Minha noiva é um cadáver

Seu Antônio, homem velho e vivido, 65 anos, era o coveiro do povoado de São Jorge da Serra. São Jorge, pois o fundador do povoado era devoto do Santo Guerreiro, e da Serra, por que o povoado encontrava-se no pé da Serra. Sim, sim. O nome era somente “Serra”, se tinha algo mais, não se sabia.

O velho Antônio era um dos moradores mais velhos dali. Assistira sentado em seu tamborete o nascimento e a morte de muitos moradores do povoado. O nascimento, sempre era atribulado, mas a dona Quitéria, parteira de mão boa, jamais tinha perdido uma criança. A morte, sempre constante: mordida de cobra, furo de faca, tiro de pistola, doença, e fome. Aí, aí mesmo, na hora da morte, é que ele entrava dada sua condição de coveiro.

Nos seus anos de plantação de gente na terra, cavou tantas covas que perdeu a conta. Cavou a cova do Zé Francisco, do menino José, da Antoninha, de Joaquim, do Frederico, do Sebastião, do Cristóvão e muitos e mais ainda que não caberiam aqui. A última cova que cavou foi para a filha de dona Quitéria.

A menina estava noiva, radiante com a expectativa do casamento. Então, adoeceu. Seus olhos perderam o brilho e começaram a afundar, as maçãs do rosto, quase sumiram. No final, não lembrava mais aquela menina alegre de outrora. Então, morreu. Foi um desgosto terrível para a mãe; a única filha, morta. Mas quem mais ficou abalado foi o noivo. Pobre coitado, quase que enlouquece. Nos primeiros dias sequer saía de casa tomado pelo luto. Nos próximos dias começou a andar a esmo pelo povoado, sempre recendendo a cachaça e o mais sujo possível. Por fim, passou a falar coisas que pareciam desarticuladas de desprovidas de sentido para as pessoas dali, mas que para ele agora era lei.

“Ela não morreu, ela tá viva!” Dizia isso e saía como um louco, a procurar sua noiva. Depois, passou a fala r outra frase: “Ela quer que eu me junte a ela”. As pessoas não ligavam para aquilo, o julgavam louco. A dor da perda havia retirado seu juízo.

Então um dia, ele não apareceu mais. Não se ouvia as frases absurdas ou sentia o odor de sujeira de muitos dias. Foi quando o Bartolomeu apareceu no povoado dizendo que há uns dias atrás tinha visto o rapaz indo para o cemitério com uma pá nas costas. Foi aquele fuzuê. Corre que ele vai violar o tumulo!

Ligeiro, juntou-se uma turma que correu para o cemitério, a fim de impedir o rapaz. Grande foi sua surpresa quando lá chegaram. A pá, deitada. A terra, fofa. Estourou a discussão. “Ele cavou” “Não cavou” “Ele cavou” “Não cavou”. Por fim, decidiram verificar. O velho Antônio pegou a pá, Bartolomeu arrumou outra.

Freneticamente, as pás golpeavam a terra ainda fofa, indo ao encontro do esquife. O cheiro de terra recendia na tarde, e as testas dos homens estavam coalhadas de gotas de suor que se derramavam por sobre o rosto. Um som de impacto ressoou pelo pequeno cemitério, fazendo, apesar do calor, que todos ali sentissem calafrios. Era o som da pá do velho Antônio que havia colidido com o caixão, sinalizando que agora vinha a parte mais difícil.

Ao içar o esquife, puderam constatar que seu peso era incompatível com o corpo franzino da defunta. Foi com um sentimento de pungente horror que as pessoas ali presentes puderam constatar que, o caixão não tinha sido arrombado ou aberto. No entanto, seu peso evidenciava algo que todos ali sabiam, mas não desejavam confirmar.

Ao abrir o esquife, o velho Antônio, coveiro do povoado quase caiu para trás. Mesmo depois de dois meses, não havia nem cheiro de podre, nada que pudesse denunciar a decomposição daquele corpo. Além disso, a defunta não aparentava seu estado de morte, mas tinha a aparência de quem dorme pela tarde. Como poderia aquilo? Com todo esse tempo o corpo já deveria apresentar sinais de putrefação!

No entanto, devo me conter para não descrever em menores detalhes o estado do corpo, peço desculpas pela minha natureza. Não obstante, não foi propriamente o estado dos corpos que fez a infeliz comitiva gritar e gemer de terror. Sim, meu caro leitor, “corpos”. Pois naquele caixão estava o corpo do noivo também! Aquele que a uma semana atrás dizia com sua voz de lunático: “Ela quer que eu me junte a ela”.