Sobe?

Era tudo a mesma história, afinal: “Amanhã minha atendente entra em contato com o senhor, para fecharmos negócio”; “O prazo poderia ser prorrogado por mais alguns meses, Dr. Miles?” Sebastian sabia todas as falas de toda aquela encenação e estava farto dela, mas seu status como o “Homem Mais Versátil (e influente) do Universo (atrás somente de Babe Ruth)” – status, este, publicado pela maior revista de negócios empresariais do continente – precisava ser mantido a qualquer custo, e ele também sabia disso.

Olhando através do espelho de seu carro esportivo, Sebá só conseguia pensar em atendentes, prazos e astros de beisebol, esporte favorito de seu falecido pai. Contudo, a paixão influenciada pelo velho Sr. Miles, que Sebastian nutrira desde criança, parecera desaparecer sem aviso prévio e ele não acompanhava um jogo dos Red Sox havia um bom tempo.

A chuva batia no vidro da janela e produzia um barulho assustador. As memórias não saíam da cabeça de Sebastian. Memórias da infância pobre, de sua mãe sendo assassinada na frente do marido e dos filhos. Memórias más. Naquele momento, enquanto saboreava uma generosa barra de chocolate belga, Sebastian queria afogar-se em esquecimento e em sua banheira. Mas o beisebol parecia não sair de sua cabeça. A final entre Cubs e Red Sox, em 1918, para ser mais específico. O dia em que Babe Ruth rebateu a bola para fora do estádio e começava a criar a lenda de seu nome.

Apesar de parecer velho, Sebastian ainda não havia chegado na meia idade e já era dono de uma das maiores corretoras do continente americano, estendendo sua influência para a Europa e Ásia, inclusive. Era o famoso ramo da “Terra de ninguém”, resumido a competitividade, trapaça, drogas e muito, mas muito dinheiro. Não era fácil ser dono de uma empresa deste porte, sabendo que não se podia confiar nem em si mesmo, mas ele sabia como lidar: a mentira sempre fizera parte de sua personalidade , como uma marca de nascença. “Ora, se eu fosse totalmente sincero com meus funcionários e clientes, não possuiria funcionários e clientes”, Sebastian costumava dizer, geralmente caindo em gargalhada.

O motorista subiu a pequena rampa de acesso ao enorme pátio do condomínio onde Sebá morava e parou.

- Pode me deixar aqui, Tony. Preciso de um pouco de chuva na cabeça pra aliviar o passado. Eu me viro. Não se esqueça, quero você às 07:30h aqui amanhã. Não posso chegar atrasado na reunião com os malditos chineses. – E, dizendo isso, saiu, sem se despedir.

Ele estava cansado e tudo o que mais queria naquele momento era subir para a sua cobertura e, quem sabe, adormecer ouvindo os clássicos LP´s do Elvis que colecionava desde quando tinha 17 anos. O mundo parecia desabar aos poucos, ensopando seu terno e o resto do chocolate belga que estava segurando na mão.

Apalpando os bolsos do paletó, procurou pelas chaves do portão externo. Achou um maço de notas de 100 dólares, porém as malditas chaves, não. Apertou o interfone, esperando que o nada simpático zelador Wally estivesse de prontidão para abrir o portão para o “antipático da cobertura” (os moradores se referiam à Sebastian assim, em suas conversas fúteis de final de tarde), mas não houve resposta. Sebastian aguardou um pouco mais, com a água molhando completamente as suas roupas, mas isso não importava; estava mais próximo de sua banheira e de “A little Less Conversation” do que anteriormente.

Wally não abriu.

- Zelador maldito! Afinal, servem pra quê mesmo?! – Sebastian começava a perder o pouco de paciência que fora herdado de sua mãe.

Olhou para baixo, visando procurar a chave pelos bolsos do paletó novamente, quando a encontrou estirada no chão, ensopada. Estava claro que aquele dia não era seu dia de sorte. Mas, como ele era cético e, por consequência, nem um pouco supersticioso, respirou fundo, apanhou as chaves e abriu o portão.

Correndo, inutilmente, pois suas roupas já estavam domadas pela água, foi até o biombo central, onde ficava a sala de Wally.

- Porra,Wally, não viu que eu est...

Sebastian cessou a fala bruscamente, fazendo uma cara de desaprovação. Wally não ia responder. Estava deitado sobre a mesa, desacordado. Ao lado de sua cabeça, uma revista com a foto de Sebastian na capa; no monitor de segurança – aonde ficavam as imagens de todas as câmeras do edifício – tudo corria bem, exceto pela câmera do elevador, que parecia ter quebrado; na televisão acima da bancada, a edição diária do jornal esportivo, contando todos os detalhes da World Series daquela temporada entre Red Sox e Chicago Cubs, que iria começar em dois dias.

- Ah, descobri para quê servem... dormir no trabalho. Há! Que original! – e, virando-se de costas, dirigiu-se para os elevadores. Nem percebeu a poça de sangue no chão. Provavelmente porque estava ansioso pelo início da World Series.

O barulho da incessante chuva estava ensurdecedor. Sebastian não conseguia tirar da cabeça a rebatida que dera a vitória aos Red Sox, executada com perfeição pelo mestre Babe Ruth. Seu pai lhe contara, mais de uma vez, por sinal, que estava ouvindo o jogo no precário rádio da época, quando Babe fez o impossível. Dizia que presenciou o toque de Deus na Terra.

- “Sabe o que é o mais interessante dessa rebatida do Ruth, filho?” – dissera seu pai, certa vez, com a velha camisa mofada dos Red Sox em punho, cheirando a mofo.

O então pequeno mal-agradecido Sebastian não havia respondido. Tolo. Ele sempre soube.

- “O giro de seu corpo é perfeito, o timing da jogada, a leitura da posição da bola lançada. Ah! Essa rebatida deveria ser estudada por muitos pé-rapados que acham que jogam beisebol hoje em dia.” – A risada que seu pai dera depois dessa clássica frase, Sebastian jamais esqueceu. Porém, ele discordava. Sabia que havia algo curioso na bola rebatida por Babe, mas não achava que esse fosse o aspecto mais interessante. Até aquele dia, desde quando seu pai lhe contou sobre o fato, Sebastian não sabia dizer qual era a tal curiosidade.

Na porta do elevador social, apertou o botão para chamá-lo. Afagou os olhos por um instante, pois achou que seus olhos estavam vendo coisas demais. Sebastian leu “DOWN” no painel numérico digital informativo do andar. Ao piscar os olhos com força, voltou a respirar aliviado. O painel marcava “2”.

Quando as portas de metal se abriram, Sebastian foi cordial ao cumprimentar o velho Sr. Quint, que trabalhava como um “guardião do elevador”, como chamavam os meninos de 12 anos do condomínio.

- Boa noite, Sr.Qui ...

Seu pensamento estava longe. Provavelmente estava pensando em qual estádio seria o primeiro jogo da World Series. Mas ele não gostava mais de beisebol. Espantou-se ao ver que o elevador estava sob uma penumbra assustadora, fazendo que o reflexo de sua imagem no espelho do fundo parecesse uma aparição demoníaca.

Não foi a única coisa que o chamou a atenção. O “guardião” não era o Sr. Quint, mas um outro homem velho, robusto e de feição austera, não dava para identificar muito bem na penumbra. Porém, quando deu por si, Sebá já estava no elevador, com a escuridão parcial ao seu redor. O velho foi o primeiro a quebrar o silêncio criado por Sebastian.

- Boa noite, Sr.Miles. O velho Sr. Quint não trabalha mais aqui. Sobe?

Sebastian sentiu um frio na espinha. Não sabia descrever do quê, exatamente. Como o velho sabia seu nome? E como o velho Quint não trabalhava mais ali, local onde trabalhou por mais de 35 anos? Mesmo assim, a minúscula parte de sua personalidade que se chamava “educação” falou mais alto naquele instante.

- Boa noite. Ah, me perdoe! Força do hábito. Por que o velho Quint não trabalha mais aqui? Ontem mesmo o vi aqui, sentado nesse mesmo banco onde o senhor está. Ah, e a propósito, sobe. Cobertura. Não pretendo malhar no subsolo nesse momento. Quero subir. Sempre subir. – Gargalhou baixinho. Não sabia se o velho “cara amarrada” possuía o mesmo bom humor que ele.

O velho não demonstrou nenhum sinal de que achou engraçada a piada de Sebastian, mas prosseguiu.

- Não tenho mais informações dele. Uma pena. Parecia ser um bom homem. – E, apertando o último botão – “o botão mais valioso”, como Sebastian chamava quando brincava consigo mesmo – as pesadas portas de metal se fecharam, fazendo o barulho ensurdecedor da chuva diminuir lentamente como o desligar da turbina de um Boeing.

- Oh, o velho era bom. Não tenho o hábito de conversar muito com as pessoas daqui, mas o velho Quint era uma figura. – Ainda mantinha o sorriso no rosto. Com o fechar das portas, o sorriso desapareceu. – Ah, e essa penumbra toda por aqui? Como o senhor consegue trabalhar?

A visão era rarefeita, mas a silhueta do velho era visível. Além do mais, o painel luminoso do elevador introduzia um pouco mais de luz ao ambiente.

Com a voz rouca, o velho zelador prosseguiu:

- Problemas na parte elétrica, Sr. Miles, não ficou sabendo? Foi informado ontem que o elevador poderia até paralisar por completo hoje. É um milagre que esteja subindo. – O velho soltou um riso alto, porém abafado. Tossiu pouco depois.

O BARULHO DOS FIOS DE AÇO SENDO IÇADOS só era interrompido pelo barulho do rádio do velho. Sebastian não tinha notado que o zelador estava ouvindo uma estação bem baixinho. Apurou os ouvidos para ouvir o que se passava. Não era uma estação musical qualquer. Parecia mais uma narração esportiva dos anos 50, se fosse levar em conta a péssima qualidade de áudio. E, tão conhecida por Sebastian, a narração só poderia se tratar de um jogo de beisebol.

- Gosta de beisebol, Sr. Miles?

O velho quebrou o silêncio de forma rústica, com sua voz grave.

- Já gostei. Não acompanho os Red Sox há um bom tempo. Sei lá, parece que não vejo mais graça.

- Ah, beisebol é minha paixão. – O velho direcionava seu olhar para a porta, não para Sebastian. – Os Red Sox irão vencer os Cubs depois de amanhã, escreve só.

Sebastian não deixou de notar que a penumbra inicial na qual o elevador estava submetido, agora parecia ter aumentado. Com muito esforço conseguia ver seu reflexo no enorme espelho. O velho “guardião” se resumia a um borrão preto e vermelho. Ou será que tudo era ilusão, um produto de sua mente cansada? Talvez, pensava ele. A cada minuto que passava, Sebá ficava mais perto de sua banheira, e mais tentado a ver o primeiro jogo das finais, dentro de dois dias.

Um minuto e meio havia se passado, sem que ele chegasse ao seu andar de destino. Havia algo errado naquele elevador.

- Com licença, senhor. – Sebastian interrompeu o silêncio que, mais uma vez, ele iniciara. – O que está acontecendo? Não era pra termos chegado à cobertura? Está demorando demais.

O velho respondeu, sem olhar para a face de Sebastian.

- Oh, Céus, perdoe-me, Sr. Miles. Esqueci de avisá-lo. O elevador está passando por uns ajustes nos cabos, também. A velocidade de subida fica muito comprometida. Isso também foi discutido ontem, tenho certeza que o senhor se lembra. Eu mesmo o vi lá. O senhor irá chegar. Com certeza, vai. – O velho olhou de canto para Sebá, e riu.

Sentiu a pontada na espinha, outra vez. Não havia comparecido à reunião no dia anterior. Ou havia? Curiosamente, não se lembrava o que havia feito no dia de ontem. Não sabia nem o nome do velho, mas não importava. Desde que as portas se abrissem o mais rápido possível.

- “... ELE NÃO PODE ERRAR ESSA. O ESTÁDIO TODO FICA DE PÉ. O destino dos Red Sox no taco de Ruth. O arremessador West não pensa dessa maneira. West toma posição. Olha no fundo dos olhos de Ruth. Lança a bola e...”.

Sebastian engoliu a seco quando ouviu a narração vinda do rádio do velho. O suor caía de sua testa e se misturava à poça de água que estava no chão, abaixo de suas pernas. A vontade de ir ao banheiro era tremenda. Não era possível. Não poderia ser.

O velho falou, dessa vez com uma voz mais grossa.

- Não gosta mesmo de beisebol, Sr. Miles?

Sebastian o cutucou com força nos dedos.

- Que tipo de brincadeira é essa?! Ein?! Que jogo é esse que você está ouvindo?

- Ora, o senhor conhece. Esse é o último jogo da World Series de 1918. Red Sox versus Cubs. Escute só. – E apontando para o rádio, Sebastian ouviu o que já sabia que ia acontecer.

“ Hooooome Ruuuuunn. Babe Ruth rebate para fora do estádio, senhoras e senhores. Que jogada fantástica. É o título dos Red Sox contra o tão poderoso Chicago Cubs...”

Subitamente, as pesadas portas se abriram, porém, não abriram para a cobertura de Sebastian. As luzes do elevador se acenderam, mas a cor que emanava do teto não era branca como a luz. Era vermelha, como a rosa. O que pairava além da soleira do elevador era concreto e tijolo assentado. O tijolo era de cor viva. Vermelho. Como o sangue. O nome de Sebastian estava escrito entre as camadas de cimento.

Naquele momento, Sebá não conseguiu controlar a vontade de mijar.

O velho começou a rir, sem parar, alto. O rádio havia cessado e a narração daquele maldito jogo já não afetava a mente de Sebastian. O zelador começou a aplaudir,ainda sentado, e encarando a parede. A risada se tornou mais alta, assustadoramente alta.

Então, lentamente, o velho começou a virar-se na cadeira, a risada cessando, devagar. Sua face havia se tornado quente, sombria e deformada. Seus dentes afiados saíam da boca. O cavanhaque se tornou cinza e os chifres brotaram como sementes em um solo fértil. O fedor de decomposição tomou conta do elevador.

- É o fim da linha pra você, Miles. Chegou a hora. – A voz era grossa e alta, exatamente como as distorções tanto usadas no cinema. – Depois de tanto subir, é hora de descer.

A criatura gargalhou alto. Tão alto que o espelho atrás de Sebastian se partiu. Seu sangue gelou. Sua calça, agora mais quente, acusava a tremedeira das pernas. O chocolate belga que havia comido voltou rapidamente pela sua garganta.

As pesadas portas se fecharam mais uma vez. O rádio voltou a ligar e começou a tocar um coro de gritos infernais. Incessantes. Angustiantes. A trilha sonora do inferno. A velocidade de descida era muito mais sentida. A gravidade já não existia mais: fazia parte somente do mundo dos vivos.

A última coisa que Sebastian se lembrou foi da maldita rebatida de Ruth contra os Cubs. Naquele exato momento, descobriu a curiosidade do feito histórico de Babe. O aspecto mais interessante sobre a rebatida é que a bola viajou centenas de metros e caiu para fora do estádio. Mas caiu. Ela sempre cai. Afinal, tudo que sobe, tem que cair, e Sebastian sabia disso.

Adônis Froener
Enviado por Adônis Froener em 25/07/2016
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