A MUTAÇÃO DE WILSON RAMOS

O momento exato que aconteceu a mutação do Wilson eu não sei - mas foi meu pai quem contou esta história enquanto visitava meu tio. Eu era criança naquela época, quando meu pai contou o fato para meu tio enquanto lia o jornal sentado na varanda da sua fazenda em Campo Grande.
Meu pai na época tinha quarenta e três anos, e não era nenhum inventor de histórias, e tudo que falava é porque tinha realmente presenciado a cena. Ele falou a meu tio sobre o caso de Wilson Ramos, o incrível caso de Wilson Ramos.
Foi um pouco depois do seu misterioso sumiço, e do estranho reaparecimento.
Foi a partir daquele dia que os fatos sobre a vida de Wilson se tornaram fora do comum; depois daquele fato ocorrido - o homem que já tinha mais de cinquenta anos começou a morar no matagal, próximo a estradinha de chão batido perto da Granja. Depois que reapareceu misteriosamente ele passou a vagar feito um animal selvagem - uivando para lua de noite.
Depois daqueles acontecimentos ele passou a fazer isso frequentemente.
A casa onde morava ficara abandonada e o homem passou a viver na mata como uma fera selvagem. Quando meu pai contou esta história eu tinha apenas oito anos, e apesar da pouca idade ainda lembro do incrível caso de Wilson Ramos.
Disseram que o Wilson gostava de pescar, era um daqueles que chegava à beirada do rio e ficava por horas.
Naquele fim de tarde, como em muitos outros ele foi visto pedalando os oito quilômetros até a represa de uma cidade vizinha - próximo a uma reserva florestal do governo.
Eu sou um dos poucos que ficou sabendo da história do seu sumiço, talvez tenha sido sua última pescaria.
Era um sujeito tranquilo o Wilson Ramos, e para ele pescar era uma terapia, muitas vezes convidou meu pai para ir até a represa próxima à mata da reserva florestal, mas meu pai tinha uma vida muito atarefada, tinha uma granja e o cuidado com os animais exigia dele tempo integral até o anoitecer.
Meu pai foi o primeiro a sentir a falta do Wilson, pois era fato que algumas vezes o ajudava nos afazeres na granja, trabalhava por dia, certamente quando dava na telha do homem.
A casa onde o Wilson morava ficava próximo ao matagal e da estradinha de chão batido, uns quatrocentos metros da Granja - era de madeira e bem velha herdada de seus pais já falecidos.
Foi meu pai que ao sentir falta de Wilson Ramos durante alguns dias, organizou uma busca até a represa - onde costumeiramente era visto pescando.
Foi uma cena estranha que encontraram na manhã daquela segunda feira do mês de maio em uma clareira próxima ao lago, o lago ainda fumegava.
Era bem cedo quando chegaram, e a neblina que cercava o lugar era de certa forma misteriosa.
Foi um vizinho que primeiro avistou de longe a bicicleta com garupa enferrujada - o cesto com as iscas - o caniço jogado no chão úmido, e um estranho círculo onde o capim havia sido queimado de forma misteriosa.
Quando seu Jorge, o vizinho que estava ajudando meu pai naquela busca tocou a bicicleta do Wilson - disse ele que levou um choque, meu pai também disse que se encostou, mas talvez a energia estática já houvesse se dissipado.
Apesar da forma misteriosa como Wilson havia sumido na beirada do lago, foram organizadas buscas pelos bombeiros durante alguns dias, homens rãs foram mobilizados, mas certamente não encontraram nenhum vestígio do homem.
Ele simplesmente sumira de forma intrigante, não deixando vestígios.
Foi improvisado até mesmo um velório, mas todos ali sabiam que o caixão estava vazio, seria um enterro simbólico, depois de sete dias de buscas no lago o homem foi dado como morto.
A ocorrência policial levou a considerar o velho Wilson como morto, e o seu sepultamento foi logo providenciado na igrejinha do cemitério municipal.
Naquele mesmo dia quando já estavam preparando o enterro, era perto das sete da noite, meu pai, o coveiro e o vizinho que se chamava seu Jorge, e o seu Severo que era o capelão do lugar, foram os únicos que acompanharam o sepultamento simbólico do homem.
Já estava escuro no cemitério quando viram um vulto surgir detrás de uma sepultura, cambaleando e iluminada pelo brilho da fraca claridade, aquele lusco fusco vinha da única lâmpada na entrada da igrejinha, aquela luz chegava parcialmente ao local onde estávamos.
Não vou negar que todos ali pensaram que era alguma alma penada vagando, porem, quando viram mais de perto todos notaram que era apenas um dos poucos amigos do Wilson, ele viera para acompanhar o sepultamento simbólico, o homem com a roupa amarrotada e a barba por fazer há alguns dias e com um cheiro peculiar de cachaça impregnando o ar, denunciava que estava um pouco bêbado, apesar do desequilíbrio aparente ajudou a descer o caixão na cova sussurrando algo como: “Vai em paz meu amigo”.
Algum tempo depois, quando estavam terminando o sepultamento, e o coveiro já tinha dado as últimas pazadas de terra, o Alemão, um dos empregados de meu pai na granja, o rapaz chegara correndo quase sem fôlego, e de olhos arregalados veio dar uma notícia que deixou todos os que estavam ali atônitos.
O que ele disse quase ofegante e balbuciando palavras apavoradas, as palavras quase não saiam da sua boca.

“O Wilson está lá na estrada, perto da granja, eu vi ele! Ele está lá acocado perto do matagal, imóvel como uma estátua, eu tentei chegar até ele, e chamei, mas ele me olhou com um olhar terrível, que me botou medo, então eu vim avisar!”

Meu pai quase não acreditou naquela história, com certeza ele teria que ver com seus próprios olhos, como aquilo era possível, as buscas foram feitas durante dias, ele foi procurado em todos os cantos, até o fundo do lago foi vasculhado pelos homens rãs, e nada de encontrar o Wilson, onde será que este doido estava metido.
Até mesmo o coveiro e o capelão ficaram curiosos e queriam ver se era realmente o Wilson, rapidamente foram em direção da estradinha próxima do matagal que dava acesso à Granja de meu pai. Quando chegaram já estava bem escuro, passava das nove, ali ainda não tinha iluminação, com as lanternas acesas caminharam pela estradinha de terra, a granja ficava alguns metros do caminho de chão batido perto do matagal.
De lá era possível ver o único poste de luz que fazia a ligação elétrica da granja.
Perto do matagal próximo de uma cerca de arame, de cócoras de frente para o mato, a figura que viram quando seu Jorge apontou a lanterna próximo da estrada, todos viram o vulto e estava apenas com a roupa de baixo, Wilson estava seminu, era realmente ele, foi o que meu pai falou apontando também a lanterna na direção do vulto iluminando suas costas que pareciam estar com marcas de arranhões.

“Wilson é você?, por onde você andou homem?, já estávamos fazendo o seu enterro!”.
O homem permaneceu imóvel, não houve resposta alguma, apenas um grunhido rouco quase inaudível.
Entretanto quando meu pai se aproximou para ajudá-lo a levantar e encostou a mão no seu ombro.
O Wilson teve a mesma atitude de um animal acuado, gritando e uivando como um cão, ele correu imitando um cachorro e uivando, ele havia enlouquecido! Com certeza foi o primeiro pensamento de meu pai.
Ninguém sabia onde o Wilson se metera naqueles sete dias que havia sumido, talvez ele estivesse ali no matagal, o único lugar onde ninguém pensou em procurar devido àqueles cipós e a mata fechada. Como o Wilson se escondera naquele matagal ninguém nunca ficou sabendo, apenas deduziram que ele tivesse ficando ali por dias, e de repente ele aparece sozinho na estrada, e agindo daquela forma.
Ele soltou um uivo agudo e disparou correndo de quatro pela estradinha de terra na escuridão da noite. Aquilo realmente assustou a todos que estavam com meu pai naquela noite, o capelão fez o sinal da cruz arregalando os olhos quando viu o Wilson correr e gritar daquele jeito, o coveiro e seu Jorge só não falaram nada, mas era visível nos rostos deles, dava pra notar que ficaram realmente impressionados com o estado em que encontraram o pobre do Wilson Ramos.
Apesar de agir daquela forma ele parecia inofensivo no início, e conseguimos com muito custo imobilizá-lo e encaminhamos para o hospital, para os primeiros cuidados.
Quando o médico do hospital o examinou dissera não ter encontrando nada de estranho, a não ser os arranhões nas costas devido talvez a ele ter se arrastado entre as árvores rugosas do matagal, e também muitas picadas de insetos, com certeza na beira da represa onde pescava existiam muitos mosquitos.
Em seguida o médico que o examinara encaminhou o estranho paciente para um especialista em esquizofrenia, achando que aquilo se tratava de um típico caso de personalidade alterada.
O Doutor que o examinara, apesar de tudo, chegou de fato a questionar uma provável mudança nas sinapses do sistema nervoso, talvez ligando aquilo as picadas de mosquitos e ao surto de Zika que estava ocorrendo na região.
Entretanto passaram-se semanas até que o Wilson foi liberado e voltou para a casa, de algum modo ele não falava, apenas passou a agir como um cão, foi meu pai que passou a cuidar do pobre e enlouquecido Wilson.
O estranho caso chegou a ser estudado por alguns estagiários da universidade, os estudantes compararam o misterioso caso do Wilson, com um peculiar caso do século dezoito, conhecido como a maldição da lua cheia.
Talvez devido aos acontecimentos que precederam com a chegada da primeira lua cheia.
Na manhã seguinte, meu pai viu quando o Wilson saíra da mata para comer o que ele havia colocado próximo da estradinha de chão batido numa bandeja.
O que tinha acontecido era algo fora do comum, meu pai espantou-se ao ver, era quase indescritível, algo bem mais estranho do que a simples gritaria e os uivos para a lua.
Os pelos do pobre e enlouquecido Wilson ficaram espessos, nos braços, nas pernas e cobrindo o pescoço, seu cabelo havia mudado cobrindo quase todo o rosto como uma juba, e a cada nova lua cheia ele ficava mais e mais parecido com um cachorro, até as presas ficaram maiores que chegavam a saltar sobre seus lábios.
Ele estava ficando muito diferente de quando fora encontrado, depois do seu misterioso reaparecimento no caminho perto do matagal, ele ficara arredio, e até violento a cada nova lua cheia.
Entretanto não havia diagnostico que revelasse se fora algum tipo de vírus o causador daquela mutação terrível.
Depois de semanas o pobre homem já estava todo coberto de pelos, de algum modo à transformação do Wilson era muito mais complexa e misteriosa, o seu DNA estava de alguma forma se alterando, e que talvez nenhum médico geneticista conseguiria explicar, mesmo se o estudasse. Ele estava se transformando num cachorro ou algo muito mais terrível.
Seria a metamorfose de Wilson Ramos a mesma que ocorre com os terríveis e amaldiçoados lobisomens?
Depois daquela terrível mudança Wilson sumiu, e não foi mais visto durante algumas semanas, certamente estava no meio daquele matagal que se perdia de vista, a floresta se estendia até aonde começava as montanhas, aquele mato fechado e perigoso cobria metade das terras de meu pai.
Foi então que começaram os ataques.
Em uma daquelas manhãs de início de inverno, uma cerração forte cobria toda a mata e na estrada não se via um metro diante dos olhos.
Foi um sobressalto para o Alemão, quando vinha para o trabalho às cinco da manhã, ele deparou-se com um dos muitos animais que começaram a aparecer mortos, perto do mato próximo a estradinha de chão batido.
Primeiro foi um porco, o bicho foi encontrado comido pela metade, imediatamente meu pai foi avisado do acontecido, a princípio não ligaram a morte do suíno com o Wilson, mas, quando um bezerro foi encontrado do mesmo jeito, de algum modo os animais estavam sendo atacados e comidos.
No segundo caso meu pai ligou o sumiço do Wilson como os recentes ataques aos animais da Granja. O homem tinha completado a metamorfose e agora passou a agir como um verdadeiro animal, atacando e comendo as presas.
Aqueles acontecimentos, com certeza, precisavam de medidas urgentes, realmente se o Wilson era quem estava atacando os animas e comendo, ele se tornara muito perigoso, e deveria ser caçado ou de alguma forma capturado e enjaulado antes que acontecesse algo pior.
Aqueles ataques estavam direcionados apenas aos animais, e se o bicho que o pobre Wilson havia se transformado começasse a atacar gente? Aquele pensamento realmente passou pela cabeça de meu pai, foi quando chamou uma viatura da polícia para dar apoio.
A caçada ao Lobisomem começou na terça feira, dois policiais armados, meu pai e o seu Jorge.
Aquele estranho caso de homem virando fera, agora era caso de polícia, certamente iriam encontrar o pobre homem que agora agia como um animal selvagem, o Wilson havia se metamorfoseado num perigoso Lobisomem.
Os policiais levaram armas com dardos tranquilizantes, além de armas de fogo e muita munição, caso o Lobisomem tentasse atacá-los. O alemão ficou na Granja, deram para ele uma dose de cano serrado carregada, que pertencia a meu pai. Os policiais disseram que deveriam fazer a princípio uma busca nos arredores, pois os ataques tinham acontecido nas proximidades da Granja.
Foi na quarta feira bem cedo quando chegaram às margens do riacho, e viram pegadas estranhas marcando o chão lamacento perto das margens indo para o norte.
Seu Jorge disse que aquela direção levava para a Granja, imediatamente confirmada por meu pai. De algum modo àquelas pegadas pertenciam realmente a uma fera selvagem, parecia estarem frescas.
O bicho esteve ali, bebeu água, em seguida partira em direção da Granja, com certeza a procura de uma nova presa para matar a fome.
Vou dizer por que sei que todos pensaram que era o Wilson que estava atacando os animais da Granja, Os policiais, o seu Jorge, até mesmo meu pai que tratava dele na entrada do matagal.
Duas vezes por dia Wilson Lobisomem era alimentado, até que de repente ele sumira, a comida ficava lá na bandeja a beira da estrada.
Pra piorar as coisas de repente alguns animais da Granja começaram a aparecer mortos, primeiro um porco, depois um bezerro, e todos comidos pela metade. O Wilson estava fazendo aquilo? Ele se tornara realmente selvagem, a ponto de atacar e devorar aqueles animais?
Seu Jorge chegou a comentar que aquilo era o instinto de lobo, e o Wilson Ramos se tornara um de verdade.
Agora o que se sabe é que ele não era mais humano, ele era uma grotesca mutação de homem com lobo, ninguém sabe o motivo daquela transformação nem porque acontecera com o pobre Wilson Ramos.
Quando chegaram próximo da cerca que separava a Granja do matagal, os policiais estavam suados e exaustos depois daquela busca, as únicas pistas foram às pegadas encontradas perto do riacho lamacento.
Tudo começou a ser esclarecido, quando eles viram o Alemão indo na direção deles e perguntando se haviam encontrado alguma pista.
Ninguém viu quando sai correndo atrás do Alemão, eu era uma criança, e quando vi meu pai perto da cerca próximo à estradinha de chão batido, eu estava a uns duzentos metros dele, como disse eu tinha apenas oito anos, era uma criança.
Todos viram quando o Wilson saiu do matagal correndo, ele estava muito mais assustador, não sei se pela convivência como os animais selvagens que ainda viviam na mata ou se a metamorfose que ocorrera o deixara cada vez mais parecido como um Lobisomem. Meu pai foi quem viu, e apontou o dedo em direção ao animal correndo na minha direção, eu era apenas uma criança naquela época.
Quando a onça saltou sobre mim, se ela tivesse me pego naquele dia, hoje ninguém saberia como esta história terminaria, foi o Wilson quem enfrentou a onça pintada, um feroz bicho amarelado rugindo e arranhando com suas patas poderosas.
Se não fosse ele, saltando sobre o jaguar amarelo com sua força e garras afiadas também, combatendo o felino selvagem num desafio de feras, os uivos e os rugidos se misturavam entorpecendo os espectadores espantados, naquele dia meu pai soube quem estava atacando os animais na granja.
O Wilson enfrentou a onça e a espantou para o mato, ele sofreu alguns arranhões, de algum modo ele também estava caçando a maldita onça pintada.
Talvez no seu raciocínio primitivo, ele de alguma forma sabia que os ataques aos animais da Granja com certeza seriam atribuídos a ele. Foi sua atitude espantando o terrível felino para o mato em seguida ficando ereto sobre as patas traseiras. Era realmente de assustar.
Ele ficou imóvel por alguns segundos olhando para meu pai, seu Jorge e os policiais.
Era perceptível que os olhos dele também haviam mudado, eram de um vermelho profundo que refletia a claridade matutina. Um dos policiais chegou a apontar a arma em direção ao Lobisomem com intenção de atirar, mas foi impedido por meu pai.
Em seguida todos viram quando Wilson Ramos totalmente metamorfoseado se embrenhou no matagal novamente. Meu pai sabia de algum modo, que aquele animal que todos achavam ser selvagem e perigoso ainda tinha um pouco de humanidade e deveria ser deixado em paz.
O Wilson Ramos era um lobisomem, e viveria naquela mata sem ser incomodado por ninguém, isto eu jurei quando tinha oito anos.
Meu pai protegeu o Wilson Ramos enquanto viveu, hoje sou eu quem o protege, desde aquele dia em que salvou minha vida.
Não sei quanto tempo vive um Lobisomem, mas, meu filho que tem seis anos não se assustou quando viu o Wilson Ramos pular de dentro do matagal e caminhar nas quatro patas na sua direção, e passou por nós, pulando na mata novamente indo para o norte em direção ao riacho.
A terrível onça pintada depois que o Wilson a espantou, nunca mais foi vista por perto.
Nos dias de hoje ainda é possível escutar os uivos nas noites de lua cheia, mas isto não me amedronta, na verdade me sinto seguro em saber que naquele matagal vive um Lobisomem, que um dia foi Wilson Ramos.
FIM
FernandoCreed
Enviado por FernandoCreed em 04/07/2016
Reeditado em 13/03/2018
Código do texto: T5686875
Classificação de conteúdo: seguro
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