MUTATIS... - DTRL 27

BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL

“Eu quero contar sobre algo muito perturbador que quase me custou a vida. Nunca achei que aconteceria comigo, não nesta idade, não como minha experiência, não depois de tudo que já havia visto e passado. Assustado. Subjugado por uma força que eu subestimava, ou melhor, nem sei se acreditava realmente existir. O que aconteceu? Como tudo começou? Não vou falar do início, iria demorar demais. Melhor começar mais recentemente, naquele dia aparentemente normal...”

DIA 1

“Todos temos segredos, acredite, sei o que estou falando. Hábitos, vícios, comportamentos ou simples pensamentos... não importa! Refiro-me aquelas coisas que de certa forma nos envergonhamos e não contamos para ninguém. Gosto de lugares que a maioria das pessoas tem medo de frequentar, e era num destes lugares que eu estava bem cedo naquela manhã.”

– Sente-se. Qual seu nome, meu filho? – perguntou o ancião, agitando com a mão esquerda uma espécie de guizo que lembrava o som de uma cascavel.

– Paulo. Paulo Gama.

– O que quer saber?

– Sou investigador de polícia, já vi todo tipo de merda, o que há de pior no mundo. Não tem como passar tanto tempo no esgoto e não ficar contaminado. Diga velho, há esperança para mim? O que o futuro me reserva?

– Quer mesmo saber? As cartas não mentem. Não, não, não...

– Sim, vamos logo com isso!

O bruxo embaralhou e espalhou as cartas do vetusto baralho cigano sobre a mesa, quatro foram separadas, mas, apenas três reveladas: a cobra, a foice e o caixão.

– Filho, nunca vi algo assim. Lamento, mas, há um grande mal sobre você: traição, perigo e forças ocultas – disse ele ao guardar a carta remanescente num saquinho de veludo sem olhar a imagem – leve contigo esta carta, ela selará seu destino e você só deve vê-la no momento certo.

– Mas, e como saberei a hora certa?

– Acredite. Você saberá!

**

(DELEGACIA)

“As pessoas sempre se questionam sobre certas coisas. Se realmente existem... A pergunta certa não é SE e sim QUANDO. Algo esta sempre acontecendo, mas, as pessoas nem sempre enxergam, ou entendem, ou aceitam.”

– Fala, meu brother Paulo! Como esta o investigador mais fodástico da DP?

– E aí, Rogério. Vamos levando, parceiro.

– Então, será que o Dr. Purgante já tá por aí?

– Não sei, vi ele correndo no parque lá pelas 10 quando vinha pra cá. E vê se para de chamar o Delegado Julio Cesar por este apelido, se ele descobrir vai dar merda pro teu lado.

– Xá comigo que to esperto, além disso, o cara é um purgante mesmo: chato, mais desorganizado que roupeiro de adolescente e o rei da indecisão... puta que o pariu, que cara enrolado... Não sei como você pode gostar dele, logo tu, que é o oposto: um cara experiente, todo organizado, que já solucionou vários casos importantes e tals...

– E as qualidades, não contam? Comprometido, leal, um cara sério...

– Deixa assim – disse Rogério – e por falar em sério, qual o galetinho tu anda matando agora? Porque de sério tu não tem nada, brother... baita pegador, isso eu te invejo e...

– Desculpe interromper o papo de alto nível – disse Dona Teresa, secretária da DP, enquanto se aproximava – tem uma ocorrência para vocês, encontraram vários corpos numa casa.

**

(CENA DO CRIME)

“Muitas vezes, por mais horrível que algo pareça, não é o que esta explícito o mais preocupante e sim o que esta submerso, onde as coisas realmente sombrias espreitam”.

– E então, Paulo, o que temos até agora? – perguntou o delegado Julio.

– A casa é ampla e precisamos fazer uma busca geral, parece que não era usada há algum tempo. Na parte de baixo tem os cadáveres de um casal jovem e um feto que foi arrancado da barriga da mulher, mortos a relativamente pouco tempo. O nome da mulher era Priscila, teve o ventre e depois a garganta cortados. O feto, mesmo ainda amorfo teve o coração arrancado. O jovem sobre ela tem uma adaga cravada no coração, provavelmente a arma do crime, seu nome era Otávio.

– Este louco deve ter matado a pobre coitada e o filho e depois se matou...

– Pela posição dos corpos parece que sim, mas, ainda é cedo para afirmar. Lá em cima também há um circo de horror. Havia uma passagem escondida na casa, alguém a deixou aberta, no sótão tem três corpos ressecados amontoados num baú. Um homem e duas mulheres, estes ainda não sabemos quem são. A perícia vai nos dar mais detalhes após os exames, parece que realizavam rituais neste sótão, também tem muito material: livros, um gravador. Disse para recolherem as digitais e depois mandar tudo para a delegacia.

– Ok, bom trabalho. Pelo visto isso vai levar a tarde toda. Mantenha-me informado, quero encerrar isso o mais rápido possível. É um prato cheio para mídia fazer sensacionalismo.

**

(CASA DA AMANTE)

“Se você acha que fazer sexo num momento de grande estresse é algo impensável, é porque você não conhece a natureza dos homens”.

– Paulo, como você esta quieto esta noite. Esta pensando sobre o caso de hoje à tarde? Coisa horrível, vi sua entrevista na tv agora a pouco.

– Rafaela, você sabe que não falo sobre meu trabalho ¬– disse enquanto levantava-se da cama e começava a se vestir.

– Ok, não esta mais aqui quem falou... não precisa ficar incomodado. Achei que você iria passar a noite comigo...

¬– Não posso, hoje tenho que dormir em casa. Além disso, porque eu dormiria ao lado de uma vagabunda como você.

– O que? Você nunca falou assim comigo antes. Sabe que só aceito esta situação porque te amo.

– Você ama é inventar mentiras no trabalho para ir até o meu carro pagar um boquete durante o expediente.

**

(CASA)

– Coisa horrível este caso, até achei que você iria ficar até tarde na delegacia – disse Flávia enquanto colocava os pratos na mesa.

– Tenho que esperar a perícia nos materiais, devo recebe-los amanhã.

– Amor, sei que você não gosta de falar sobre o seu trabalho e respeito isso. Mas, quando vejo você se envolvendo com coisas como esta que estão noticiando, fico preocupada.

– Eu sei meu amor.

– Paulo, você não fica com medo?

– As vezes sim – respondeu após uma pequena pausa.

**

DIA 2

(DELEGACIA)

– Fala, meu brother. Como foi a noite?

– E aí, Rogério. Mais ou menos, não dormi muito bem. Tem coisas nesta história que não se encaixam. Todas as evidências apontam para o garoto ter matado todos os outros e se suicidado, mas, não consigo engolir essa.

– Acho que cê tá paranoico, mermão! Chegaram os relatórios, as digitais são mesmo do garoto, na arma do crime, pela casa toda... E mais, os corpos ressecados eram todos da família de Otávio que haviam sumido há tempos: o pai, a mãe e a irmã.

– E o gravador? Tem alguma coisa nele.

– Então, Paulo. Tem umas gravações de Otávio falando sobre a vida dele, depois fica estranho, os últimos áudios parece a voz dele, mas, bem diferente e falando em outra língua. O linguista disse que é uma língua morta: sírio-aramaico.

– Que estranho, e conseguiram traduzir?

– Tão tentando transcrever, acham que conseguem pra hoje ainda.

– Quero receber assim que chegar. E os livros?

– Tão tudo lá na sala, dei uma espiada. Umas porra de imagens sinistras, demônios e tals. Falando nisso, brother... Tu acredita em Deus, Paulo?

– Eu vou na igreja de vez em quando, mas, no nosso trabalho, é difícil manter a fé.

**

“Um policial experiente sente, um policial vê. Sabem que o segredo esta nos detalhes, nas pequenas coisas, podem não perceber na hora, mas, em algum momento refletem e percebem que algo estava lá”.

– Alô!

– Paulo, é a Rafaela. Seu filho da puta! Eu só liguei pra dizer que nunca fui tão ofendida na minha vida, nunca mais quero olhar pra esta tua cara!

– O que? Esta louca? O que a... (tú tú tú)

– Alô! Alô! Porra, não me faltava mais nada... esta louca desligou na minha cara.

– Que tu ando aprontando, brother – perguntou Rogério.

– Não fiz porra nenhuma, esta mulher deve estar maluca. Deixa quieto que vejo isso depois. Você viu o delegado Júlio?

– Acho que saiu, ouvi dizendo que ia almoçar com a Lily, aquela gostosa da namorada dele.

– Já te alertei, qualquer hora você vai se foder com o delegado por causa desta tua implicância, sem falar nessas gracinhas que vive falando.

– Engraçado tu dizer isso, brother! Achei que tinha acabado teu amor por ele, o pessoal me contou que vocês andam discutindo feio...

– O que? De onde tiraram isso? Só pode ser exagero de quem não tem o que falar. Bom, vou dar uma olhada naqueles livros.

**

– Brother, chegou a transcrição do sírio-aramaico. Já passa das onze da noite, cê ta desde as três da tarde lendo estas porras, descobriu algo?

– Os livros falam de demônios, todos os tipos, mas, não encontrei nada específico. Vamos ver a tradução pra ver se ajuda.

**

– Paulo, muito louco isso, brother. Entendi certo? É o próprio capeta falando que tinha possuído Otávio, vivia dentro dele desde criança e quando se manifestava ia matando sua família... no fim, com ele adulto, tomou o controle, matou sua namorada, o filho e fez ele se matar! Cê acredita nisso?

– Sinceramente, ainda não sei. Mas, tenho que admitir que se partirmos do princípio que o mal existe, faz todo o sentido.

– E os livros, conseguiu ver alguma ligação agora?

– Sim, tem um demônio em específico... mas ainda tenho que estudar mais para entender melhor. Vá para casa, amanhã voltamos a conversar.

**

“As pequenas coisas, sempre as pequenas coisas, como uma conversa banal com o vigilante da DP de madrugada na saída da delegacia”.

– Quase quatro da manhã, foi puxado hoje, heim Paulo?

– Verdade! Vou para casa ver se descanso um pouco. Boa noite, Alberto.

– Boa noite, Titinho!

– Do que você me chamou?

– Pelo seu nome, ué...

– Tem certeza?

– Claro! O que você quer dizer?

– Nada, nada de mais. É o cansaço, deve ser minha mente me pregando uma peça. Boa noite!

**

DIA 3

(CASA – 8h32 DA MANHÃ)

– Alô.

– Inspetor Paulo, desculpe te ligar este horário, sei que passou a noite trabalhando, mas, o delegado Julio Cesar insistiu para que eu ligasse para saber se há mais informações sobre o caso.

– Dona Teresa, diga para ele que ainda não tenho nada.

– Acho que ele vai querer falar com o senhor.

– Olhe aqui, a senhora é uma ótima secretária e não quero ser indelicado, apenas diga a ele o que falei. Tchau, Dona Teresa.

– Ok, me desculpe. Tchau, Titinho!

– O QUE? DO QUE VOCÊ ME CHAMOU? ALÔ! ALÔ! ALÔ!

**

(DELEGACIA)

– Dona Teresa, do que você me chamou quando falamos pela manhã?

– Como assim, inspetor? Pelo seu nome.

– Não, você me chamou de Titinho? Este era meu apelido de criança, ninguém sabe disso. Por que você me chamou assim?

– Eu não lhe chamei por este nome, não sei de onde tirou isso e muito menos que era seu apelido. Não foi o senhor mesmo que disse que ninguém sabe?

**

– Até que enfim parece que vou conseguir falar com você, o que descobriu sobre a porra do caso? Tenho certeza que esta escondendo algo! – falou de forma ríspida o delegado Julio Cesar.

– Não descobri nada de novo, acho que você estava certo. Otávio matou todo mundo e se matou. Não foi isso que você disse?

– Não se faça de bobo, acha que sou palhaço? Você sabe de algo, E VAI ME DIZER AGORA!!!

– Sim, eu sei. E não vou te dizer porra nenhuma!

– Não se esqueça com quem esta falando. Você vai se arrepender, Titinho!

– Eu ouvi do que você me chamou, mas, vai dizer que me chamou pelo meu nome, não é mesmo? – disse virando as costas.

– Do que você esta falando? VOLTE AQUI. VOLTE AQUI...

**

(CASA)

– Flávia, meu amor, você me ama?

– Claro, mais do que tudo.

– O que vou lhe dizer pode não fazer sentido, talvez você ouça coisas horríveis sobre mim. Estamos correndo um grande perigo, talvez algo muito maior do que eu possa lidar.

– O que esta acontecendo? Estou ficando com medo.

– Você precisa ir embora, não amanhã, não daqui a pouco... Agora, você precisa ir embora para algum lugar, qualquer lugar e não dizer para ninguém, nem mesmo para mim onde você vai.

– Eu não posso fazer isso! É impossível, só temos um ao outro, você sabe que não temos família.

– Sim, graças a Deus. Agora vá, deixe tudo para trás e não confie em ninguém, nem mesmo em mim. Vá ou você vai morrer, vá e não olhe para trás.

**

(DELEGACIA)

– E aí, Brother? Cê ta com uma cara de acabado da porra! O que ta acontecendo com você e o delegado? Cê anda muito estranho, parceiro.

– Não é nada!

– Tem certeza, Titinho! – disse Rogério com um sorriso.

– Não é nada – disse fazendo que não ouviu o apelido – Chame o pessoal, tenho uma revelação sobre o caso que quero fazer para todos.

**

“Há momentos que decidem seu destino, você decide se vai recuar. Considero que nestes momentos as pessoas fortes continuam em frente, não importando o que vão achar.”

Todos os presentes na DP naquela noite foram reunidos: delegado Júlio Cesar, Rogério, Alberto e até Dona Teresa.

– Até que enfim, Paulo, tirando o fato de eu não entender a necessidade de todo este circo... espero que realmente tenha algo a dizer – falou sem muita paciência o delegado Julio Cesar.

– Sim, tenho algo a falar: “Revela-te, ó pai da mentira. Revela-te filho da luxúria. Revela-te porque sei teu nome e te ordeno, revela-te imoral. Revela-te BELAPUR”.

Ditas estas palavras, todos os presentes se viraram de forma automática, numa sincronia bizarra, falando ao mesmo tempo como se fossem uma única pessoa:

– Como descobriu? Na casa? Nos livros? Ou foi no seu apelido de criança que não me contive em falar? Sim, da para ver que descobriu algo. Bem, tem coisas que você não deveria saber...

– Como o que? Que você tem o poder de possessão de várias pessoas? Que pode passear pelo interior das pessoas sempre que quiser? Como um animal pulando de galho em galho?

– Quem sabe não deve nunca contar! Cuidado com minha ira.

– Sei que você pode morrer! Você morre hoje!

– Não me faça rir!

“Não se sabe ao certo os poderes que há nas coisas, nos anjos, nos demônios e até nas pessoas. Sempre há segredos a serem descobertos e poderes a serem revelados, isso foi algo que aprendi. A chave de tudo é saber quem é o escolhido, algo que nem mesmo ele sabe quando é”.

A última carta foi revelada: a Cruz! Sacrifício, a entrega ao demônio de livre e espontânea vontade, só os escolhidos tem este dom. Se entregar! Deixar o demônio entrar e ser mais forte que ele. Não é algo que se aprende ou explica, é algo que simplesmente se sabe quando tem que saber.

– Ó Belapur! Pela carta do sacrifício me entrego a sua possessão de livre e espontânea vontade! Atenda meu chamado e vejamos, dentro do cálice sagrado do meu corpo qual de nós dois irá perseverar!

“Então, assim como eu disse no começo, eu fui humilhado, enganado e quase morto por um investigadorzinho chamado Paulo Gama. Dá para imaginar como é viver por milhares de anos e perceber que vai morrer? É, um demônio pode morrer e Paulo quase descobriu um modo de me derrotar no meu próprio jogo, mas, sabe porque eu venci? Porque sou o pai da luxúria, algo que sempre foi mais forte que ele. Agora vou me divertir por aí com o que sobrou dele, a partir deste momento não existe mais Paulo Gama, apenas eu, Belapur. Agora ele vai ver do que sou capaz, para você fica a lição: nunca desperte a ira de um demônio”.

TEMA: Sobrenatural.

Maddox
Enviado por Maddox em 15/05/2016
Reeditado em 16/05/2016
Código do texto: T5636768
Classificação de conteúdo: seguro
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