Noites de Caça - Parte III: Alma

Quando Dora aceitou o pedido de casamento, em uma sacada com vista para os prédios altos parcialmente ocultando o mar ao longe, Hélder a beijou e acreditou ser capaz de não deixar nada separá-los, nem fofocas de colegas ou a hipotética rejeição da família da mulher – que mantinha um manto enigmático sobre a cidadezinha de onde veio. A certeza de não se deixar levar por suposições negativas, porém, não foi o melhor dos obstáculos para barrar uma expectativa amarga que brincava por sua boca durante a viagem para Santa Regina. A dúvida se o aceitariam, se ele seria bom o suficiente, era um mal dos futuros genros difícil de evitar.

Entretanto, se ter acesso ao médico da família após ter a mentira de que estava bem facilmente desmascarada com um simples olhar da sogra fosse considerado um sinal de que tinha sido aceito, Hélder podia comemorar o entrosamento bem sucedido.

- Respire fundo e expire – disse Dr. Santos, comprimindo a ponta do estetoscópio contra o peito desnudo do paciente. – Não sente dificuldade de respirar? Não tem tosse?

- Não, doutor – respondeu Hélder, sentado na cama do quarto de hóspedes.

- Muita sorte não ter pegado uma pneumonia. Como ficou a noite toda no rio?

- Pelo visto não passei a noite. – O noivo olhou ao redor, distraído. – Mas não posso confirmar. Eu não me lembro.

- Não se lembra? – Santos o olhou. – Sente dor de cabeça? Pode ter sido uma pancada.

- Sinto um pouco, mas não é o tipo de dor de uma pancada.

- Não? – O médico afastou o estetoscópio e o enrolou. – Que tipo de dor é?

- Uma dor que vem de dentro seria uma resposta clara? – Hélder encarou o doutor, que permaneceu calado. – Enfim, não sei dizer ao certo. De qualquer modo, o que mais me incomoda é esse sonambulismo repentino.

- Quando começou?

- Depois que eu acordei, após minha queda no rio. Nunca tive nada parecido antes. Minha mulher falou que é transtorno pós-traumático. Acha que tem alguma coisa a ver?

- É complicado fazer um diagnóstico assim, mas eu não descartaria. Você consumiu alguma droga ultimamente? – A pergunta saiu casual, sem nenhuma conotação condenatória.

- De forma alguma. Nunca fui disso. De mais diferente que eu bebi foi aquela bebida do Saulo, o tal conhaque de caju.

- Ah, sim. – O médico deixou escapar um sorriso involuntário. – Saulo não deixa de imitar o pai querendo inventar essas coisas. Bom, alguns entorpecentes podem gerar distúrbios do sono.

- Sim, mas não consumi nada disso. A não ser que eu tenha sido espetado por alguma planta, ou picado por algum inseto. Ainda sinto a pele coçando devido aos mosquitos da mata.

- Devo alertar que uma bateria de exames seria o mais adequado.

- Certo... Acha que eu conseguiria bons exames nessa cidade?

- Quer que eu seja sincero? Eu não posso garantir. Meu conselho é que procure exames em clínicas da cidade grande. Você tem algum médico de confiança?

- Sim, tenho. Eu faço algumas atividades de risco, então fiz questão de manter alguns contatos. Vou resolver isso antes da lua de mel. Prometo.

- Espero que se apresse mesmo. Esse transtorno pode ser grave. – O médico pôs o equipamento na maleta. – Cuide desse ferimento também. – Ele apontou para o corte no ombro de Hélder. – Sabe em quê se cortou?

- Isto? – Ele acariciou a linha vermelha abaixo da clavícula, sentindo resquícios de dor e da visão nebulosa de alguém o apunhalando. – Está sarando – disse, fazendo pouco caso. Sabia que suas piores enfermidades não estavam mais na superfície.

Dr. Santos se aproximou com as rugas na testa se aprofundando com a expressão intrigada.

- Não parece tão raso – disse ele, olhando o tom rubro no fundo do corte. – O que você colocou em cima dele de remédio?

- Não coloquei nada. Na verdade, nem esparadrapo ou curativo. O médico do pronto-socorro onde fui o ignorou. Deve ter o confundido com um simples arranhão.

- Não parece ser um simples arranhão – falou o médico, semicerrando os olhos ao fitar o ferimento. – Bom, está sarado até demais para um corte recente, de qualquer modo. Continue tomando os remédios e não esqueça os exames mais aprofundados. O que posso falar agora é que você está bem. – Ele olhou para o relógio de pulso. – Preciso ir. Tenho outros pacientes para atender.

- Pode deixar, doutor. E obrigado. – Hélder vestiu a camisa. – Acompanho o senhor até a porta. Sei que freqüenta essa casa há mais tempo que eu, mas é questão de educação. – Ele abriu a porta do quarto e acompanhou o velho médico pelo corredor até a saída, além da sala de estar. – Tenha um bom dia.

- Bom dia e felicidades – disse Dr. Santos, pouco antes de caminhar para o portão e depois seguir para o carro.

Hélder fechou a porta, se virou e voltou através da casa, andando para a entrada arqueada depois da qual estava a cozinha, onde Saulo inspecionava a geladeira com um cuidado profissional.

- Como foi a consulta? – Ele se virou para o cunhado.

- Nada que não fosse o previsível. Disse que pareço bem, mas recomendou mais exames.

- Devo entender que é uma boa notícia. – Saulo se voltou novamente para a geladeira. – Dora ficará contente.

- Por falar nela, onde ela e Dona Dirce foram? – Hélder se aproximou do balcão e apoiou o braço. – As duas me deixaram sozinho com o Dr. Santos.

- Confirmar alguma coisa do Buffet. Algo desse tipo.

- Nem esperaram para ouvir o médico. Ele me falou que tive sorte por não contrair uma pneumonia, mas ainda sinto moleza pelo corpo.

- Sabe o que é isso? Uma gripe! – Saulo tirou dois limões e uma garrafa da geladeira, fechando a porta com o pé. – Vou preparar uma caipirinha para você.

- O correto não seria suco de laranja?

- Confie em mim. Vai ser a mesma coisa. – Ele foi ao balcão, desembainhou uma faca do faqueiro e começou a cortar as frutas rapidamente, começando pelas pontas. Perto dele, Hélder ficou olhando os dedos do outro homem deslizarem pelas cascas verdes e molhadas e se desviarem da lâmina que descia com precisão ímpar, fatiando cada limão.

- É bem prático nisso.

- Em quê? Ah, sim... Sou dono de bar. Tenho que aprender um pouco de tudo ou o negócio não anda. Sou barman, empresário, contador, publicitário, alquimista...

- Alquimista?

- Como meu pai, não sabia? Ele gostava de inventar bebidas, misturando as já conhecidas e colocando novos ingredientes. Precisamos fazer produtos diferenciados. A cidade é pequena, mas a concorrência existe.

- Compreendo. Parece que funciona.

- O quê?

- O seu marketing. Seu bar é conhecido por aqui. – Hélder pensou no camponês que conhecia Minas de Salomão, o que tinha perguntado se ele tinha bebido. O seu problema não era bebedeira, e tudo o que ele queria era saber com certeza o que era. – Posso fazer uma pergunta?

- Pode – disse Saulo, saindo para pegar o gelo. – O que quer saber?

- Você acredita em possessão?

- Como assim? – Ele voltou com um saco de cubos transparentes.

- Possessão demoníaca. Um espírito do mal dominar o corpo de uma pessoa.

- Rapaz, eu não sei. – Saulo socou os pedaços de limão no fundo do copo com um pilão. – Acontece cada coisa nesse mundão. Por que perguntou?

- Ouvi falar de uma lenda – Hélder falou. – Acredita que há adoradores do Diabo em Santa Regina?

- Não sei. Mas quem sabe? Acho que esse negócio pode existir em qualquer lugar. Se quiser saber mais sobre possessão sugiro procurar um padre. – O cunhado pegou a garrafa e derramou a bebida junto com o gelo no copo. – Padre Ademilton é um sacerdote experiente. Ele pode ajudar.

- Verdade? E se, vamos supor, eu quisesse falar com ele, como faria?

- Ele atende na igreja maior parte do dia. – Saulo estendeu a caipirinha para o noivo da irmã. – Por falar nisso, Dora comentou que iria lá mais tarde.

Hélder encostou a beira do copo na boca e as pedrinhas de gelo escorregaram sobre a língua, alguns fragmentos chocando-se inofensivamente contra os dentes antes dos limões chegarem aos lábios.

- Aposto que ela faria um vexame se me visse bebendo.

- Acho que é ela quem quer dominar os outros de vez em quando. – Saulo riu, pegando o copo de volta. – Falando nela...

Hélder se virou e viu a mulher entrar no recinto com passadas firmes.

- Oi, amor. Como foi com o médico? – perguntou Dora, dando um rápido beijo no rosto do noivo e se dirigindo à geladeira.

- Tudo certo. Dr. Santos é bem simpático. Ele falou que estou legal. Só recomendou alguns exames.

- Vamos ver isso antes da viagem de lua de mel – falou ela, com a borda de um copo cheio de água gelada sobre a boca.

- Foi exatamente o que falei para ele.

- Seu marido é forte como um touro, maninha. – Saulo deu uma piscadela cúmplice para Hélder.

- Sei bem disso. Quem está prestes a entregar os pontos sou eu. Lá fora está muito abafado. Sério! Vai dar uma chuva daquelas e ainda tenho que passar na igreja.

- Ah, querida – Hélder falou. – Gostaria de falar com você sobre isso. Também vou à igreja.

- Vai?

- Sim. – Ele olhou da noiva para o cunhado e depois de volta para a mulher. – Preciso sair e esclarecer um pouco. Sinto falta de movimento e quero conhecer a capela. Se não se importar, evidentemente.

- De forma alguma. – Dora acolheu a proposta. – Vai ser um prazer apresentar a igreja.

* * *

Hélder não se lembrava da última vez em que tinha ficado ansioso para conhecer um templo. Enquanto se aproximavam e estacionavam o carro, perto da praça, ele olhou para a capela que exibia uma única e alta torre com sinos acima do telhado, e pensou se respostas poderiam vir daquele lugar. Santuários tinham motivado peregrinações em busca da verdade durante toda a história da humanidade e ele não estava em condições de se ater a ceticismos.

Subindo as escadarias da calçada, o casal chegou à larga entrada que possuía dois nichos, um de cada lado, cada qual com sua própria escultura de santo. Hélder repetiu o sinal-da-cruz que Dora fez ao passar pela porta e olhou ao redor, visualizando de antemão a cerimônia do dia seguinte. Entre aqueles bancos envernizados, sua noiva caminharia arrastando a cauda de um lindo vestido branco em direção ao altar de mármore negro, onde ele estaria esperando com um terno elegante. Sem dúvida, um momento inesquecível que ele deveria garantir que acontecesse, nem que isso significasse se voltar contra si mesmo.

Os dois entraram com respeito, ouvindo o eco do som dos sapatos nos azulejos com padrões quadriculados do assoalho antigo.

- É linda! – sussurrou Hélder, admirando as pinturas acima do presbitério e as imagens da via-sacra em volta.

- Meus pais e minhas irmãs se casaram nesta igreja. Está se tornando uma tradição.

- Mesmo se não fosse uma tradição, não seria uma má escolha. É perfeita.

- Precisamos procurar o padre. – Dora pegou na mão de Hélder. – Vamos. – Os dois passaram pelo espaço entre dois bancos e caminharam pela lateral do templo. – Há uma entrada para a sacristia por aqui. – Eles passaram por outra série de bancos que aparentava ser para o coral, após uma coluna, e entraram em um corredor que levava para uma porta de madeira entreaberta, com o vislumbre de uma presença escapando pelo vão.

- Parece que tem gente. Ele deve estar ocupado – disse Hélder, se deslocando para o canto e encostando as pernas em um banco parecido com os da nave principal. – Esperar ou bater na porta?

- Não vai ser preciso. Ele está vindo. – Com um gesto, Dora indicou o senhor que chegava pela direção oposta a da porta. Ele era mais baixo que o casal e possuía uma medalhinha pendurada no bolso do peito direito da camisa azul.

- Boa tarde, padre. Sua benção. – A mulher se adiantou, antecipando um passo rumo ao sacerdote, gesto repetido pelo noivo.

- Deus abençoe! São vocês que vão se casar amanhã?

- Sim – respondeu Dora. – Tínhamos hora marcada, mas vejo que o senhor está com visita.

- Oh, sim. Essa família está precisando muito de apoio espiritual – lamentou o padre. – Como se não bastassem as enchentes, agora há um assassino em série à solta.

- São Queiroz? – perguntou Hélder.

- Sim. Vieram encomendar uma missa e desabafar.

- Eu soube pela internet. – Hélder franziu o cenho, disfarçando os olhos arregalados e apreensivos. – Alguma pista de quem cometeu essa... Barbaridade?

- Receio que não. Estão todos assustados. Mas tenho que voltar. Já demorei muito indo acompanhar uma senhora até lá fora – disse o padre. – Termino de atendê-los daqui a pouco. Podem aguardar?

- Sim, padre – disse Dora. – Ficaremos aqui.

- Não demoro. Fiquem à vontade. – Ademilton os cumprimentou e passou por eles. Ele abriu a porta e a fechou, pouco revelando quem estava na sala.

- Espero que não demorem mesmo. – A noiva se sentou com um bufo.

- Ficou chateada? – Hélder sentou do lado.

- É... Eles podiam ter vindo outra hora. Eu marquei horário.

- Dora, por favor, o momento é complicado para eles.

- Eu sei. Só que... Já tivemos contratempos o suficiente.

- Nossos problemas não são tão graves.

- Tem certeza? Você quase morreu metido naquelas montanhas com essa gente.

- Essa gente? – cochichou Hélder, olhando para a mulher. O perfil do rosto dela era duro sob as sombras do corredor, por mais que a expressão não transmitisse o mesmo desprezo das palavras. Ela não parecia arrependida por se referir a pessoas, principalmente pessoas mortas, daquela maneira, e ele preferiu não pensar em que tipo de sentimento a noiva nutria por aquela família depois do que aconteceu na serra e o que pensaria caso soubesse como aconteceu de fato. O noivo desviou o olhar. Era preferível não tocar no assunto.

- Amor, eu vou dar uma volta para conhecer a igreja. Você vem?

- Vou ficar. Não quero que outra pessoa tome nossa frente. Qualquer coisa eu chamo você.

Hélder se levantou.

- Daqui a pouco volto. – Ele se afastou e caminhou para a área mais ampla, deixando a noiva no banco. Andando devagar, passou pelos assentos do coral e olhou para a lateral do altar, que tinha um jarro de flores de cada lado. Ele se voltou para a parede e se deparou com a décima quarta estação da via-sacra, exibindo dentro de uma moldura de pedra uma imagem de Cristo sendo sepultado. Ele passou por ela, atravessando o feixe de luz de um vitral, e chegou à outra estação, na qual Jesus era descido da cruz. Admirou a representação da cena bíblica um instante e se virou para o resto do ambiente silencioso, de uma calmaria densa e solene como um preceito litúrgico a ser respeitado e observado.

Hélder moderou os passos, repousando com delicadeza a sola dos sapatos no piso enquanto deslizava furtivamente pelos cantos da igreja. Não sabia se era errado estar ali, sob aquele teto sagrado, quando poucos dias antes havia pedido ajuda a um demônio em um momento de necessidade. Por outro lado, não podia ficar refém das dúvidas. Precisava por à prova suas hipóteses, confrontando o que sentia nas veias, vagando por seu espírito, com a sacralidade. Precisava confrontar as trevas com a luz. Contudo, estava há vários minutos na igreja e não tinha sentido nada de diferente. Não caiu no chão se debatendo ou começou a flutuar e queimar feito um vampiro exposto ao sol.

Ele continuou andando e alcançou a pia batismal. A água abençoada estava praticamente nas bordas de pedra com desenhos de peixes. Devagar, se aproximou e olhou para o próprio reflexo. Um homem que aparentava cansaço o encarou de volta. Ainda era capaz de reconhecer a si mesmo, embora não pudesse dizer tudo o que estava por trás daquele rosto tremulando com os sutis movimentos da superfície. Talvez houvesse um estranho perdido dentro daquele par de olhos. Levantou a mão direita e a aproximou da pia, detendo-se poucos centímetros antes. Virou-se um pouco, conferindo se Dora o havia chamado. Nenhum nome era ecoado entre as paredes grossas.

Hélder se voltou para a água benta novamente. Não era o momento para hesitações. Tencionou os ombros, na atitude de quem se preparava para tomar uma injeção, e mergulhou os dedos até a palma da mão. Sentiu o estômago se contrair com a expectativa e se assustou um pouco com a temperatura baixa da água, ainda que o frio fosse o efeito sensorial mais notável do ato. Demorou um momento e tirou a mão, fazendo o sinal-da-cruz. Não houve nenhuma reação dolorosa e ele não sabia como deveria receber a decepção, se é que podia colocar nesse termo. A neutralidade podia ter mais de um significado. Estaria curado? Provavelmente não. Mas sentia que a luz ainda era capaz de sobrepujar o que estava o dominando à noite.

Ele se voltou para o altar e viu um crucifixo grande no centro. Como se fosse atraído, caminhou , passando pelos bancos. Havia preces dentro dele, preces que não tinha certeza se eram dignas de serem dirigidas ao lugar certo. Chegou perto e, com a distração, por pouco não tropeçou no primeiro degrau que subia para o presbitério. Ele desviou, se deslocando para a direita, e, ao passar por uma coluna, avistou uma entrada larga, de bordas arredondadas. Chegou mais perto e encontrou uma salinha pequena, dividida por um genuflexório que ia de parede a parede, separando-o do sacrário dourado, abaixo de uma lâmpada vermelha acesa.

Hélder se ajoelhou, apoiou os braços no encosto de madeira e dirigiu o olhar para a urna brilhante com um relevo em forma de um pombo envolto em raios de luz. Pigarreou e entrelaçou os dedos, depois os descruzou e deixou as mãos justapostas como via em algumas imagens de anjos. Na verdade, não sabia que maneira devia adotar. Não tinha costume com orações, mesmo quando tudo se resumia a fechar os olhos e repetir o amém depois de um agradecimento de um religioso presente em uma refeição. Agora que precisava, estava surpreso com o quão constrangedor podia ser se dirigir diretamente para Aquele que conhecia todas as coisas.

- Senhor... – Ele começou, parando um pouco para moderar a voz. No início, refletiu se era necessário falar em voz alta, ao invés de apenas imaginar, mas verbalizar a oração denotava um mínimo de esforço, um mínimo de comprometimento e disposição. – Reconheço que tenho andado afastado. Não freqüento tanto a Igreja e... Bem, não sou o mais exímio leitor da bíblia, mas não queria me afastar tanto a ponto de me tornar distante de tudo, inclusive da humanidade. Eu não queria fazer mal àquelas pessoas, e o que mais quero é me livrar de uma vez por todas do mal daquela montanha. Vós sabeis que não sou má pessoa e desejo que a luz expulse esse espírito assassino para que eu possa ser feliz, e fazer minha mulher feliz. Peço perdão por tudo... – falou Hélder, de olhos fechados. Antes que encerrasse, um estalo de sola de borracha arrastando no piso o fez se virar e se deparar com uma figura masculina à beira da entrada. Aos poucos foi reconhecendo o cabelo loiro, a barba rala, mais proeminente no queixo, e o rosto fino, tudo ficando mais familiar como se a vista fosse focalizando e adquirindo nitidez aos poucos. – Você? – disse ele, um nome passeando em algum lugar de sua mente, sem poder ser agarrado. – Nós nos conhecemos quando procurei pelo cavalo. Maicon. Você se chama assim, não é?

- É Marlon – disse o jovem, quase encostado na quina da parede. Mantinha os ombros encolhidos, o que fazia dele uma presença esquiva de alguém pego em flagrante, contrastando com a escultura serena e ascética de São Francisco de Assis mais ao fundo.

Hélder se levantou e encarou o rapaz, tentando suavizar a postura com o esboço de um sorriso. Não queria parecer incriminador. Não sabia se o outro tinha ouvido sua oração, e se tinha ouvido, não sabia o que ele podia deduzir dela.

- O que faz aqui? – Ele fez a primeira pergunta que veio em mente.

- Minha família veio encomendar uma missa.

- Ah... – Por um instante, Hélder tinha esquecido as pessoas na sala do padre. – Sinto muito por seu pai e seus tios. Eu estive com eles por pouco tempo, mas deu para perceber que eram homens... corajosos.

- Sim. – Marlon dirigiu o olhar perdido para baixo. – Vão deixar saudades.

- Como está sua família?

- Estamos tentando lidar com tudo. Minha tia está bem triste, mas está sendo bem acolhida pelos outros aqui na cidade. A família toda está na cidade, para dizer a verdade. Ninguém quer ir mais para a fazenda, principalmente à noite. Aquelas terras eram lindas, verdes, e agora estão vazias, amaldiçoadas pela presença de um assassino que não tem coragem de mostrar a cara nas luzes das ruas – o rapaz divagou. – Parece um cenário das histórias contadas por meu tio.

- Jonas? É... Ele parecia ser um homem de crenças e histórias.

- Há uma em particular, que ele contou depois que chegou da serra naquela noite.

Hélder sentiu a garganta seca.

- Quando fomos procurar o cavalo?

- Sim. – Marlon olhou para ele. – Ele chegou a contar que, durante a noite, depois que se perderam de você, teve a impressão de que ele e meu pai estavam sendo seguidos. Houve, inclusive, um momento em que foram atacados, enquanto desciam um barranco escorregadio. Alguém bufou por perto, como se estivesse aborrecido, e fez com que pedregulhos deslizassem para cima dos dois. Uma hora, pareceu chegar bem perto e meu pai desferiu um golpe de facão antes da queda de uma árvore. Estava muito escuro para saber se realmente havia outra pessoa ali, e meu pai disse que era somente a mata e o terreno instável pregando peças. Titio não deixou de desconfiar que eles estivessem sendo seguidos. Se ele estava certo, quem quer que fosse recuou com a facada do meu pai e a queda da árvore.

- É. – Hélder massageou o ombro distraidamente. Podia sentir o corte sob a roupa. – A noite pode confundir mesmo. Para quem ele contou isso?

- Só para os próximos da família. Era uma história estranha e havia a possibilidade de ser um engano. Depois que meu pai foi assassinado, titio não teve cabeça para mais nada, só pensava em descobrir quem era o assassino. Não teve tempo, infelizmente.

- Nem seu outro tio – disse Hélder. – Aliás, soube se encontraram seu primo?

- Estão procurando. Há poucas pistas, mas não deve estar longe.

- Acha que ele pode estar com o criminoso? – A pergunta mirava menos no fato de o primo poder estar vivo e mais na possibilidade de ele poder falar se tinha visto quem matou os três irmãos.

- Não sabemos – respondeu Marlon. – Se estiver, e Deus queira que esteja, espero que nos esclareça tudo – disse ele, mirando os olhos escuros do outro homem como se fosse possível ver os temores enterrados no olhar.

Hélder mexeu a boca, dando início à articulação de um comentário, um voto para que o jovem desaparecido estivesse bem e que contasse tudo, mas as palavras morreram antes que tivessem chance de se propagarem pelo ar do recinto. Ele estava em um sacrário, e não estava certo se o que sairia de sua boca não seria uma mentira.

- Meu amor? – Um chamado não muito alto se aproximou. – Hélder! – Dora chegou ao sacrário. – As pessoas saíram. O padre já vai nos atender. Olá! – Ela se virou para o rapaz que cumprimentou de volta de forma seca.

- Oi – disse ele, praticamente sem abrir a boca.

- Foi um prazer falar com você – disse Hélder, se virando para Dora. Marlon acenou sutilmente antes que o homem se afastasse e acompanhasse a mulher através do altar. Nem mesmo a sensação formigante de ser observado ao passar pelo crucifixo o fez olhar para trás.

A sala do padre não era grande. Possuía uma estante de livros atrás da mesa e na parede havia um quadro de Cristo em oração pintado a óleo. Sentando-se ao lado do noivo, Dora conversou com o sacerdote animadamente, expondo cada quesito que achava relevante. Hélder tinha pouco o que acrescentar. A conversa que teve com Marlon martelava como batimentos cardíacos no interior do crânio, a voz do rapaz sobrepujando a da mulher de vez em quando. Uma hora pensou ter ouvido Dora falar assassinato e, virando-se para ela, percebeu ser apenas um engano. Acertando tudo, de espórtula à decoração da capela, eles se despediram, cada um pedindo a benção e se levantando. Ele não se importou de não ter tido oportunidade para pedir orientação. Não deixava de pensar na família Queiroz sitiada na cidade, e padre Ademilton volta e meia olhava para o relógio, fazendo referência a uma reunião com o bispo para a qual estava atrasado. O casal caminhou pela igreja e o homem perscrutou em volta, à procura do rapaz. Não havia nenhum sinal de Marlon pelo templo.

- Está bem mais frio agora – disse Dora, logo que eles atravessaram a entrada principal, seus braços estavam cruzados e os cabelos esvoaçando. – Eu falei que choveria.

Hélder desceu a escadaria de mãos dadas com ela e ambos chegaram ao carro, depois de atravessarem a pista. Ele abriu a porta da frente e se sentou, enquanto a noiva se acomodava no banco do motorista, pondo o cinto e dando a partida. Ele não pensou em pedir o volante dessa vez. Continuava com dificuldade para se concentrar e, de qualquer maneira, era Dora quem estava conduzindo seu saveiro cross vermelho e sua vida desde que chegaram à Santa Regina, pelo menos durante o dia. À noite, havia outras coisas para guiá-lo.

- Achei esse padre super simpático. E você? – perguntou Dora, esticando a mão para ligar o rádio e transitar entre as estações até sintonizar a regional. – Havia um antigo que não era assim. Vivia de mau humor. O que acha de convidá-lo para nossa festa? Não acho que ele vá se incomodar.

- O padre antigo? – perguntou o noivo, vendo o céu acima da rua por onde passavam.

- Não. Estou me referindo ao novo.

- Sei... – Hélder continuou olhando as nuvens. – Será uma boa oportunidade para falar com ele.

- É? Falar o quê?

- Hã? – Ele olhou para a mulher. – O que disse?

- Você disse que era uma boa oportunidade para falar com ele. Esqueceu algum assunto na igreja?

- Não, nada. É que também achei o reverendo simpático. Podemos conhecê-lo melhor na festa. Desculpe, é que eu estava distraído com a música – disse ele, ouvindo a canção que tocava no rádio. Ele não sabia quem era o cantor e mesmo a letra lhe escapava. Na verdade, não estava absorto na música.

- Sim, vamos – disse Dora, dando olhadas rápidas da rua para o noivo, não tendo tempo de perguntar qual era o real problema. A música foi interrompida e os dois foram atraídos pelo que era falado no rádio.

- Trazemos com exclusividade uma notícia urgente – falou o locutor. – Carlitos Queiroz, filho de Silvério Queiroz, morto na última noite, foi encontrado agora a pouco, infelizmente sem vida. O corpo estava em uma área alagada, perto de um milharal, com profundos cortes. Autoridades acreditam que o rapaz de vinte e dois anos foi arrastado para o local.

Hélder ficou duro no banco. De repente, era como se o cinto apertasse seu peito a ponto de fazê-lo expelir todo o ar pela boca.

- Nossa... – Dora apertou os dedos ao redor do volante. – Ouvi um pouco a conversa das mulheres quando saíram da sala. Devem estar ainda mais arrasadas. Ouça!

- Policiais chegaram a encontrar pegadas um pouco apagadas na lama do local – informou o apresentador, fazendo o ocupante do banco do passageiro prender a respiração, o rosto dele ardendo como se fosse aspergido por um bafo apimentado. – Análises preliminares mostraram se tratar de rastros de animais, provavelmente que escaparam de currais e estábulos próximos. Vale assinalar que Raimundo tinha saído para verificar a fuga de parte do seu rebanho na noite em que foi assassinado. Investigadores acreditam que ladrões estejam saqueando... – Dora interrompeu, desligando o aparelho. Ela olhou para o companheiro no outro banco, imóvel, parecia uma carga inanimada a ser levada para alguma prateleira ou vitrine.

- Amor, câmbio... – Ela estalou os dedos abaixo do rosto de Hélder e ele piscou, se virando para ela.

- Oi. O que foi?

- Você estava viajando.

Ele olhou para além do rosto da noiva e viu os portões da casa de Dirce através da janela. Não tinha percebido que haviam chegado.

- É que estava pensando naquele rapaz da igreja. Ele tinha esperança de encontrar o primo vivo.

- Pois é... – disse Dora. – Eles passando pelo pior momento e nós planejando nosso dia mais feliz. Mas a vida é assim mesmo.

Hélder suspirou, desviando o olhar.

- Você não vai descer? – perguntou ele, de repente incomodado.

- Não. Vou ao florista. Mas achei melhor trazer você antes.

- Sim... Preciso por a cabeça em ordem. Até mais tarde. – Ele se inclinou para dar um beijo na noiva e abriu a porta, desceu do veículo e contornou o capô para chegar ao outro lado.

- Vou tentar não demorar muito. Cuide-se bem – disse Dora, após descer o vidro da janela. Ela lançou no ar outro beijo e partiu pela rua, levantando como poeira as folhas secas que caiam das árvores próximas ao meio-fio.

Depois que o carro virou a esquina, Hélder olhou para as próprias mãos, imaginando-as sujas de sangue e pensando no olhar de Marlon, abatido e dopado com a seqüência de tragédias. Contudo, o rapaz conservava uma sutil acidez, um fiapo de agressividade no meio da dor. Hélder custava a acreditar que aquilo era especialmente dirigido a ele. A única coisa que o envolvia com os crimes, por enquanto, era ter passado uma noite na serra com os dois primeiros mortos. Ninguém desconfiava do que realmente estava acontecendo, até onde ele sabia. Não havia nenhum indício forte contra ele, nem nas histórias de Jonas ou nas pegadas das cenas dos crimes. Nada naqueles corpos estava cravado com seu nome.

Ele pegou no ombro e repentinamente sua visão foi como se fosse golpeada por um dos escassos raios de sol que escapavam do mundo cinza escuro acima. Tinha notado um detalhe crucial, uma ausência que se impôs, ameaçando sua paz caso não a tirasse a limpo. O homem lançou um último olhar para a casa de Dirce, um gesto de despedida ou pedido de desculpas, e desceu da calçada, caminhando com as mãos nos bolsos em busca de um táxi.

* * *

O veículo encontrou o ponto de chegada na orla da mata, à beira da estrada. O cliente desceu, pagando e agradecendo pela rapidez, e encarou sua casa enquanto os trovões abafavam o som das rodas do táxi derrapando pela terra durante a partida. Hélder não deu atenção para as nuvens golpeadas pela luz dos relâmpagos ou para as árvores festejando com o vento. Ele tinha olhos apenas para a residência, cuja promessa de respostas era mais urgente que a ameaça de chuva proclamada com vigor pelo céu. A igreja e o padre podiam ajudar a elucidar questões espirituais, mas a trajetória do crime começava bem mais perto dele, e o que podia encontrar a partir daquele ponto poderia mudar tudo.

Quase se amaldiçoando por não ter pensado nisso antes, deu o primeiro passo, destrancou a porta e entrou, começando a procura pela sala de estar. O que procurava não era difícil de identificar: seria uma faca ou algum outro objeto afiado, preferencialmente de metal e sujo de sangue, o sinal de que foi o instrumento usado nas noites de assassinato, noites que ele viveu sem estar em si. Vasculhou entre almofadas do sofá onde acordou, verificando o interior de algodão. Também olhou atrás do quadro, dentro dos vasos da estante e atrás dos móveis. Depois que moveu, tirando e recolocando no lugar, tudo o que conseguiu na sala, ele entrou no corredor, tateando as paredes, e entrou no quarto do casal. Dirigiu-se ao guarda-roupa e vasculhou entre as roupas nos cabides, nas gavetas de cuecas e meias e nas caixas de sapatos.

O escrúpulo pouco o intimidava na hora de desarrumar o que Dora arrumou, mesmo que fosse confundido com um assaltante. Outros termos piores seriam aplicáveis a ele. Parou de fuçar por tecidos e suspirou. Ele não esconderia nada naquele lugar sem que sua mulher descobrisse antes. Deu uma derradeira olhada nas malas em cima do guarda-roupa e foi bisbilhotar em baixo do colchão da cama, no criado-mudo, em baixo da cômoda e até nas cortinas da janela. Sem encontrar nada, saiu e partiu para lugares menos óbvios. Conferiu o segundo quarto, com apenas uma cama e caixas que tinham sobrado da reforma e mudança de móveis, e seguiu para o banheiro, tomando o cuidado de examinar o interior do ralo. Não encontrando nenhuma prova criminal no encanamento, saiu e foi à cozinha. Certamente havia facas lá. Ele abriu a gaveta de talheres e olhou tudo, levantando o que encontrou de pontiagudo, de garfos a cutelos.

Hélder se imaginou chegando com alguma daquelas peças, a morte e a madrugada atrás dele, suas pegadas cheirando a sangue. Virou-se para a pia. Sendo capaz de sair de casa para matar, inclusive deixando a própria mulher desacordada, não seria surpreendente se também apagasse os rastros. Talvez tivesse lavado alguma daquelas facas na torneira, apagando as manchas vermelhas. A busca por provas devia acabar ali. Ele recolocou uma faca na gaveta, fechou-a e simulou um soco não muito forte no armário. Recusava-se a acreditar que não havia deixado nada escapar, precisava encontrar alguma coisa. Precisava aplacar a dúvida.

Pensar em manchas o fez ir ao encontro do cesto de roupa suja. Estava praticamente vazio, com apenas uma roupa que Dora tinha usado no dia anterior. Roupas suas molhadas, postas para secar, também não seriam de grande valia. Deu a volta e caminhou para a cozinha, saindo para o quintal e se dirigindo para o cesto de lixo. Chegou a abri-lo, mas não fuçou pela sujeira. Nem sabia mais o que estava procurando exatamente.

Ele andou para o fundo do quintal e se encostou a um tronco, exausto. Folhas das copas das árvores farfalhavam com entusiasmo, algumas caindo como primícias da chuva que estava por vir, espalhando-se entre os múltiplos troncos. A mata lembrava um labirinto de incertezas, um reflexo do que ele estava se tornando. Não tinha encontrado provas e permanecia um estranho, alguém que ele não sabia o que iria fazer no momento – ou na noite – seguinte. Teve até vontade de perguntar à Dora se algum dia ela sonhou em se casar com uma incógnita.

Não deixou de se lembrar do pesadelo da última noite, quando acordou naquele mesmo quintal. Estava diante da trilha dos ossos e viu os corpos de suas vítimas, depois veio a enxurrada de sangue que o levou para o nada. Na ocasião real, não perdeu a vida, mas se perdeu de si mesmo, se separou do domínio do próprio espírito e precisava se encontrar novamente.

Hélder se deu conta de que estava caminhando entre as árvores, entrando na porta da cozinha e se dirigindo à sala com certa presteza. Saiu pela porta da frente e parou, querendo saber para onde seu inconsciente o queria levar. Ele olhou ao redor e viu a serra, a magnitude dela em uma estranha harmonia com a tormenta celeste. Precisava se encontrar e não havia jeito melhor de fazer isso que indo ao lugar onde se perdeu.

As montanhas ecoavam gravemente os trovões. Pareciam gargalhar, perguntando-se umas às outras se ele teria coragem de fazer o que estava pensando. Hélder as fitou com dureza cristalina revestindo a íris de seus olhos. Não era o orgulho de um aspirante a aventureiro desafiado que regava a determinação que crescia dentro dele; era o compromisso de um homem que amava uma mulher e que por ela enfrentaria demônios. Perfeitamente ciente de seus atos, ele voltou para dentro e foi ao segundo quarto. Procurou entre as caixas e encontrou uma mochila. Abrindo-a, encontrou uma corda e um “piolet”, um instrumento parecido com uma pequena picareta usado em escaladas de costas montanhosas – geralmente revestidas de gelo.

O objeto possuía duas pontas afiadas, nenhuma estava suja de sangue e o formato não correspondia aos cortes finos e profundos encontrados nos corpos das vítimas. Mas não era para perfurar carne humana que ele usaria. Tinha enviado poucos acessórios de alpinismo para a casa nova antes do casamento e deveria contar apenas com aqueles. Ele pôs a mochila nas costas, deixou o quarto e trancou a porta da frente ao sair. Caminhou através do jardim e firmou os sapatos na terra da estrada que seguia indefinidamente na direção em que tinha ido procurar por Ruivinho.

A caminhada que se anunciava não seria das mais curtas, mas se tinha saído à noite para assassinatos em série, devia também conseguir andar para algo que trouxesse benefícios. Cada pé avançava e retrocedia coordenadamente em um diálogo de movimentos que impulsionava o alpinista para seu objetivo. Pensou se não seria melhor deixar para a noite, contudo, a escuridão era perigosa e podia piorar bastante com a chuva. Estando com a cerimônia marcada para o dia seguinte, precisava adiantar a escalada do barranco do desmoronamento e enfrentar logo o vale dos ossos.

A marcha deixava dores nas panturrilhas e nas coxas, ainda que não afetasse muito o ritmo dos passos. A terra estava mais seca que quando estava com o carro, lutando para não atolar a cada metro avançado, e a firmeza e estabilidade do solo deu esperanças de chegar antes do crepúsculo. Por enquanto, somente a distância representava um grande obstáculo. A estrada estava deserta e não havia nenhum rebanho passando de um lado para o outro. Ele não encontraria uma carona, porém, tampouco encontraria uma testemunha de sua presença. Marlon havia falado que os homicídios tinham afugentado as pessoas das terras dos Queiroz, e talvez isso fosse uma garantia de poder vagar como um fantasma apressado pela paisagem bucólica.

Hélder chegou às cercas e seguiu pela estrada, suor molhando o rosto e fazendo aparecer manchas nas axilas e costas, por mais que a brisa fria que precede o sereno estivesse terminando de varrer o clima abafado. O portão não dava sinais de estar por perto e ele já olhava para cima, esperando alguma gota cair na língua esticada para fora da boca. A expectativa de uma chuva intensa era tanta que havia esquecido o cantil, supondo que água não seria problema. Ou simplesmente estivesse com a cabeça cheia demais para pensar em todos os detalhes.

O caminhante fixou o olhar para frente, visualizando mentalmente o barranco que deveria existir no lugar da entrada por onde passou com os dois irmãos, e continuou sua excursão particular. Com bufos de determinação, avistou o portão e se apressou. Estava trancado, com correntes abraçando a madeira no centro. O alpinista olhou para os lados e escalou as tábuas, pulando para o outro lado em seguida. Recuperou-se da queda, se levantando, e seguiu em uma direção diferente de quando seguiu Marlon até os estábulos.

A serra não seria um mau ponto de referência para refazer o caminho da primeira vez para a zona alagada. Ele se imaginou novamente na caminhonete, em companhia de Raimundo e Jonas. Durante a viagem, ambos ainda não sabiam que ele estava ligado aos Sampaio, e já havia uma atmosfera desagradável entre os três, fazendo-o olhar para baixo, fingindo distração.

Hélder olhou para frente, lembrando que não estava mais com os dois irmãos, e se decepcionou por não ver a linha d’água marcando o horizonte. Estava caminhando há mais de duas horas e nada de chegar à enchente. A demora começava a fazer despontar dores nos pés e lufadas de arrependimento. “Preciso subir nessa montanha”, ele repetia. “Preciso visitar aquele lugar de novo”. O senso de necessidade o impelia, mesmo com a inclinação do terreno o fazendo desacelerar. Apesar da impossibilidade da empreitada se desenhar mais clara que os raios nas nuvens, ele forçava o fôlego na caminhada, se deslocando como um ponto perdido cortando o verde acinzentado.

As elevações rochosas continuavam indiferentes aos desejos dele, observando as sombras se condensarem a ponto de parecerem sólidas, palpáveis, como um líquido escuro no qual o homem estivesse mergulhado, exigindo dele mais esforço para avançar. Hélder se jogava para frente, usando o próprio peso para se deslocar, já que suas forças pouco serviam para esse propósito. Músculos das pernas latejavam, gritando o engano que foi se jogar naquelas terras em busca de uma fenda entre as montanhas.

As primeiras gotas caíram antes que escurecesse completamente, fazendo coro às reclamações do corpo esgotado de Hélder. Não demorou mais que um minuto para uma pancada de chuva vir e lançar por terra as esperanças e todo o resto do alpinista. Ele deu mais cinco passos e escorregou por um declive, se livrando da lama e de ferimentos pela grama viscosa que amorteceu a queda. Mas hematomas não seria o principal problema. Ele permaneceu de joelhos, o rosto inclinado para o solo como se o peso da roupa molhada empurrasse tudo para baixo, inclusive sua alma. Levantou o olhar e percebeu que pouco via o contorno da serra. Tinha perdido a baliza de sua orientação e muito de sua dignidade.

- Feliz por me vencer? – perguntou para as silhuetas altas, provando da chuva com a água que escorria em abundância pela face. Tinha o gosto frio de melancolia e solidão. – Estou onde queria? – A indagação saiu mais alta que a anterior. Em todas as escaladas, desde que subiu o primeiro muro, na infância, nunca chegou a conversar com o morro, a montanha, ou qualquer coisa que planejasse subir, nem tinha saído à procura de um punhado de esqueletos de animais, achando que poderia resolver algum problema. De fato, o que eram arranhões e cortes se comparados à sua perturbação interior? Ele se perguntou se o motivo do demônio o resgatar do abraço do rio fosse poder vê-lo morrer mais lentamente depois daquela queda, poder vê-lo desabando a partir de dentro em um simulacro de vida. Afinal, a que distância estava da morte?

Um ronco alquebrado, lutando contra as pancadas de chuva, veio como resposta. Hélder olhou o horizonte e viu dois olhos luminosos o olhando, reconhecendo sua dor. O homem no chão se apoiou nos joelhos, deixando o dorso ereto, e recebeu de braços abertos a aproximação daquele corpo grande de estampidos que derrapou na terra encharcada e parou exatamente do lado dele.

- Boa noite, moço. – Um homem calvo pôs a cabeça para fora da janela do caminhão e olhou para baixo. – Está perdido?

- Não. – Hélder se levantou, falando mais alto devido ao barulho da chuva. – Estava procurando uma coisa e escorreguei.

- Encontrou?

- Não. E não dá mais para procurar agora. Não com esse tempo.

- Não é bom ficar debaixo desse temporal, principalmente aqui. Não soube do assassino?

- Sim, eu soube.

- Suba! – pediu o caminhoneiro. – Posso dar uma carona.

O alpinista deu a volta, abriu a porta do veículo e fez um esforço para se elevar e entrar na cabine alta. Ele tirou a mochila e se sentou no banco, inteiramente molhado.

- Não tenho visto muitas pessoas por estas bandas nos últimos dias, a não ser um ou outro trabalhador como eu. Ter que carregar carga perecível é assim. E policiais também. – O motorista partiu pelo terreno, os solavancos do caminhão mais parecendo mergulhos no véu de infindáveis gotas de água reveladas pelos feixes de luz dos faróis. – Eles fazem varreduras pela fazenda em busca de pistas e do assassino. Há quem diga que ele ainda ronda por aqui, sabe? Eu, pessoalmente, não acredito muito. Seja quem for, sabia o que queria, e já vi o suficiente para dizer que ele só mirava a raça dos Queiroz. O porquê eu já não posso afirmar, você me entende? – O motorista continuava falando, olhando para frente como se falasse com os enfeites e rosários que balançavam no retrovisor. – Teve coragem de andar a essa hora? – perguntou ele, dessa vez se virando rapidamente para o passageiro abraçado com a mochila.

- Estava claro quando saí de casa – respondeu ele. – Foi escurecendo conforme eu andava.

- Saiu de casa a pé até aqui? Essas terras são grandes.

- Eu queria encontrar logo o que procurava.

- Por que a pressa?

- Digamos que há um casamento marcado para amanhã – disse Hélder, com o tom de quem encerrava o assunto. – É importante que eu vá.

____________

Continua na parte IV.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 09/07/2016
Reeditado em 10/07/2016
Código do texto: T5692710
Classificação de conteúdo: seguro