Noites de Caça - Parte I: Ossos

Hélder foi o primeiro a acordar naquela manhã.

Ao abrir os olhos, teve uma visão: o sol esmaecido de um dia nublado que entrava pela janela banhava como uma cascata lusco-fusco o dorso de sua companheira, incidindo também sobre o rosto bonito e jovial, escondido, em parte, pelos cabelos castanhos.

Às vezes, nas raras ocasiões como essa em que despertava antes de Dora, ele permanecia por um bom tempo a observá-la, ainda – depois de três anos – agradecendo ao universo por ela ter dado bola para ele naquela festa de Halloween. Era engraçado como as coisas às vezes acontecem quase como por acaso, mas Hélder não acreditava nisso. Para ele, existe uma força por trás de tudo o que acontece, a qual vários nomes podem ser atribuídos, ou de forma alguma ele estaria na hora e no local exato para salvar a linda jovem que se afogava – vestida de Tinkerbell – na piscina daquela festa, enquanto os demais fantasiados se fartavam de bebidas e drogas e sequer ligavam para a fada em apuros. Ele nunca esqueceria o olhar de gratidão que recebeu de Dora enquanto a ajudava a sair da piscina e se recompor, tampouco o sorriso que ela deu ao segurar sua mão e puxá-lo para fora daquela bagunça, para a rua. Ele a levou para casa em seguida, ambos rindo de se acabar do que havia acontecido.

Depois de alguns minutos observando o rosto angelical de sua mulher, Hélder lembrou subitamente que não estava em sua casa. Soltando um suspiro, olhou em volta para o quarto e viu no relógio de parede que já era quase meio-dia. Precisava acordar Dora, pois o pessoal já deveria estar para chegar.

Chegou de mansinho perto da amada e afastou o cabelo de seu rosto. Em seguida, acariciou a bochecha rosada dela, soprando de leve em seu rosto. Ela adorava ser acordada assim por ele – que por sua vez era acordado assim pela mãe quando criança. Torcendo o nariz e enrugando a testa, Dora abriu lentamente os olhos e sorriu. Aquele sorriso que derretia o gelo que Hélder por vezes sentia dominar a alma.

- Oi, querido, bom dia...

- Bom dia, flor do dia!

- Que horas são? – perguntou ela.

- Hora de levantarmos e arrumarmos as malas para a nova vida – disse Hélder, divertido.

Dora sorriu e sentou-se na cama.

- Caramba, nem acredito que estamos aqui.

- Nem eu – disse o companheiro, olhando em volta.

- Quero dizer, nessa cama. Meu pai a comprou para mim quando eu tinha catorze anos, pouco antes de falecer. Sorte a nossa que ele era um lindo e escolheu uma de casal...

-É verdade! – riu ele, mas Dora estava nostálgica demais para acompanhá-lo. Ela sempre ficava assim quando se lembrava do pai.

Hélder se sentou na beira da cama e se virou para olhar a noiva do outro lado. Ela estava pensativa, com joelhos dobrados sob o lençol e o olhar perdido, fazendo o companheiro se perguntar o que estaria se passando naquela cabeça. Estaria estranhando a casa onde cresceu? Talvez estivesse vendo tudo com outros olhos – olhos de uma mulher prestes a dar o passo mais importante de sua vida.

- Querida – chamou ele, mais incisivo, começando a trocar de roupa. – Quer que eu pegue seu café?

Dora o olhou, de repente desperta do devaneio.

- Está brincando, não é? – Ela sorriu. – Nunca veio aqui antes. Vai se perder assim que passar pela porta.

Hélder não deixou de dar razão à mulher, pelo menos em parte. À noite, chegando cansado de uma longa viagem de carro, tinha percebido que a casa da família Sampaio era enorme, cheia de portas antigas permeando corredores largos. Nas sombras, parecia que estava andando em um complexo de grutas rumo ao quarto, levando as malas que não ficaram no carro. Mas ele não estava assustado, porque se lembrava muito bem que não seria a primeira vez que trilhava caminhos desconhecidos.

- Vamos sair juntos. – Dora se levantou. – Deixa só eu me vestir.

Rapidamente, ela trocou a camisola rendada por um vestido verde claro. Helder abriu a porta e saíram os dois para o corredor, sendo ele guiado em uma direção pela noiva que pegava em sua mão. Além de uma entrada arqueada, encontraram a cozinha, e nela, cortando verduras na pia atrás de um balcão, estava Dona Dirce, mãe de Dora.

- Bom dia. – Ela os olhou carinhosamente através dos óculos. – Acordados a essa hora? Chegaram tarde ontem. Deviam descansar.

- Bom dia, Dona Dirce. – Hélder foi o primeiro a falar. – Descansamos muito bem. Inclusive, estamos prontos para ajudar no que for preciso. Quer ajuda para cortar as verduras? – Ele se aproximou e Dirce balançou a cabeça, chacoalhando o coque.

- Primeiro vão comer alguma coisa. Dora, se quiser, tem potes daquela geléia que você gosta na geladeira. Do que seu namorado gosta pela manhã?

- Ele também adora geléia nas torradas. – Dora passou pela mesinha redonda da cozinha e chegou à geladeira. – E as meninas? Chegaram?

- Elas vão chegar daqui a pouco. Saulo está no bar, mas ele prometeu não se atrasar para o almoço. Estão todos muito empolgados para o casamento.

- Eu só tenho a agradecer. Foram maravilhosos me ajudando nos preparativos. É difícil resolver tudo à distância.

- É verdade – falou o noivo. – Não sei o que seria de nós.

- Imagina – falou Dirce. – Família é para isso. As meninas não falavam em outra coisa e Saulo separou alguns vinhos para a festa.

- Estou muito ansiosa para falar com elas. – Dora fechou a porta da geladeira e levou o frasco de geléia para a mesa, indo em seguida em direção ao armário. – Há muitos detalhes para serem resolvidos, não é, amor? Sem falar que precisamos ver nossa casa.

Nossa casa. Hélder olhou para ela. Ainda era estranho ouvir a mulher por quem se apaixonou falar assim.

- Olá, família! – Uma voz feminina reverberou pelo corredor, fazendo Dora se virar, os olhos iluminados por ouvir a irmã, vibrando em empolgação.

Passou pouco tempo até estarem todos ao redor de uma mesa longa, de doze lugares. As cadeiras eram pesadas, feitas de uma madeira escura. Hélder olhava o prato de porcelana e detalhes dourados cheio da farta refeição preparada por Dirce. Diante dele, se estendiam travessas de carnes, verduras e uma variedade significativa de macarrões e molhos.

- Estou pensando em investir mais em uma vida natural, sabem? – falou Saulo, o único homem dos filhos de Dirce. Ele tinha os mesmos olhos de Dora, e as feições faziam dele uma versão mais jovem do pai. – Estou muito empolgado com minha última aquisição.

- Se quiser conselhos sobre vida em contato com a natureza, pode perguntar para Hélder. Ele escalou uma das montanhas geladas da Patagônia. – Dora olhou para o noivo, do seu lado.

- Eu vi as fotos na internet – falou Bia, a primogênita. – É um lugar muito bonito. Toda aquela neve...

- Deve ser muito perigoso também, não é? – falou Lorena, a caçula, sem tirar os olhos do prato. – Quero dizer... Tem uns lugares bem íngremes. Parece bem escorregadio.

- É sim. É preciso muito preparo, mas eu tive ajuda – disse Hélder, não querendo parecer que estava se gabando. – Eu estava em companhia de pessoas bem experientes.

- O frio deve ser atroz – falou Saulo. – Espere... Não viu nenhum corpo congelado de alpinista, não é? Tem muito em lugares assim. Ouvi falar que o Everest é um cemitério branco.

- Credo! Não! – Hélder riu.

- Alpinistas passam muitos riscos. Escapou de ter um marido picolé, maninha – falou Saulo, fazendo a irmã se engasgar.

- Saulo, por favor! – ela disse. Mas o noivo não estava nada constrangido ou ofendido. Ele olhou em volta, vendo todos rindo. Não era uma família ruim, de forma alguma, e ele se sentiu um sortudo por estar ali.

- Vamos falar de algo melhor? – Dirce falou, sentada na cabeceira da mesa e vendo de seu lado esquerdo Bia e Lorena, e do outro lado Saulo, seguido do casal. Na outra ponta da mesa, a cadeira estava vaga, e acima dela, pendurado com solenidade na parede da sala de jantar, estava o retrato de Salomão Sampaio, o patriarca, sério e nobre, observando a todos como se fosse o sétimo comensal.

- A casa! – disse Lorena, levantando o copo de suco. – Sua casa ficou um brinco depois da reforma. Não vejo a hora de você ver.

- Foi só pelo suspense que não quis me enviar as fotos de como estava ficando? – Não havia raiva na voz de Dora, apesar de a casa nos limites da cidade ser praticamente a única herança que recebeu do pai.

- Queríamos fazer surpresa. Afinal, é um dos seus presentes de casamento.

- Vamos para lá daqui a pouco – falou a noiva. – Precisamos desarrumar as malas e acertar os últimos detalhes da cerimônia.

- Vocês vão primeiro, meninas. Preciso mostrar algo para Hélder.

- O que pretende com meu marido?

- Relaxa... – Saulo riu – Vou só mostrar o patrimônio da família.

- Se importa que eu vá à frente com minhas irmãs? – Dora tocou na mão do noivo.

- Não, querida. Eu alcanço vocês mais tarde. Adoraria conhecer o estabelecimento – disse Hélder.

Depois que o almoço acabou e foi servida a sobremesa, foram todos à calçada, em frente aos muros altos e calçados de pedras verdes da residência.

- Vai ficar tudo bem? – perguntou Dora, abrindo a porta do carro, um saveiro cross vermelho. Lorena e Bia já se acomodavam no banco traseiro.

- Eu sei me cuidar, Dora.

- E vão ser apenas alguns minutos. – Saulo chegou perto do cunhado. – Vamos para o bar do papai, não para uma boate.

- Está bem. Divirtam-se, meninos. – Ela sentou no banco do motorista, deu a partida e o veículo deslizou pela rua.

- Deixei meu carro lá, então vamos ter que ir a pé. Vai ser bom para conhecer a cidade. Pronto?

- Estou às suas ordens!

- Muito bem. É só me seguir, escoteiro. – Saulo indicou com um gesto que o outro homem o deveria acompanhar através da esquina, no fim da quadra.

Andando devagar com o filho de Dirce, Hélder teve uma visão mais clara da pequena cidade de Santa Regina. Quando chegou de carro, à noite, ele tinha sido recebido por uma fileira de palmeiras reais ao lado da estrada, acenado suas folhas como se dessem boas vindas. Além delas, se lembrava de avistar uma silhueta imensa se elevando do horizonte e logo percebeu se tratar da serra aos pés da qual a cidade tinha crescido. Durante o dia, podia ver melhor a beleza das formações rochosas. Morros menores da cadeia de montanhas subiam pela encosta da serra que parecia querer alcançar as nuvens pesadas, pairando acima como se a qualquer momento pudessem cair sobre a terra. Aquela não era a única beleza oferecida pelo lugarejo. O bairro onde Dona Dirce morava tinha casas grandes, de muros calçados de pedras coloridas, e elas não aparentavam menos idade que o resto das construções por onde eles andavam. Hélder viu janelas arqueadas e acabamentos sinuosos nos telhados. Parecia arquitetura colonial que ele via em documentários e guias de viagem.

Depois de uma praça bem arvorejada, ele avistou uma espécie de varanda que tomava uma parte significativa daquele lado do quarteirão, e acima dela havia uma grande placa onde palavras brancas estavam escritas sobre um fundo vermelho.

- Bar Minas de Salomão – Hélder leu. – Belo nome.

- Meu pai era bom com nomes e todos achavam as bebidas dele um tesouro. Pode perguntar por aí – falou Saulo, orgulhoso. – Venha. Vai gostar do interior. – Ele subiu os degraus que levavam para o piso elevado, atrás de uma espécie de batente de madeira. Na longa varanda, havia mesas redondas com quatro cadeiras cada, e na ponta do espaço, ao fundo, estava uma churrasqueira aparentemente sem nenhuma brasa.

Quando passou pelas portas envidraçadas, Hélder viu um ambiente limpo e bem iluminado que pouco lembrava os bares que ele tinha visto antes, principalmente os de beira de estrada. Havia outras mesas redondas dispostas pelo ambiente, sem obedecer a nenhum padrão, apenas mantendo alguma distância umas das outras. Uma série de bancos aguardava os clientes em frente a um balcão atrás do qual o barman preparava uma bebida chacoalhando uma garrafa. Atrás dele, a parede era toda enfeitada de fileiras de garrafas de todas as cores e tamanhos, algumas iluminadas como enfeites natalinos. Hélder também reparou em um palco ao fundo, para apresentações noturnas.

- Nada mal, não?

- Nada mal mesmo!

- É um bar tradicional que papai fundou. Claro que dei um pouco da minha cara ao longo do tempo. Sente-se – disse Saulo, indicando um banco enquanto se afastava. O barman chegou, vestido com seu avental, e lançou um olhar solícito para o visitante que olhava o pouco movimento ao redor.

- Pode deixar comigo, Robert. – Saulo se aproximou, também atrás do balcão. – Esse eu atendo.

Robert saiu e voltou a chacoalhar a garrafa com a qual preparava um drink.

- O que achou do nosso humilde estabelecimento?

- Incrível – disse Hélder. – Melhor do que eu imaginava. Só que... Não me leve a mal, mas não está um pouco vago?

- Sim... Geralmente ele enche um pouco mais à noite. Mas os negócios vão bem, não se preocupe. Não sou tão bom quanto o velho Salomão, mas administro bem e faço boas bebidas. Vou mostrar uma que gosto. – Saulo se afastou dois passos para a direita. Ele tirou uma garrafa com um líquido amarelo escondido sob o balcão e em uma prova de destreza despejou a bebida em um copo que fez deslizar direto para as mãos de Hélder, que levantou o copo e abaixou o rosto, cheirando o conteúdo.

- Beba sem medo – o herdeiro do bar falou. – Conhaque de caju. É revigorante.

Hélder esticou a língua e tocou na superfície do líquido, sentindo, em seguida, uma pontada ácida e agridoce o fisgar como um anzol.

- Nossa... É forte.

- Pode beber. Daqui para seu casamento você se recupera.

Hélder o encarou.

- Brincadeira – Saulo falou. – Olha... Tenho um vinho mais leve, mas a garrafa está no meu escritório. Não saia. Eu já volto. – Ele deu meia-volta e saiu, sumindo em uma porta. Hélder levantou o copo e o observou contra a luz, como se algum detalhe fosse se revelar.

- Beba de uma vez. – A voz o fez se virar para ver um homem mais velho sentando no banco ao seu lado. Ele vestia roupas simples, de trabalhador do campo, mas as vestes não estavam surradas ou exibiam remendos. – Conhaque de caju é bom, mas tem que ser bebida de uma vez, senão trava na garganta.

Hélder voltou a olhar a bebida e não quis fazer feio diante do estranho. Seguindo o conselho, encostou a borda do copo na boca e o virou rapidamente, não dando tempo para arrependimentos. O líquido desceu pela garganta travando como um animal se esgueirando por uma toca de coelho.

- Caramba! – Ele piscou os olhos e viu o barman servindo uma bebida clara para o outro homem.

- Forte, não é?

- Sim. – Hélder interrompeu um arroto.

- Já vi muitos estrangeiros vomitarem com ele. Por isso recomendo começar pelas leves.

- Está muito claro assim que não sou daqui?

- Está – o outro falou. – A cidade não é grande. Não é difícil perceber.

Hélder deixou o copo no balcão.

- Vem muito aqui?

- Ah... Sim. Sou um bom freqüentador, mas sei apreciar as bebidas. Não saiu por aí dormindo nas calçadas. – O desconhecido sorriu. – Conheço todas as bebidas daqui e vi muitas sendo criadas. Salomão era quase um alquimista.

- Conheceu Salomão Sampaio?

- Sim. De longa data. Era uma pessoa sensata e equilibrada, apesar do histórico da família.

O noivo de Dora o olhou. Parecia que a bebida tinha chegado com um golpe em seu estômago.

- Histórico?

- Isso mesmo. Os Sampaio têm um passado um tanto violento. Nunca soube?

- Não. – Ele sentiu a face esquentar, coisa que só acontecia quando bebia muito, o que não era o caso. – A quê se refere exatamente?

- Os Sampaio eram inimigos declarados dos Queiroz, outra família tradicional da região. Os membros de cada família até juravam matar os membros da família rival. Não ficavam somente na promessa. Houve alguns assassinatos, inclusive quando Salomão era jovem. Essa terra já foi banhada com o sangue dos dois clãs.

- Por qual motivo?

- Não sei. Disputas de terra...Sei lá. Quando começaram as brigas, uma coisa foi levando à outra.

- Mas... Isso perdura até hoje?

- Não que eu saiba – completou o senhor, tomando a última dose. – É uma velha rixa. Faz tempo que não se fala nisso.

- Senhor Valdemir! – Saulo chegou, trazendo uma garrafa de vinho com as duas mãos como se carregasse um filhote. – Na pausa do trabalho?

- Pois é. Não sou de ferro. – O senhor passou alguns trocados pelo balcão. – Por falar nisso, deixe-me voltar para o serviço. Vá com calma com o rapaz. – Ele se levantou e apontou para Hélder. – Bebidas leves primeiro, certo? – disse ele, antes de sair.

- Grande Senhor Valdemir! Gente fina! – Saulo se virou para o cunhado. – Aqui está o vinho. Foi duro escolher a garrafa. – Ele despejou o líquido escuro em uma taça que trazia junto com a garrafa e estendeu para Hélder, que a tomou e tragou a bebida sem perguntar nada.

- Nossa... Era para apreciar. – Saulo o olhou. – Você está diferente.

- Diferente?

- A sua cara está de uma cor estranha... Mais pálida. Senhor Valdemir tem razão. Melhor começar com bebidas leves. Conhaque de caju não foi uma boa idéia.

- O vinho não está forte. – Hélder estendeu a taça. – Um pouco mais, por favor.

Saulo derramou com piedade mais uma dose no recipiente de vidro. A bebida não demorou a sumir.

- É melhor darmos uma parada – disse o filho de Salomão. –Daqui a pouco você vai estar com bafo e Dora vai pensar que levei você para uma despedida de solteiro relâmpago.

- Não é a primeira vez que bebo. Agüento algumas doses.

- Não sei. – Saulo olhou para a garrafa em mãos. – Melhor guardar para a festa. Venha. Vou colocar na minha adega pessoal.

Hélder se levantou e caminhou na mesma direção que o cunhado, cada um de um lado do balcão. Ambos entraram em uma sala não muito grande, com uma escrivaninha ao fundo, e o irmão de Dora abriu as portas de um armário para reunir a garrafa com as outras de sua seleta coleção. Ao lado, havia outros frascos antigos atrás de um vidro. Hélder também viu livros e retratos da família sobre uma prateleira, reconhecendo em uma delas o patriarca dos Sampaio.

- É aqui que eu trabalho. Quero dizer, cumpro algumas tarefas burocráticas. Na maioria do tempo, gosto mesmo é de estar entre os clientes – Saulo falou.

- Muito bacana – disse o outro, olhando em volta.

- Bom, mas não quero encher você com meu trabalho. Teremos tempo para falar sobre isso, não é mesmo? Afinal, você vai morar aqui.

- Sim. Por falar nisso, como as mulheres devem estar indo?

- Não sei. Talvez seja melhor ir – Saulo falou, percebendo certo incômodo no cunhado. – Meu carro está lá fora. Levo você.

O carro a qual se referia era um celta de cor cinza opaco. Quando saíram do bar, o viram estacionado em uma vaga ao lado do quarteirão, aguardando. Hélder sentou no banco da frente, enquanto o outro guiava o veículo por uma rua lateral com pouco trânsito.

- Aquele senhor que estava no bar comigo me contou uma coisa. – Ele foi direto ao ponto. Não via motivo para contornar um assunto como aquele. Saulo tirou os olhos da estrada um momento e lhe lançou um olhar interrogativo.

- O quê?

- Que os Sampaio não se dão bem com outra família daqui. Inclusive, já houve até morte.

- Ah... Os Queiroz.

- Então é verdade? Por que eu nunca soube disso?

- É uma rixa antiga. Papai recomendava que não falássemos nisso, o que é o certo. Esse negócio já deu muitos problemas no passado e não é bom cutucar feridas. Por quê? Algum problema?

- Fora as ameaças de morte? Vocês não planejam nenhuma hostilidade uns contra os outros, não é? – Hélder perguntou e viu um sorriso subir pelo rosto de Saulo, virado para o caminho.

- Está com medo?

- Acha que eu teria motivos para isso?

- Você vai se casar com uma mulher maravilhosa – Saulo falou. – Vai morar nessa cidade linda e garanto que ingressar nos Sampaio não fará de você um alvo de algum atentado ou algo assim, está bem? Não dê ouvidos a essas histórias. É um conflito ultrapassado. Ninguém leva a sério hoje em dia.

A segurança com que o motorista falava deixou Hélder um pouco mais tranqüilo. Pensar que se casar com a mulher que amava significava comprar uma briga com a qual não sabia como lidar era assustador. Ele respirou fundo e se deixou convencer por Saulo, ainda que com algum esforço. Aquilo devia permanecer no passado e ele precisava pensar na vida que iria construir com Dora. Ele olhou além do pára-brisa, com o vidro embaçado pelas gotículas do fino sereno, e viu uma vegetação muito verde com a época das chuvas, se confundindo com a serra que se erguia além dela.

- Eu sei que é a minha primeira vez em Santa Regina, mas acho que esse não é o melhor atalho.

- Nós vamos passar por um lugar primeiro – disse Saulo. – Eu falei que iria mostrar meu patrimônio.

- Sim. O bar.

- Bom, não só o bar. Esse é mais particular e acabei de comprar. – Saulo desviou para uma área com gramado e parou não muito longe de uma cerca de madeira. Puxou o freio de mão e tirou o cinto. – Vou mostrar.

Hélder abriu a porta e saiu, sentindo o vento gelado no rosto.

- Quero que você veja meu bebê. – Saulo passou por ele, indo em direção à cerca.

- Bebê? – Ele o acompanhou e pôs as mãos na madeira úmida pelo chuvisco.

- Ali está! – O cunhado apontou e, não muito longe, Hélder distinguiu uma silhueta eqüina pastando. Podia ver que era um cavalo robusto, de patas fortes e um dorso admirável. O pelo rubro, com manchas brancas na testa e nas patas, o fazia parecer uma marca de sangue em meio ao verde, e sua crina esvoaçava ao sabor da brisa como uma flâmula escarlate em uma batalha.

- É inglês. Comprei faz três meses.

- Formidável. Não sabia que gostava de animais.

- Minha família tem raízes no campo, não dá para negar. E estou planejando uma vida mais natural. Imagine cavalgar nesses campos.

- Deve ser incrível mesmo.

- Quer dar uma volta?

- Sério?

- Sim. Ele não dá trabalho para selar e acho que vai gostar de você.

- Não sei. Eu tomei algumas doses antes de vir, lembra?

- Você não disse que está acostumado a beber?

- Sim, mas não é bom desafiar o destino. Seria catastrófico se eu caísse.

- É verdade. – Saulo tirou as mãos da cerca. – Melhor garantir que você chegue com todos os ossos inteiros em casa, e, além do mais, parece que vai cair uma chuva daquelas – disse, olhando para o céu nublado.

Os dois homens voltaram ao carro que partiu sacolejando sobre a estrada irregular de terra. Não havia muito a ser comentado. Somente por educação, Hélder respondia com acenos de cabeça aos comentários de Saulo sobre os animais de puro sangue. Ele prestava atenção, de verdade, era no trajeto que o carro descrevia, se aproximando da serra que se assomava cada vez mais imponente como uma muralha erguida por gigantes. Do outro lado, viam um pequeno bosque, e entre as árvores, à frente, o noivo encontrou a casa onde devia morar.

Saber que era aquele o lugar onde planejava ser feliz tornava a residência especialmente bonita. Ela tinha um gramado muito vistoso, cortado por uma trilha de pedras que ligava a estrada à garagem abaixo da varanda, onde o carro estava devidamente guardado, e as cores das tintas espessas das paredes combinavam com as flores que despontavam em intervalos regulares das cercas vivas ao lado da casa.

- Lar, doce lar. – Saulo parou em frente.

- Você não vem?

- Não. Preciso resolver algumas pendências do bar. Vida de empresário é fogo. Vejo você amanhã.

- Está bem. Até outra hora. – Hélder abriu a porta e saiu, recebendo algumas gotas do sereno na face. Caminhou acenando para o cunhado que partiu com o celta mais cinzento que as nuvens que encobriam o sol.

Ele parou em frente à porta, curiosamente sem jeito. “Não tenho que bater”, pensou. “É a minha casa”. Pegou na maçaneta e a girou, abrindo passagem para a sala de estar laranja. As almofadas do sofá tinham diferentes estampas, uma profusão de cores e formas que se assemelhava ao quadro de arte moderna na parede, perto da estante com a televisão. Era recompensador ver a decoração que escolheu à distância transformada em realidade, um exemplo concreto da realização de um sonho. Ele andou através do corredor e viu a mulher em pé e de costas, na cozinha. Ela mantinha a mão no queixo, olhando em silêncio para o armário de parede.

- Olá. – Hélder a abraçou por trás, sentindo o corpo da noiva se contrair com a surpresa.

- Que susto! – Ela se virou e pôs os braços ao redor do pescoço do futuro marido.

- Desculpe. Você estava distraída – ele falou e viu o cenho dela se franzir.

- Saulo te deu bebida?

- Ah... Ele me fez provar algumas. Você sabe como o seu irmão é. Mas só provei. O que você estava fazendo?

- Estou vendo o melhor lugar para os pratos. – Ela virou o rosto para as caixas sobre a pia.

- Já organizou tudo?

- Só falta isso, praticamente. Bia e Lorena me ajudaram bastante.

- Por falar nisso, onde elas estão?

- Fui deixar elas rapidinho em casa antes que chovesse, mas deixamos tudo pronto por aqui. Venha ver o quarto. – Dora o puxou pela mão e o apresentou o quarto, onde algumas blusas e calças ainda estavam sobre a colcha azul marinho da cama, aguardado serem postas nos devidos cabides. – É grande, não é?

- Sim, e tem uma ótima vista. – Hélder se aproximou da janela, cujo vidro começava a receber as gotas da chuva na qual o sereno estava se transformando, embaçando um pouco o visual das montanhas.

- Prometa que não vai querer ficar escalando nenhumas delas – disse a noiva, se aproximando.

- Prometo. – Ele a tomou nos braços. – Até porque elas são muito baixas para o meu gosto.

- Bobo. – Ela ficou na ponta dos pés para beijar o noivo, que a ergueu e a levou para a cama.

* * *

- Nossa... Ainda está chovendo? – Dora se ergueu um pouco e olhou pela janela. Era noite, horas depois de terem terminado de colocar as roupas no guarda-roupa, e ela não via nada além do vidro, mas podia ouvir a fúria com que a água incidia sobre o telhado.

- Você acha que pode dar algum problema? – Hélder perguntou, do lado dela. – Para o casamento, digo.

- Espero que não. Escolhi o final do inverno porque as plantas estão mais verdes para as fotos, mas as chuvas ainda estão com força total. Estou começando a me preocupar. E se as estradas ficarem danificadas e nossos amigos não conseguirem chegar a tempo? – Ela voltou a ficar deitada e Hélder a abraçou sob os lençóis.

- É só uma chuva. – Ele beijou o ombro dela. – Vai ficar tudo bem – falou, e a sentiu ficar quieta entre os braços, não sabendo dizer se a mulher estava dormindo ou apenas distraída com os pensamentos. Quando acordou, não a viu por perto.

- Dora? – chamou. A luz tímida do sol entrava através das cortinas da janela, banhando o quarto com uma iluminação fosca. Ele se levantou e, sem interesse em vestir outra coisa além dos shorts e camiseta com os quais dormiu, caminhou para a cozinha, onde encontrou a noiva colocando torradas e a geléia favorita dos dois sobre a mesa.

- Bom dia, amorzinho. – Ela se aproximou para beijar o rosto dele. – O que achou da primeira noite na nossa casa?

- Foi ótima. – Ele se sentou, pondo café na xícara. – E para você?

- Quem disse que eu dormi?

- Não dormiu?

- Não. Aquela tempestade de ontem não me deixou pregar os olhos. E olha que tenho o sono pesado.

- Ainda preocupada?

- O pior que sim. E muito. Vou ligar para as minhas irmãs agora. Quero saber se ainda posso contar com as flores. Bom apetite. – Ela saiu pela porta da cozinha, deixando Hélder sozinho com o barulho das torradas quebrando sob seus dentes. Ele comeu devagar, fingindo que lá no fundo não estava com uma preocupação o perturbando como um parasita impertinente. Chuva, casamento... Família. Muita coisa para pensar, mas a mente dele não se concentrou totalmente em nenhuma delas antes do grito de Dora.

- Hélder!

Ele se levantou e, com o sobressalto, correu para a sala, se deparando com a noiva no sofá, vidrada na televisão.

- Qual o problema, querida?

- O jornal!

Hélder olhou para a tela e esperou perceber o que estava fazendo Dora ficar tensa. De início, não viu nada. No canal, estava passando o noticiário local que exibia uma reportagem sobre alagamentos. Seria mais uma matéria jornalística qualquer, se ele não tivesse tido um pouco de paciência e ouvido os nomes citados pela repórter.

- Santa Regina? – perguntou ele, boquiaberto. Chegou a reconhecer um ou outro lugar em alguns relances.

- Eu estava certa. A chuva de ontem era muito preocupante.

- Nossa... E pensar que estamos praticamente ao lado desse alagamento. – Ele se aproximou do sofá. – Algum conhecido ferido?

- Não, graças a Deus. As águas atingiram mais a área leste, na zona rural, mas alguns agricultores perderam suas casas e lavouras.

- Como estão as estradas? – perguntou Hélder, lembrando do receio da noiva.

- Há uma rota alternativa, que não foi interditada ou danificada, pela estrada Coronel Lázaro. Por ela leva apenas quarenta minutos a mais.

- Ainda bem. Falta uma semana para a festa. Acho que dá tempo de as águas recuarem de volta para os rios, e se ligarmos agora nossos convidados podem ir logo se preparando. Vai dar tudo certo.

- Eu espero. Vou continuar ligando para minhas irmãs. Preciso ter certeza. – Ela se levantou e caminhou pelo corredor com o telefone em mãos. Hélder não a podia condenar. Uma enchente era motivo suficiente para dar o braço a torcer e reconhecer que os preparativos requeriam mais atenção que o normal.

Os dois acompanharam as notícias até o jornal acabar. Na hora do almoço, comeram uma comida congelada esquentada no microondas e Hélder foi para o quarto, ficando jogado sobre a cama, olhando a tela do notebook. Ele procurava por noticiais sobre as enchentes e mandava e-mails para alguns convidados, enquanto a noiva continuava pendurada ao telefone, checando todos os detalhes com as irmãs. Por estar concentrado, quase saltou quando o celular do seu lado tocou. Pegou o aparelho e se levantou.

- Alô?

- Alô! Hélder? Sou eu, cara. Saulo.

- Oi, Saulo. O que você manda?

- Pois é... Você se lembra do Ruivinho?

- Quem?

- Meu cavalo. Esse é o nome dele. A tempestade de ontem destruiu parte do estábulo onde ele estava.

- Puxa vida... Ele está bem?

- Está. O negócio é que ele fugiu.

- Fugiu? Você não sabe onde ele está?

- Bom, mais ou menos. Eu passei a manhã procurando e descobri onde ele foi parar, mas eu não posso ir buscar.

- Por quê?

- Porque ele entrou no rancho dos Queiroz.

- Aquela outra família?

- Sim. Eu não posso entrar lá. Você pode pegar para mim?

- Por que você mesmo não vai? Não disse que essa rixa é velha e que ninguém leva mais a sério?

- É verdade, o que não quer dizer que sejamos amiguinhos. Não continuamos trocando ameaças de morte, mas eles nos detestam e também não vamos com a cara deles.

- Manda um empregado.

- Que empregado? Eles conhecem todo mundo com quem tenho contato e não acho bom eles saberem que o cavalo é meu – Saulo argumentou. – Mas você é carne nova aqui. Aposto que não iriam negar um favor a você.

Hélder afastou um pouco o aparelho do ouvido. A simples existência de um clã rival já era uma preocupação significativa, e ter que se relacionar com ele, ainda por cima pedindo um favor, não era nada convidativo. Ele procurou as palavras certas para negar o pedido do cunhado e, durante a reflexão, acabou tendo uma idéia inusitada. De fato, ele era um rosto novo na região. Ninguém além dos Sampaio o conhecia, e talvez se ele se aproximasse dos Queiroz e fizesse amizade com eles, antes de saberem a que família ele estava prestes a pertencer, havia esperança de não dirigirem a Hélder os desafetos do passado.

- Tudo bem. Eu posso ir. O que tenho que fazer?

- Beleza! – Saulo vibrou do outro lado da linha. – Pegue a estrada em frente à sua casa e siga para a esquerda. Depois de alguns minutos, você chegará a uma grande cerca. É o início das terras deles. Então, é só perguntar pelos Queiroz. Quando conseguir falar com eles, diga que o cavalo foi para o leste. Eles são acostumados a lidar com animais. Rapidamente vão capturar ele. Pode amarrar as rédeas no carro e ir puxando devagar até sua casa. Vou pegar ele aí. Não vai demorar.

- Está bem. Espero que dê certo.

- Vai dar. Fico muito grato.

- Qualquer coisa eu ligo. Até mais. – Hélder desligou o telefone e o pôs no bolso. Fechou o notebook e o guardou, indo, depois, à sala, onde a noiva continuava ao telefone.

- Onde estão as chaves do carro?

- Na estante. – Ela apontou para um molho prateado de metal dentro de um jarro. – Vai sair?

- Saulo perdeu uma coisa e pediu para eu ajudar a procurar. Não demoro.

- Volta logo. Eu te amo! – disse Dora para o noivo que já fechava a porta depois de pegar as chaves.

- Eu também te amo! – gritou ele, do lado de fora. Deu marcha à ré com o carro, saindo da garagem debaixo da varanda, e deu meia-volta para avançar estrada a fora.

O caminho estava bastante enlameado e escorregadio, como se a terra correspondesse à vontade do motorista de não ir adiante. Não era uma boa perspectiva falar com gente estranha que supostamente odiava a família na qual ele estava entrando, mas possuía uma intuição sobre a relação que podia construir com eles e não era o tipo de homem que fugia de desafios – pelo menos, não queria ser.

Apertou os dedos ao redor do volante e pisou firme no acelerador, vencendo o terreno acidentado. Nuvens pesadas cobriam a serra e tornavam o dia escuro, mas não devia ser tarde. Ele chegou à cerca mencionada pelo cunhado e nenhum sinal de chuva. Hélder se lembrou de ter ouvido em algum lugar que, às vezes, chovia torrencialmente na serra, ainda que não caísse uma gota sequer em Santa Regina.

Voltou a ficar de olho na cerca, procurando uma porteira. No entanto, nada que parecesse uma entrada foi visto. Começava a questionar se devia invadir com o carro, jogando o veículo contra o cercado, quando olhou para frente e viu um cavalo. Não era vermelho, ele reparou, e, além de tudo, estava montado. As rodas traseiras derraparam e o automóvel se impulsionou para frente com mais ímpeto, alcançando o cavaleiro e acertando o passo ao seu lado.

- Boa tarde – disse Hélder.

- Boa tarde, senhor. – O cavaleiro olhou para ele. Era apenas um jovem de aproximadamente vinte anos, com uma barba rala tão clara quanto o cabelo.

- Você sabe onde encontro os donos dessas terras?

- Meu tio? – O rapaz parou, fazendo Hélder frear.

- O sobrenome do seu tio é Queiroz?

- Sim. E o meu também.

- Eu não queria incomodar, só que um animal de um amigo meu entrou na fazenda e eu queria pegá-lo. É um cavalo vermelho. Viu?

- Ah... Hoje eu recuperei uma ovelha e até um cachorro que fugiu da enchente, mas cavalo eu não vi. Venha comigo. – O rapaz puxou as rédeas e o animal que o carregava galopou pela lama. Hélder o seguiu e viu que um portão de madeira não muito longe se abria para ele. Entrou e dirigiu por alguns minutos até que o guia parou em uma construção grande, feita de madeira, de onde partiam algumas cercas. O lugar lembrava um grande celeiro. Puxou o freio de mão e saiu do carro, vendo que o rapaz o chamava para acompanhá-lo através da entrada. Dentro do recinto, Hélder sentiu um forte cheiro de esterco e terra molhada. Ele olhou em volta e viu cabines, como as de um banheiro compartilhado, e atrás de cada porta havia vacas e cavalos.

- Pai! – chamou o garoto. – Tio!

Um homem apareceu, saindo de uma das cabines com um balde na mão. Era um pouco mais alto que Hélder, de ombros largos e pele escurecida pelo sol.

- Algum problema, Marlon?

- Esse homem perdeu um cavalo. Ele está nas nossas terras. Tem como encontrá-lo?

- Um cavalo? – Outro homem apareceu dos fundos antes que o primeiro respondesse. – Como ele é? – perguntou. Tinha os mesmo olhos cinzentos do outro.

- Vermelho. Com uma mancha branca na testa e nas patas.

- Viu algo assim, Jonas? – perguntou o homem do balde.

- Não. Ele entrou hoje?

- Sim. Por volta do meio-dia.

- Se quiser, posso ir procurar ele, papai – disse o rapaz.

O primeiro homem levantou a mão, indicando que o filho ficasse quieto.

- Não faz idéia de para onde ele possa ter ido?

- Leste. Foi lá que foi visto pela última vez.

- É onde está alagado, Raimundo – falou o segundo, de nome Jonas. – Estávamos indo para lá agora mesmo avaliar os danos.

Raimundo arqueou a sobrancelha e o canto da boca se contraiu como se tivesse acabado de ficar animado com um pensamento.

- Vamos pessoalmente verificar. Tem alguma recompensa?

Hélder sentiu o coração gelar sob o peito. Não era algo que ele estava esperando.

- Se recuperarmos o cavalo ileso, talvez tenha – disse ele, não fazendo idéia de qual seria a tal recompensa. Estava começando a entender Saulo e ele próprio não deixou de sentir antipatia por aquele sorriso, mas não podia esquecer o que importava. Ele precisava recuperar o animal e adquirir algum respeito diante daqueles fazendeiros.

- Perfeito. Marlon, por favor, cuide de tudo aqui. Seu tio, esse senhor e eu vamos procurar o cavalo.

- Preciso acompanhar?

- Sim. Qual a surpresa? Você vai em nossa picape.

Hélder não discordou, mantendo-se focado no que o cunhado havia dito, sobre ser tudo rápido.

Ele seguiu os dois irmãos para fora do estábulo e entrou com eles no automóvel estacionado ali perto. Raimundo estava ao volante, seguido do irmão Jonas, do lado, e depois de Hélder, mais perto da porta. A carroceria sacolejava em rangidos secos, enquanto as rodas giravam sobre os aclives e declives do terreno. Os barulhos não eram ruins, todavia. Eles impediam que o silêncio entre os três se tornasse mais incômodo, principalmente para Hélder, calado e encolhido no banco como uma criança comportada em meio a adultos. Através da janela, perscrutou a paisagem, não vendo nenhum ponto vermelho contra a costa das montanhas. A parada súbita da picape tirou sua concentração. Ele se virou para perguntar o que estava acontecendo e foi absorvido pela visão clara de um espelho líquido.

- Que beleza! – falou Raimundo, vendo o volume de água de um rio transbordante.

- Esse é o alagamento?

- Sim. Vamos descer. Precisamos continuar.

- Daqui?

- Isso mesmo. Vamos margear e ver os estragos. E ver se encontramos o cavalo também, claro. – Raimundo desceu e se afastou. Hélder e depois Jonas saíram e pisaram na terra, contornando o capô e indo para onde estava Raimundo, perto da margem.

- Não sei se o cavalo ainda esteja por aqui.

- Eu não teria tanta certeza. – Jonas apontou para o solo, demonstrando fezes frescas e esverdeadas de animal sobre uma trilha de pegadas.

- O animal também resolveu margear a água, indo para as montanhas. – Raimundo lançou o olhar para a serra.

- Aquelas montanhas? – disse Hélder. – Vamos para lá?

- Acertou – disse Jonas, sorrindo. – Já brincou de caçador? Pode ser divertido.

Hélder olhou para o sorriso, querendo entender o que estaria por trás daquela colocação. Talvez aquele homem do campo estivesse se divertindo, imaginando que o visitante reagiria como uma mocinha assustada diante da perspectiva de se embrenhar por um ambiente selvagem. Foi a vez de Hélder esboçar um sorriso, ainda que bem mais sutil. Mal sabia o fazendeiro que o suposto forasteiro da cidade grande estava familiarizado com elevações de terra e, até certo ponto, também com selvageria. Disperso entre as divagações, ele não percebeu quando Raimundo foi à picape e voltou para perto dos outros dois, portando um facão de lâmina longa.

- Vamos ser rápidos. – Ele tomou a dianteira. – Daqui a pouco vai escurecer e o clima indica que pode não ser uma noite estrelada.

Hélder o seguiu, deixando com ele e Jonas uma trilha de pegadas na terra encharcada.

- O que acha que pode encontrar? – ele perguntou, indicando a faca.

- Não é para matar nada. Bom, eu espero que não precise. Isso é para abrir o caminho.

- Então vamos entrar mesmo no mato? – perguntou Jonas.

- Sim. Há árvores caídas e arbustos bloqueando o caminho. O cavalo pode estar preso em algum lugar.

Hélder cruzou os braços e se concentrou na maneira com que pisava, tomando cuidado para não escorregar no solo enlameado daquela espécie de praia entre a água barrenta e o aclive de terra, à direita, que aumentava conforme se aproximavam da serra. O vento soprava frio sobre o alagamento e podia-se quase ouvir o arrastar de madeira e outros objetos sólidos carregados pela correnteza.

Ele estava acostumado a estar imerso na natureza, bem como, certa vez, até participou como voluntário de busca em um alagamento onde estava acompanhando um campeonato de motociclismo. O que estava vivendo, porém, era diferente. A conversa no bar não parava de ressoar em sua cabeça e se perguntava sobre a índole daqueles senhores que caminhavam à sua frente. Como reagiriam se soubessem que o mais novo membro da família Sampaio estava logo ali, do lado? Hélder balançou a cabeça e passou a mão nos cabelos, dissipando os pensamentos. Era besteira. Ele devia esquecer conflitos familiares centenários e se concentrar na busca de Ruivinho para voltar o mais cedo possível para os braços de Dora.

A caminhada do trio prosseguiu por cerca de uma hora, até que chegaram aos pés das montanhas, onde o caminho terminava em um alagamento menor, a água escorrendo ao redor de uma grande árvore caída e de barro oriundo do morro que exibia suas rochas desnudas, desprovidas da camada de vegetação e terra.

- As pegadas acabam aqui. – Jonas tomou a frente.

- Como ele pode ter passado? – perguntou Hélder, olhando para o cenário calamitoso provocado por um deslizamento.

- Esse desmoronamento pode ter ocorrido logo depois – respondeu Jonas. – Ou ele pode ter passado por cima. Não é tão difícil para um cavalo.

- Se isso é recente, essa área deve estar instável. – Hélder se manteve afastado. – Sou alpinista e digo que não estamos equipados para nos aventurar por aí.

- Eu não diria isso. Não é como subir uma montanha. É só evitar a lama. Raimundo, o que acha? – Jonas se virou para o irmão, mas o outro Queiroz permanecia alheio à discussão. Ele mantinha o olhar inquiridor voltado para a paisagem, parecendo um crítico de arte avaliando um quadro em exposição.

- Tem algo errado.

- Sim – disse Hélder. – Estamos no fim da linha.

- Pelo contrário! – Raimundo deu alguns passos e pisou na água, terminando de molhar as botas e a barra das calças.

- O que está fazendo?

- Vendo uma coisa. – O Queiroz chegou à árvore um pouco enterrada, ergueu o facão e o usou para cortar os galhos com folhas que impediam sua subida. Jogou fora os pedaços cortados e subiu no tronco. – Vocês não vêm? – perguntou, virando-se para os demais. A resposta do irmão foi pisar na lama, sem cerimônia. Jonas afundou passos na poça e subiu na árvore. O desconforto com a situação, para Hélder, não foi maior que a vontade de não ficar sozinho ali.

Na ponta dos pés, ele andou até a árvore e se juntou aos outros dois, equilibrando-se naquela ilha de madeira sobre a lama. Juntos, prosseguiram na direção em que estavam trilhando e, chegando ao final, as raízes grossas que serpenteavam no ar foram prontamente cortadas e jogadas sobre a lama para servirem de um apoio no terreno instável. Pisaram sobre elas com a presteza de pessoas que estavam acostumadas com adversidades. Os fazendeiros e o alpinista demonstravam desenvoltura com os pés, ainda que não confiassem no lamaçal.

Pularam em uma rocha mais adiante e se esgueiraram pelos restos do desmoronamento, andando rente à costa da montanha, e chegaram a uma área mais firme, situada entre dois paredões. O espaço seguia espremido entre as duas muralhas rochosas como um corredor permeado de vegetação em baixo e em cima, de modo que as árvores no alto davam àquela fenda uma aura cavernosa. Raimundo estendeu o facão e cortou alguns arbustos.

- Isso está errado.

- É – Jonas falou vagamente, como se estivesse pegando alguma sugestão no ar.

- O que seria? – perguntou Hélder.

- Eu nunca vim aqui.

- Como assim?

- O terreno devia acabar na parte alagada por onde passamos.

- Exatamente – concordou Jonas. – Essa parte era inacessível. – Havia uma animação na voz dele. Hélder não sabia dizer se era pela surpresa ou simplesmente era empolgação por ter seus terrenos ampliados. Também não sabia o que aquela porção de terra em linha reta poderia significar para aqueles latifundiários.

- Vamos ver no que vai dar. – Raimundo seguiu andando, liderando a improvisada excursão pelo vale secreto. Mosquitos perturbavam, zumbindo nos ouvidos e pinicando a pele, e o clima abafado fazia com que parecesse que eles estavam avançando em um túnel para o interior da terra. “Saulo, seu filho da mãe, depois dessa você vai estar me devendo cinco”, Hélder pensou.

- Esperem! – Raimundo estacou e interrompeu os outros dois com os braços. Depois de uns bons minutos de caminhada, desbravando como bandeirantes aquele lugar até então desconhecido, o Queiroz parou, duro, apurando os ouvidos como uma onça astuta sondando os arredores. – Ouviram?

Jonas e Hélder não deram a mínima atenção ao estrondo distante que estava perturbando Raimundo. Tensos, de olhar baixo e vidrado no trecho da trilha, percebiam aos poucos que o que pensaram serem cascalhos brancos era, na verdade, ossos, de todos os tamanhos e formas, plantados pelo terreno como se fossem um mineral que brotava espontaneamente do solo. Hélder piscou, reconhecendo um crânio animalesco de orbitas vazias. Jonas estava ainda mais estático. Mais branco que os restos mortais para os quais olhava, ele nem parecia respirar.

- O que é isso?

- Uma forma bagunçada de cemitério? – Hélder deu um passo e chutou um fêmur, arrancando-o parcialmente da terra.

- O que você acha que está fazendo? – Jonas o repreendeu como se acusasse o outro de um crime.

- Calma! – disse Raimundo. – São apenas ossadas de animais.

- Eu sei. A questão é o que estão fazendo aqui. – O irmão fez o sinal-da-cruz.

- O que você quer dizer?

- Você não sabe que há gente sórdida que usa animais inocentes para rituais? Gente que cultua a morte.

- Aqui seria um altar de satanismo? – Hélder olhou em volta, procurando algo além dos ossos que denunciasse atividades ritualísticas.

- Sim. O que explicaria tantos ossos no mesmo lugar.

- Quem te falou isso? – perguntou Raimundo.

- O povo, ora!

- Sei... O povo da serra. Esse povo fala muita coisa. E acredita em muita coisa. Já ouvi falar que o sumiço de bezerros e bodes das fazendas se deve a abduções extraterrestres.

- Por isso mesmo, irmão. O Diabo gosta de pessoas de mente fraca. Se eles acreditam em extraterrestres, podem também recorrer ao ocultismo por achar que isso irá trazer alguma coisa de lucrativo para eles.

Hélder pensou naquilo. Iria argumentar que o lugar era inacessível, mas viu que o fato de os Queiroz não saberem de sua existência não significava que não pudesse haver trilhas secretas que levariam para aquele vale.

- Sabe o que acontece? – Raimundo se virou. – Os bezerros e bodes desaparecem pela falta de responsabilidade dos fazendeiros da serra. Os animais se perdem, caem de penhascos e vêm parar em lugares como este. É apenas isso. Não há abdução extraterrestre, ou mesmo culto ao Diabo... Nada disso. E... – Raimundo parou de destilar seu ceticismo, momentaneamente abalado por um farfalhar suspeito atrás de si. Ele se virou e, junto com os outros dois companheiros, testemunhou a vida se manifestar naquele cenário de morte. A primeira coisa que apareceu foi a cabeça. Enfeitada por um conjunto de tiras de couro que terminavam em cordas soltas, ela saiu de trás de um arbusto, sacolejando a crina desinteressadamente.

- É ele! – Hélder, sem aviso, pulou para frente. Como se estivesse procurando rochas em meio a um riacho, ele foi saltando entre os ossos e chegou ao animal que pouco reagiu a aproximação dele. Depois de passar a mão pelo lombo macio e pegar as rédeas, o alpinista se virou para os dois fazendeiros, portando um ar de alívio.

- Muito bem! – disse Jonas. – Agora podemos ir.

Raimundo, por outro lado, não esboçou imediatamente nenhuma pressa. Percebendo o olhar confuso que Hélder dirigia a um canto da montanha, ele andou sobre as ossadas e olhou o que estava além de uma protuberância rochosa. Havia uma abertura na parede, como a porta de uma caverna de mais de um metro de altura e largura.

- Uma caverna? – perguntou Jonas, não suportando a curiosidade e se unindo ao irmão.

- Sim, mas não é bom se aproximar demais. Não sabemos que tipos de insetos vivem aí dentro.

- Bom, temos o cavalo – falou Hélder. – Podemos voltar.

- Verdade. – Raimundo olhou para o alto e viu pedaços do céu nublado aparecendo entre as árvores do topo da fenda. – Vamos embora.

- Vem, Ruivinho – Hélder puxou as rédeas e conduziu devagar o cavalo sobre o terreno pavimentado de esqueletos.

- Ruivinho? – Raimundo se afastou da caverna e acompanhou o outro com o irmão, regressando pelo caminho que vinham seguindo.

- Gostei do nome do seu cavalo – disse Jonas. Não estava claro se era uma ironia ou um elogio legítimo.

- Obrigado, mas não coloquei o nome. – Hélder sentiu um repentino incômodo. – E ele não é meu.

- Não? – Raimundo tocou no animal, fazendo-o parar e interrompendo a caminhada. – De quem é?

- Um conhecido meu comprou muito recentemente.

- Conhecido de muito bom gosto esse seu. – Jonas levantou a pata dianteira de Ruivinho. – Ótimas ferraduras, não é mesmo, irmão?

Raimundo esperou Jonas abaixar a pata direita para levantar a esquerda.

- Ótimas ferraduras mesmo – ele afirmou, assumindo um olhar diferente. Mudou de postura e analisou o cabresto na cabeça do animal, com especial atenção ao brilho das fivelas.

- Poucas pessoas nessa região possuem condições de adquirir um garanhão desse porte, com esse trabalho de ferragem e esse cabresto de couro – Jonas disse.

- Gente, eu sei que vocês estão empolgados com um animal desses, mas se estão percebendo bem, está frio e escuro. É melhor nos apressarmos. – Hélder, impaciente, puxou as rédeas e seguiu na dianteira. Os dois irmãos o seguiram, introspectivos, e um novo silêncio opressor se fez presente, mergulhando-os em um clima tão tenso que parecia que os dois paredões daquele corredor iriam se unir e esmagá-los a qualquer instante.

As paredes, enfeitadas de plantas que brotavam de reentrâncias, não se convergiram para pressioná-los, mas nem tudo permaneceu igual. Hélder parou, à margem da água, e ficou imóvel, boquiaberto, o olhar vidrado na destruição adiante.

- Não! – Raimundo foi o primeiro a quebrar a calmaria perplexa entre os três, olhando para a muralha de destroços. Árvores, pedras e terra estavam empilhadas no caminho, formando a terceira parede daquele vale estreito. – Não pode estar acontecendo.

- E agora? – A voz de Hélder falhou. Pela primeira vez naquele dia frio, ele estava trêmulo dos pés à cabeça.

- O desmoronamento deve ter sido o barulho que ouvi – falou Raimundo.

- Então não faz tanto tempo, não é? – Hélder olhou de um para o outro.

- Para dizer a verdade, não sei se o tempo faz tanta diferença – disse Jonas, fazendo menção de entrar na poça que os separava da montanha de destroços. – Estamos presos aqui, de qualquer jeito.

- Calma! – Raimundo segurou o braço do irmão. – Vamos encontrar uma saída. – Ele se virou para Hélder. – Você mencionou que era alpinista, certo? Acha que dá para escalar?

- Você não pode estar falando sério. Eu avisei que isso tudo devia estar instável e agora é tarde. Nem com equipamento apropriado daria.

- Ainda acho que podemos escalar. Há raízes desse lado e rochas maiores para pisarmos – disse Jonas. – Se evitarmos a lama, podemos subir.

- É muito arriscado. E além do mais, como ficaria o cavalo?

- Vamos deixá-lo aqui e ver o que podemos fazer amanhã.

- Deixá-lo aqui à mercê de novos desmoronamentos? O melhor que temos a fazer é dar meia-volta e procurar um caminho pelo outro lado.

- Deve ser um conhecido muito próximo para estar disposto a se arriscar pelo cavalo dele. – Jonas o olhou.

- O que você quer dizer?

Jonas abaixou o olhar do rosto para as mãos de Hélder e uma centelha de brilho irradiou dos dedos do alpinista. O anel de noivado! Hélder havia esquecido que o estava usando.

- Você já deve ter ouvido falar em como as notícias correm rápido em cidade pequena. Um simples casamento, por exemplo – continuou Jonas, caminhando de um lado a outro. – Muita gente comenta, e nós, no princípio, não damos muita importância, tratando informações como mais uma conversinha de comadres, mas elas sempre podem se mostrar relevantes no tempo certo.

Hélder ficou quieto, quase com a respiração suspensa. O casamento iminente, o cavalo caro... Não foi difícil para os irmãos juntarem os pontos, e ali estavam eles, silenciosos, as feições duras e os olhares penetrantes semiescondidos sob a luz opaca do fim do dia.

- Vou me casar, sim – ele falou. Não via motivo para esconder aquilo, não tinha nada a ver com velhas rixas, estando elas ainda crepitando em chamas dentro daquelas almas ou não. – Vou me casar com Dora Sampaio. Esse cavalo é da família dela. Algum problema? – A última frase deveria ter saído mais enérgica, mas se impor não era seu forte.

- Está bem! – Raimundo cortou o clima. – Não vamos discutir agora. O rapaz está certo. Esse lugar ainda deve estar sujeito a outros deslizamentos. Vamos voltar e procurar outra saída.

Hélder se virou para ele, surpreso pelo repentino apoio, e sentiu uma bufada atrás da nuca, não sabendo dizer se pertencia ao cavalo ou a Jonas.

- Se é que o outro lado também não seja um beco sem saída.

- Sim, mas precisamos dar uma olhada antes que anoiteça – Raimundo insistiu.

- Vamos! – Hélder puxou as rédeas do cavalo e deu meia-volta. Não via a hora de fugir daquele lugar e daquele assunto.

Os irmãos andaram por perto, esquivos. Pareciam evitar se aproximar demais do forasteiro, como se este tivesse adquirido um mau cheiro repentino. Talvez esse suposto nojo fosse só impressão, Hélder pensou. Não era hora de ceder a paranóias. Eles chegaram ao terreno de ossadas, perto da pequena caverna, e passaram por elas evitando olhar para os lados e olhando para baixo apenas o suficiente para não tropeçar em nada. Raimundo cortou os galhos de um arbusto que atrapalhavam a passagem e, com alguns passos, eles chegaram a uma área mais aberta, com as montanhas altas se erguendo ao redor.

- É o fim – falou Jonas, vendo as elevações rochosas fechando o cerco em volta. – E a situação não é melhor.

- Acho que dá para subir por aqui – Hélder apontou para um lado menos íngreme, onde um rastro com menos pedras e plantas serpenteava para o cume da montanha.

- Sim – Raimundo concordou. – Mas não seria muito inclinado para o cavalo?

O noivo de Dora parou um momento. Não o agradava a possibilidade de deixar Ruivinho ali, sob imprevistos naturais.

- Subam vocês dois primeiro. Vou logo atrás. Se o cavalo não conseguir subir, vamos deixá-lo e resgatá-lo amanhã.

- A idéia é boa – disse Raimundo, se voltando para a subida. Hélder tinha dúvidas se ainda poderia contar com a ajuda deles no dia seguinte, mas caso não conseguisse levá-lo, sabia onde o cavalo estava e tinha que se agarrar à esperança de que poderia ir buscá-lo por outros caminhos.

O primeiro Queiroz subiu, curvado, seguido pelo outro. Hélder pisou nas rochas e caminhou devagar, sentindo-se aliviado pelo fato de o cavalo o seguir de bom grado pela trilha íngreme, em direção ao alto. Cada passo era uma vitória. Subiam pela diagonal, de olho onde colocavam o pé e suportando a tentação de olhar para o lado e ver a altitude que estavam tomando na escalada da montanha.

A caravana continuou e uma volta difícil, depois de uma rocha, os fez chegar a uma área menos íngreme, que levava para uma região bem arvorejada. Os três soltaram um suspiro como se não tivessem respirado durante a subida.

- Vamos por aqui – falou Raimundo. – Podemos chegar ao rio e de lá é mais fácil chegar à fazenda.

- O rio? – Hélder perguntou, puxando o cavalo. – Está se referindo ao rio que transbordou?

- Ele não fica longe – disse Jonas. – E acredito que a melhor escolha é nos guiarmos por ele. Raimundo e eu nascemos e nos criamos aqui. Pode ficar tranqüilo. Sabemos o que estamos falando.

Hélder resolveu dar um voto de confiança e ficou calado, deixando apenas o barulho dos golpes do facão nos galhos e o eco de trovões distantes marcarem a marcha no meio do mato. Ele quis evitar algum protesto, pensando que o caminho não devia ser mais angustiante que a subida da montanha. Mas as adversidades apenas mudaram de forma. Abaixo das árvores, as sombras os envolveram em um abraço, densas, antecipando a noite. Tudo ao redor se transformou em um labirinto de trevas e não dava para saber qual critério Raimundo usava para escolher o rumo que tomava.

- Estamos chegando? – Hélder perguntou baixinho, como se a pergunta fosse proibida. A pele formigava de tantas picadas de mosquitos e de se roçar nas folhas das plantas.

- Não devemos estar longe, não é mesmo, Raimundo? – falou Jonas.

- Sim. Cuidado! – o irmão disse antes de começar a descer um barranco.

- Gente, se for longe, sugiro pararmos e esperarmos o amanhecer.

- Está maluco? Podemos chegar tranquilamente.

- Mas não estamos em um terreno plano. – Hélder não conseguiu evitar a reclamação e quis parecer o mais racional possível. – É noite e a terra está lisa – ele terminou, tendo como testemunha a favor do seu argumento a dificuldade em descer o barranco sem escorregar.

- Você pode entender de outras montanhas, mas essa, em particular, é nossa.

- E as fazendas de que falaram? Aquelas que estavam perdendo os animais.

- Elas não ficam tão perto quanto parece – Raimundo falou, desferindo a lâmina nos obstáculos que encontrava. – É melhor descermos a ladeira do rio e contornarmos até a fazenda.

Por pouco Hélder não falou que a teimosia deles era a verdadeira coisa a ser contornada ali. Porém, continuou descendo o barranco, emitindo somente suspiros exasperados que facilmente poderiam ser confundidos com o cansaço que de fato sentia. O cavalo também atrasava o passo, esforçando-se para avançar mesmo caminhando na descida.

- Esperem! – Raimundo parou de repente. Ele olhou para o lado e começou a andar para a direita.

- O que foi? – Jonas o acompanhou. – O que foi dessa vez? – perguntou, e não foram necessários muitos passos para descobrir a razão da mudança de rumo. Depois de alguns metros de distância, a mata acabava, dando lugar a um desfiladeiro, e no final deste, o volume de água escorria sob a escuridão.

- Chegamos ao rio – Hélder falou, esticando-se para ver alguma coisa sem precisar chegar muito perto. – O que fazemos agora? Descemos?

- Por aqui não dá de jeito nenhum – Raimundo disse. – Vamos ver se dá mais para frente – ele falou, e devido ao susto, se virou mais rápido do que planejava.

Ruivinho tinha dado um relincho alto e empinado, soltando as rédeas da mão cansada e distraída de Hélder.

- Quieto, rapaz!

- O que ele tem? – perguntou Jonas.

- Não faço idéia – disse o alpinista, voltando para os dois um olhar que suplicava uma resposta deles, uma vez que eram os irmãos Queiroz os nascidos e criados no campo.

Raimundo se aproximou, levantando os braços e fazendo um chiado com a boca.

- Calminha! – disse, mas o animal continuava agitado, sulcando a terra com os cascos e empinando aos relinchos.

Com cautela, Hélder chegou mais perto, pôs as mãos nas rédeas e se preparou para por a mão na cabeça do cavalo, a fim de acalmá-lo, mas antes que encostasse um dedo, Ruivinho disparou para frente, o empurrando por vários metros. Em choque, Jonas e Raimundo olharam para baixo e viram Hélder rolando pela ribanceira até conseguir se segurar em uma pequena saliência de terra. O cavalo tinha parado mais embaixo, contorcendo-se de patas para cima como se custasse a entender o que se passava.

- Socorro! – gritou Hélder, dolorido e atarantado.

- Agüenta firme! – Raimundo se agachou na beirada do desfiladeiro e agarrou uma raiz que brotava do solo. O irmão estava do lado, os olhos bem abertos pelo pavor.

- Olha o que você vai fazer.

- Jonas, fecha a boca e me ajuda aqui. – Raimundo pendurou os pés e foi escorregando aos poucos, derrubando involuntariamente pedrinhas e areia que caíram sobre o rosto do homem abaixo. Hélder desviou a cara um momento e se virou novamente para cima, para ver Raimundo suspenso, sendo segurado pela mão pelo irmão que esticava o braço com muito esforço na beira do precipício.

- Agarre o meu pé! Posso puxar você. – Ele balançou as pernas, como se ajudasse.

Hélder tentou se içar e chegou a ficar com o queixo na altura da saliência onde segurava, mas a distância que o separava das botas de Raimundo ainda era muito grande. Ele roçou os pés pela terra, procurando um apoio que não encontrou, e tentou se esticar, desistindo logo em seguida por ver que não adiantaria.

- Eu não alcanço e não estou conseguindo escalar.

- Que raio de alpinista é você?

- Jonas, segure-se na raiz. Eu me seguro nos seus pés e assim podemos alcançá-lo.

- Está pedindo para eu suportar o peso de vocês dois? – A voz de Jonas soou com uma certeza que excluía discussões. – Desse jeito não dá, irmão. Eu não conseguiria levantá-los.

- O que sugere, então?

- Vamos procurar um galho comprido e usar para puxá-lo.

- Acha que pode nos esperar enquanto procuramos um galho? – Raimundo olhou para baixo.

- Eu... Eu não sei. – Hélder podia sentir muito bem a terra se esfarelando sob os dedos, fragilizada por chuvas passadas. – Acho que não – disse, tendo que lidar com o desgosto de admitir que a experiência que teve com escaladas pouco estava valendo naquele momento. Ele se sentiu uma fraude, uma enganação que se desfez na primeira dificuldade real, longe dos seus círculos de amizades, dos equipamentos caros e das aventuras planejadas. Olhou para cima, em busca de uma nova idéia, de uma ajuda, de algo que não o fizesse se sentir sozinho, e tudo o que encontrou foi o silêncio cúmplice de dois homens que trocavam uma conversa muda de pessoas que não precisavam de palavras para se fazer entender.

Hélder não sabia o que estava presente naquelas mentes, mas podia ver que havia uma decisão sendo tomada quando Raimundo voltou a raspar a sola das botas na terra e começou a subir o desfiladeiro.

- Vocês vão tentar buscar alguma coisa? Raimundo... Jonas... – Uma urgência cortante circulou pelo corpo do alpinista feito uma corrente elétrica ao ver os dois irmãos sumirem na borda do penhasco sem dizer nada, nenhuma palavra de consolação, nenhuma promessa, não deixaram nada além da ausência de um alento. – Alguém aí?! – ele gritou, e, como se ainda possuísse uma esperança, forçou os braços para se elevar, mas a pequena saliência de terra não resistiu, despedaçando-se por completo, e a queda foi inexorável.

Hélder deslizou pelo ar e atingiu o cavalo embaixo, fazendo ambos caírem na correnteza fria e escura do rio, homem e animal carregados por uma avalanche que escorria sem conhecer obstáculos. Desesperado, o noivo de Dora tentava nadar para a superfície e continuava sendo sistematicamente vencido pela força da água, até que Ruivinho, com seu enorme volume, se enroscou entre algumas pedras maiores e Hélder conseguiu agarrar os pelos molhados, sendo atingido de vez em quando por uma onda que passava por cima do cavalo.

Ele tentava se erguer, tendo tímidos e cansativos progressos, quando o animal começou a se contorcer, reagindo aos estalos que se aproximavam. O barulho poderia ser confundido com o som da correnteza galopando sobre os cascalhos, mas se revelou como sendo o nado de uma silhueta que apareceu sobre Ruivinho e olhou para o homem que lutava pela vida.

Hélder ergueu o rosto e viu, com os olhos ainda ardendo pelas pancadas de água, aquilo que o fitava. A curta troca de olhares imersa nas trevas foi o bastante para que dentro dele a faísca da amargura pelo abandono e o medo da morte se unissem e dessem origem ao desejo ardente de ser resgatado, de ter a aparição de qualquer coisa que lhe estendesse a mão, fosse um anjo, um demônio, ou os espíritos que assombravam os ossos da fenda e os temores de Jonas. Desejava com a sanha de um desesperado qualquer coisa que o salvasse daquele rio, daquele olhar e do ódio que começava a sentir por aqueles irmãos, cujos nomes, rostos e sobrenome persistiram em continuar em sua memória até que a lâmina cortasse o ar em um lampejo, passasse raspando através da pelagem rubra e atingisse seu peito, pouco abaixo do ombro. Um único golpe foi o bastante para que as mãos se soltassem do cavalo e o corpo se deixasse levar pelas águas como uma criança nos braços de uma mãe perversa.

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Continua na parte II.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 07/07/2016
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