HoMeNs MoRtoS nÃo CoNtAm HiStÓrIaS - DTRL27

Acordei nu com o umbigo cuspindo sangue nas pedras, minha cara enterrada na areia salgada. A cabeça doía e o corpo queimava como se tivesse sido espetado por mil lâminas! “Ressaca dos infernos, culpa do maldito rum!” Minha boca estava inchada e mal podia falar. Sentia-me a imitação barata de um corsário. Na garganta o gosto azedo de vômito e sangue misturava-se. Estava ao chão, avistando um pouco a frente, enquanto espiava o verde empoeirado da floresta, uma faca de mato, cega, refletindo a luz do sol. De bate pronto a reconheci, a mesma lâmina que havia usado pra me safar daquele ninho de bestas dos mares!

Disse pra mim mesmo: Basta! Se tu achas que vai morrer aqui, vermezinho da terra, tu estás enganado! Tu és um rato do mar... Ouça bem, tu és um PIRATA!

A imagem do monstro ainda velejava nas águas de meus olhos, e eu andando na prancha do meu próprio navio, pé em pé, a madeira envergando cada vez mais, desobedecendo minhas ordens, convidando-me pra uma Giga. A ponta da espada beliscava minha bunda, enquanto que aquele bando remelento de saco de pulgas nada podia fazer pra salvar o próprio capitão. Ratos peludos, restos do oceano, me deixaram ser atirado no poço dos tubarões, onde alma alguma havia sobrevivido. Arrrrrr! Irei pessoalmente convidar cada um deles para dançar a Giga do cânhamo!

Será que não sabem! Não sou qualquer um! Sou um cão sarnento dos mares! Filho de piratas! Neto de piratas! Sou Will PSK! Will Pirata Sanguinário Kamikase! Se alguém poderia fugir dali, esse alguém era eu. Mas a dor continuava cavando fundo meus tesouros.

“Aaaaa! Como pode essa perna estar doendo tanto?”

E ali eu estava, fedendo como se tivesse nadado anos em meio a uma fossa.

“Não vou comer a poeira do Oceano. Não! Irei varrer cada palmo, cada milha, e hei de humilhar aquela criatura assombrada! Guarde essas palavras, bucaneiro, isso, estou falando comigo mesmo! Guarde essas palavras! Tu irás matar aquela baderneira, arrancar as tripas com tuas próprias mãos, e fará um colar com elas usando aqueles olhos azuis hipnotizantes como pérolas, e então o pendurará no pescoço e carregará pra eternidade. Palavra de Pirata, e dessa vez tenho uma, pode contar com isso!” Aaaaa! Maldita dor!”

Levei a mão onde o incômodo era inimaginável e o toque não somente foi doloroso, foi revelador e angustiante. “Onde diabos está minha perna esquerda?” Como poderia saber? Poderia estar flutuando em outras águas, ou triturada dentro da barriga de um tubarão. Pensar nisso só me causava mais dor. Eu precisava dormir um pouco antes de agir. E antes que pudesse pensar em como fazer isso, aconteceu, desmaiei.

Acordei, pelo giro do sol, algumas horas após. Se ela achava que havia tremido meus cascos, estava enganada. Amarrarei aquela cadela no poste, e a cretina há de pagar pelo que fez, ou não me chamo Will! No fim irei prepará-la um horroroso castigo do mar, e ela servirá de alimento para os peixes. Pelas barbas negras daquele diabo, preciso de mais uma caneca de Rum. Certo é que não irei ancorar meu corpo nesse lugar, não eu, não o jovem e belo William, pois sou um pirata e não serei vencido por uma ilhazinha qualquer. Com perna ou sem perna! Com dor ou não, a areia não se tornará cofre dos meus ossos.

Se eu ainda tivesse dois olhos, teria dado um pelo meu regresso. Se ainda possuísse meus espólios todos eles seriam pagos aquele que me resgatasse. Estava quente, não somente o tempo, mas eu também. Talvez 38 graus de febre, acho que mais que isso. O suor trilhava meu corpo fazendo cócegas na pele. Arrastei minha carcaça usando dos cotovelos, deixando um rasto vermelho e fundo na areia. O torniquete que providenciei não seria o bastante, precisava das ervas certas, e como um bom capitão obviamente eu sabia onde achá-las.

Sentei-me sob a sombra de duas árvores. A noite viria a qualquer momento. O som do mar cada vez mais forte na enseada. Eu precisava me afastar e encontrar um local mais alto e seguro. A maré subia muito naquele ponto que formava uma pequena baía, então continuei me arrastando o quanto podia.

Após rastejar por quase duas horas dormi, porém dessa vez voluntariamente. Esperava que mais cedo ou mais tarde algum navio atracasse, e tinha a esperança que isso acontecesse em dias.

Despertei durante a madrugada. A ferida latejava bastante. O pano amarrado cerca de cinco centímetros do machucado, e abaixo dele um pedaço do osso se mostrava. Alcancei uma árvore e procurei um galho que pudesse me servir de muleta. Nada! Precisei procurar mais. Após algum tempo consegui um que não estivesse tão podre, nem tão verde. Com certo trabalho consegui deixá-lo um tanto apropriado para tal.

O próximo passo foi conseguir encontrar as folhas necessárias, providenciar um recipiente para preparo do chá e tratar do ferimento. Fiz isso e enquanto caminhava pela ilha, manquitolando, ouvi o barulho de água corrente, que no dia seguinte revelou ser uma pequena nascente que desaguava no mar alguns quilômetros abaixo.

Uma semana se passou, eu já havia providenciado um abrigo, mas não era o bastante. Alguns ajustes seriam necessários, mas ao menos já não dormia no chão. A febre deixou de me incomodar na madrugada do terceiro para o quarto dia e as ervas faziam efeito, como o esperado, afinal não era a primeira vez que era ferido ou que não lidava com ferimentos graves. Quantos ratos de fossa já havia costurado em minhas caçadas! Já havia perdido a conta há tempos.

Semanas se passaram. Alimentei-me como podia, caçando, criando armadilhas, pescando, sendo um pirata. Usei de todo meu talento para sobreviver, mas a solidão era angustiante. Horas se transformaram em dias, dias em semanas e de repente eu estava naquela ilha há mais de oitenta noites. Precisava de companhia e o que eu teria ali? Com quem poderia falar? Conversar sozinho e tramar minha vingança já não era o suficiente, e foi então que eu o vi.

Não foi fácil capturá-lo, foi preciso ter paciência e vencer a ansiedade . Vi o ninho sendo feito, esperei e esperei. Foi no alto de um tronco, precisei esperar que o ovo chocasse e depois fiz a única coisa que podia, visto que subir até lá, dada minha condição, era absolutamente impossível. Derrubei a árvore com o bicho caindo logo depois e a mãe voando aturdida. Só de ouvi-lo palrar, mesmo que ainda não falasse, foi algo incrível. Ele então precisava de um nome, e admito que pensei em vários, mas acho que assim como eu aquele verdinho necessitaria de uma origem, de algo que nunca o deixasse esquecer de onde havia vindo. Então o chamei de Tronco.

Eu podia ter cortado o osso que apontava para o chão, sobrando de meu corpo como uma anomalia, mas não. Sou um pirata, oras. O papagaio havia me mostrado que ainda tinha chance, que nada me parou... Encarei a morte de perto e ainda levantaria as cores de minha bandeira, tomaria um grogue com meus camaradas em homenagem as almas que estão perdidas no armário de Davy Jones, e no fim da minha primeira noite fora daquela ilha ainda dormiria com uma suculenta senhorita. Pode contar com isso!

Seis meses e alguns poucos dias. Estava a amolar minha faca para fazer a barba, e aparar meu bigode. Odiava que ele ficasse grande demais, afinal queria estar apresentável pra o dia de meu resgate. Caminhava com Tronco no meu ombro, ele já falava algumas palavras, aprendia com bastante facilidade, e até repetia algumas frases. Como “Mostre uma Perna” ou “Trema meus Cascos”, mas a que eu mais gostava era “Quero suas escamas, sereia”.

Tronco e eu papeávamos o dia inteiro, claro que às vezes era um pouco irritante, repetir demais as coisas, balançando sua cabeça e até acariciando meu pescoço, mas gostava dele, gostava muito, como nunca havia gostado de ninguém. Ouvi naquele dia, após meses, o som de uma conversa, homens resmungando ao longe. Segui o barulho e vi o navio ancorado próximo a praia. Eram piratas.

Fiz a coisa mais idiota que podia, eu gritei por socorro. Não tinha ouro para dar-lhes e de que valeria a minha palavra. Era uma tripulação pequena, um navio pequeno, apenas quinze homens á bordo. O capitão do navio se chamava Klainer, e mesmo eu não o reconhecendo de imediato ele disse já me ter visto certa vez, em uma taverna, contou que era mais novo, um marujo ainda e que quando se ofereceu para fazer parte de minha tripulação o chamei de frangote. Mundo pequeno esse.

E não foi só isso, pois me lembrei bem. Eu perguntei pra ele se estava disposto a matar alguém. Eu sempre fazia isso! O maldito disse que sim, então peguei minha arma e dei a ele, coloquei-a na minha testa e disse; ”Puxe o gatilho, seu merdinha!”

Inteligentemente ele não puxou, e é claro que a arma estava descarregada, mas o vermezinho se borrou nas calças assustado. E aquele foi meu erro. Não o deixei fazer parte da tripulação apenas por esse motivo, pois ele tinha passado no teste, daí o porquê do meu apelido Kamikase . Sempre a mesma prova para os novos marujos.

Pensei que iria me matar logo, de certo é o que faria com ele, mas não. Ele me convidou para o barco, entrei e ganhei uma chance. Tive a oportunidade de escrever essa carta. E é isso que estou fazendo, terminando de escrevê-la e dizendo que me vingarei da sereia que encantou meu barco e minha tripulação, mas infelizmente hoje não retornarei para casa. Na verdade fiz um acordo com o Capitão Klainer, e ele não matará o meu amigo Tronco, mas o levará com ele.

Eu também não morrerei hoje, mas o Capitão em toda sua misericórdia prometeu que essa é a última vez que escreverei com a mão direita, e que essa carta é para que todos saibam que ele me deixou aqui, sozinho novamente.

Enquanto você lê, saiba que ele não mentiu, eu quero acreditar nisso; Sendo assim ainda estou vivo, em breve sairei dessa ilha e me vingarei de todos, até mesmo dele, afinal como ele mesmo disse; "Homens mortos não contam histórias". Pode contar com isso!

PS: Tronco, meu amigo, se encontrar com a sereia que um dia disse me amar, diga a ela que ainda arrancarei suas escamas.

Tema: Criaturas Aquáticas e Mentiras

Dicionário:

Baderneira – Um nome para mulheres. Não é educado, mas também não é rude.

Basta!. – Parar e dar atenção. Esta palavra, como muitas do vocabulário dos piratas, tem muitos significados. Ela também pode ser utilizado no lugar de: “Wow! Pegue um pouco daquilo”, “Dê uma olhada”, “Não”, ou “caia fora”.

Castigo do Mar – Uma morte feia, de fato. O pirata é amarrado por uma corta na frente de um navio que se move rapidamente. Então, ele é arrastado pela quilha, ou canto no fundo do navio. Ele normalmente é atingido por cracas que sobem. “Você receberá o Castigo do Mar” daria medo em qualquer pirata.

Espólios – Tudo de valor que um pirata possa roubar.

Grogue – Uma bebida alcoólica, normalmente rum diluído em água e suco de limão. Neste contexto, você poderia usá-la para se referir a qualquer bebida alcoólica diferente de cerveja. Falaremos disso mais tarde.

Inteligentemente – Fazer algo rapidamente. Inteligentemente, hein” poderia servir para pedir mais uma rodada num bar. A garçonete ficará impressionada e poderá cuspir em sua cerveja.

Meretriz – Uma mulher, garota ou garçonete. Também pode se referir a plebeias.

Mostre uma Perna! – Frase para acordar um marujo. “Mostre a perna!, já está amanhecendo, seu verme com escorbuto!”.

O Armário do Davy Jones – Onde as almas de piratas afogados vão.

Pode contar com isso! – “Pode apostar!”

Rato de fossa – A fossa é o menor nível do navio. Ela é carregada com água pegajosa e suja. Um rato de fossa, portanto, é um rato que vive no pior lugar do navio. Piratas, como suas contrapartes modernas (caras normais), amam brincar e xingar seus camaradas. Um bom pirata sempre chama os camaradas de “ratos de fossa”.

Senhorita – Um nome para mulheres, normalmente mais educado e romântico.

Suculenta – Sexy.

Trema os meus cascos! “Bem, estarei lá”, ou “É só isso?”. Originou-se do impacto de bolas de canhão no navio.

Verme – (ou verme da terra) O Verme é um pobre marujo, e um verme da terra é um marujo excepcionalmente ignorante. [1] Num lugar onde todos estejam conversando como piratas, o verme é sempre um insulto.

Tema: Criaturas Aquáticas e Mentiras

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 15/05/2016
Reeditado em 16/05/2016
Código do texto: T5636770
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