O "Sussurrador"

Crianças tolas temem seres horrendos que habitam a escuridão de seus armários ou sob suas camas, seres apresentados em pequenos fragmentos desconexos de estórias contadas por seus pais. Não há muita inverdade nisso, porém, mal sabem eles que tais seres sequer existem. Há uma gama infinita de medos que podem assombrar uma pessoa, e tais medos são tão primevos e básicos que chega a beirar o ridículo conjecturar sobre suas origens ou motivações.

Bom… Era isso que eu pensava.

Nada mais perfeito para um ser humano se deparar com “aquilo” que reflete sua própria insignificância, a total falta de controle sobre fenômenos, sejam eles paranormais ou não, pensar sobre tais “coisas” fora de nosso domínio de raciocínio nos leva a bloquear tais pensamentos numa fuga do possível encontro com a fronteira tênue que nos separa do oculto.

Eu lembro todas as noites, mesmo que nunca mais tenha experimentado novamente, aquele evento. Minha irmã sempre jurou que não tinha participação e sequer tenha presenciado tal fenômeno que eu descrevia apavorada todas as manhãs. Nossa casa não possuía nada de especial, nem o bairro tinha atrelado a sua história algum ocorrido inexplicável comumente associado ao ocultismo, mesmo assim, todas as noites, eu ouvia. Não era assustador, nem ao menos sinistro, pode-se dizer que era no mínimo “familiar”.

Dormíamos, eu e minha irmã, no mesmo quarto, mas apenas eu ouvia, todas as noites, aquele sussurro, não de algo nítido, ou amedrontador, era apenas um sussurro, como se algo, ou alguém, conversasse em um idioma desconhecido, antigo, perdido, mas familiar. Antes eu o ouvia próximo a porta do quarto como se estivesse exatamente entre a madeira da porta, duas semanas depois o ouvia próximo à porta do guarda-roupa. Mas com o tempo o sussurro vinha aproximando-se de forma aterradora.

“ele” surgia todas as noites, em horários aleatórios mas sempre após eu pegar no sono profundo até ser despertada por “ele”. Não sentia que estava tentando se comunicar comigo, era como se a “voz sussurrante” ignorasse nossa existência dentro do cômodo, essa provável indiferença me incomodava, e aos poucos tornou-se uma revolta. Não admitia que eu pudesse ser considerada um “nada” seja lá pra quem fosse, não conseguia aceitar essa condição. Seja lá o que fosse, eu ia revelar.

Foi a duas semanas, quando experimentei fazer contato com a tal “voz”. Levantei-me em meio a escuridão, voltada para a possível origem do sussurro que poderia estar a menos de um metro de mim. Meu corpo ainda tremia, meu coração palpitava freneticamente, mas tomei coragem e perguntei “quem está ai?”, o sussurro cessou imediatamente, como se o “dono” da voz estivesse surpreso e paralisado pela minha atitude. Fez-se silêncio por alguns instantes, então ouvi minha irmã mover-se na cama acordando do sono pesado perturbado pela minha voz. Disse que estava tudo bem, fui em direção ao interruptor e acendi a luz, ela estava sentada na cama, seu olhar vago me fitava, seus braços rentes ao corpo se apoiavam na cama e apertavam o lençol, fui em sua direção tentar acalmá-la, pois sempre ficava irritada ao ser acordada em meio a madrugada. Sentei ao seu lado e segurei seu ombro pedindo que voltasse a dormir, mas estava rígida como pedra, fitava-me ainda com o mesmo olhar vago, sem vida, um sorriso lento começou a se projetar em seu rosto rosado acompanhado de sua mão gélida tocando meu rosto. Seu peito roncou, e um som como de mil vozes acompanharam seu sorriso doentio. Segurou minha mão me forçando a continuar sentada ao seu lado, seu olhar agora fitava diretamente o meu, e as vozes não cessavam. De repente tudo ficou escuro, me senti caindo no vazio. Não sentia nada abaixo dos meus pés, minhas mãos não tocavam nada sólido, apenas uma massa fina que envolvia todo meu corpo, perdi totalmente a noção de tempo e espaço e estava mergulhada em desespero.

Num piscar de olhos senti o chão se fazer sobre meus pés, senti que algo segurava minha mão, era minha irmã com o mesmo sorriso. Olhei ao redor atônita e vislumbrei um horizonte distante em todas as direções, percebi que estava sobre um lugar alto, sentia muito frio. Minha irmã me puxou para um parapeito à nossa frente, meu corpo já não me obedecia mais. Da beirada do parapeito vislumbrei aquele cenário aterrador, aquela imensidão de pequenos blocos de pedra esverdeada translúcida como cristais organizados em fileiras que se estendiam até perder de vista, em cada bloco havia uma massa disforme que oscilava inúmeras cores e formas, algumas saíam destes blocos e voavam livres naquele ar pesado e levemente tingido de lilás. As formas atravessavam pequenos discos translúcidos de cor azulada e sumiam. Outras formas geométricas inimagináveis flutuavam sobre nós, engolindo umas as outras e multiplicando-se.

Minha irmã levantou a mão em direção a um cubo opaco e negro que girava sobre seu próprio eixo rapidamente, de repente estávamos dentro de um salão oval de dimensões colossais, tudo era colossal. O chão era adornado com mosaicos de diferente formas e cores, alguns oscilavam cores nunca vistas antes. Neste salão existiam seres imensos, alguns de formas indizíveis, sentados próximos à parede e ao redor do centro onde estava um grande bloco translúcido avermelhado que se movia como a água. Os seres olhavam, pelo menos os que pude ver os olhos, para este bloco, um ser colossal e maior que todas ali, com aparência indescritível, fazia gestos com uma de suas mãos em direção ao bloco e este se movia. Todos ignoravam minha presença.

Minha irmã virou-se para mim, agora o sorriso tinha-se desfeito e seu rosto estava sereno, sua mão foi em direção ao bloco que atraía a atenção dos colossos e retirou uma porção pequeno daquele líquido e com sua palma virada na direção da minha testa empurrou contra minha pele o líquido, neste mesmo instante pude ouvir nitidamente suas palavras dentro a minha mente, pois sua boca continuava selada.

Me contou que “ele” era o Sussurrador, o emissário das mensagens entre os “Antigos” que habitavam aquele lugar muito antes do tempo existir. Disse que sempre viajava entre nossa dimensão, mas nunca percebera que eu era capaz de ouvir seus sussurros, decidiu revelar-se e apresentar-me seu “lar”, pois adorava ver a alma e a mente humana definhar em loucura logo após, também disse que sua forma verdadeira não revelaria, mas que não era diferente das demais. Segurou-me pela mão e disse “Vamos voltar para casa”.

Um turbilhão de sons, imagens, cores e sensações que nunca antes experimentei percorreram meu seu naquele momento, me senti no vazio novamente e logo senti o chão sob meus pés, as luzes acenderam-se bem devagar e vi que estava em meu quarto novamente, estava tão confusa que sentei-me no chão em posição fetal tentando assimilar tudo que acontecera, acabei por dormir nesta posição, exausta.

Pela manhã acordei ofegante e suada, atônita e desorientada, sentei-me na cama e tentei recobrar os sentidos, foi neste instante que vi o corpo da minha irmã estirado sobre a cama, estava viva, respirava, mas seus olhos quase turvos fitavam o teto, seus dedos e pés estavam tortos e seu rosto convulsionado. Levantei-me as pressas e a segurei rapidamente, este foi seu último suspiro dando um gemido tão aterrador e estridente que fez com que nossos pais adentrassem o quarto imediatamente. Seu corpo inteiro continha hematomas roxos e amarelados como se tivesse sido jogada de um despenhadeiro, seu crânio e ossos estavam fraturados em vários lugares, tudo isso serviu como acusação contra mim, como se eu por algum motivo torpe tivesse espancado minha própria irmã, contei para meus pais sobre a experiência, em meio ao choro e desespero, mas isto apenas serviu para que fosse internada em um hospital psiquiátrico.

Como “ele” disse, a alma e a mente humana definhariam, por isso estou dando um fim a esse pesadelo, deixo registrado meu relato e sinceramente não espero que acreditem, ninguém nunca acreditaria.

A mente humana é apenas uma fina fatia inocente e frágil de toda a imensidão que abrange até o desconhecido, e não estamos prontos para descobrir. “Hadoon”.

31 de maio de 1957 – Keziah Mason

Daniel Gross
Enviado por Daniel Gross em 31/05/2016
Código do texto: T5652390
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.