não sorviam o cheiro da mata, o coração a muito não pulsava. A minha volta os mortos vagavam.

Não resisti, tudo ficou turvo, desmaiei ao ser tocado na testa por aquele que até ali me levou.

Quando me deu tal tarefa, a velha nem sabia do que se tratava, apenas passou o recado. O verdadeiro vudu a muito já fora esquecido, mesmo na África perderam seus segredos, tornaram-se lendas transmitidas em contos fantasiosos a beira de braseiros, apenas um velho eremita dos pântanos detinha seus conhecimentos, diziam ser uma criatura amaldiçoada, um centenário resquício da escravidão que lutou para libertar seu povo, criou e destruiu mandatários, seria ele o próprio Nagbi Ashuit o último guardião da boneca crioula, presente da morte para seu filho na terra.

Quando se tem um pesadelo, acordar é a solução, mas quando se acorda dentro de outro pesadelo nem voltar a dormir poderá nos libertar.

O dia se transformou em madrugada, murmúrios invadiram meus ouvidos, sentia meu corpo queimar de dentro para fora, lentamente abri os olhos.

Pairando acima de todos, vi meu corpo no chão coberto de lama, sob o comando daquele que deveria apenas ser um ancião, criaturas decrepitas prostravam-se de joelhos com as mãos estendidas ao homem que antes me conduzia.

- Papa Legbá. Repetiam.

Estava claro. No meu peito germinava as sementes plantadas, mil abelhas feriam minha alma, algo dominava meu corpo. Recordações confundiam minha mente. Começava a decifrar meu destino. Pude rever meu nascimento, testemunhei mãos mortas arrancarem-me do útero da mulher que poderia ter me amado como filho, senti sua carne dilacerando como papel, seu sangue quente derramando sem piedade. Vi a criatura hedionda espreitando o terreiro, aceitei quando vomitou em mim sua essência.

Eu era um filho da morte.

Na ilha fui levado por aquele que abre caminho entre os mortos, um mero servo de algo maior, uma coisa tão antiga quanto à criação, um devorador de deuses e demônios, aquele que no fim continuará a existir.

- Papa Legbá. Repetiam.

O corpo sem alma se ergueu da lama. Das mãos do rejuvenescido feiticeiro recebeu a boneca maldita, toda sua magia contagiava o novo portador.

Algo importante está por vir. Sobre os grilhões da minha fé, sou assombrado pelos pecados daquele que me domina, sou cativo em mim mesmo, passo os dias como expectador de minha existência, vivendo a cada instante uma nova mentira.

Tema: Religião, cultura latina, mentira e sobrenatural.

(Este é um texto independente que possui referências ao conto A História que Romero não Contou DTRL 24)

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 13/05/2016
Reeditado em 14/05/2016
Código do texto: T5634182
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