Liberdade

Sujeira, podridão, invasão.

Sua alma, mais que seu corpo, tinha sido violada, atacada, ferida, machucada.

De cada toque podia se lembrar. O cheiro pútrido de suor. Mesmo agora, sentada em sua cama, depois de um banho demorado em água quente, quase fervendo, que quase lhe esfolou a pele, ela podia sentir.

A respiração. Ainda ouvia o barulho perto de seus ouvidos, ofegante. O gozo e prazer sentido no ato, no canto de uma rua qualquer.

As janelas do quarto estavam fechadas. A luz da lua lhe feria os olhos, pois era o único lugar onde pôde manter o contato visual. Nem mesmo toda aquela luz foi capaz de lhe salvar.

Ela agora mantinha os olhos focados no fogo que crepitava em sua lixeira. Suas roupas - rasgadas e sujas do esgoto que havia na rua, onde fora largada, abusada, ferida, insuficiente, impotente, ao nada – queimavam ali dentro. Uma tentativa infértil de se desfazer daquela lembrança horrível.

A ela só restava ficar ali, recolhida em seu quarto. Não sentia mais vontade de nada. Sua inocência havia sido roubada. Sua pureza tinha sido violada. Sem permissão. Sem carinho. Sua alma fora tomada e levada para onde nunca seria devolvida.

O que era a vida? Ela não sabia. Tinha morrido no momento em que fora abordada por aquele homem. Ele a seguira, a encurralara, a deixara sem saída. Não havia pra onde correr. Não havia como fugir. Não havia como lutar, mesmo tendo tentado.

Ela sentiu a única lágrima escorrer no momento em que ele a abusara. A única. Pode ver ali sua alma sendo levada para junto da água de esgoto que escorria pela rua. Virara nada. Apenas uma estatística. Sua dor era interna. Sua dor era por ela e por todas que já passaram e passariam por aquilo.

Voltara para casa, mas não lembrava como havia chegado lá. Vagamente sabia que suas pernas conheciam o caminho de casa. Provavelmente achara que ali iria encontrar algum conforto. Sua casa, seu quarto, sua cama, seus lençóis. Nada. Ela entendia a definição de zumbi agora e deseja que fosse como nos filmes. A realidade era bem pior.

Ela estava morta. Sem dignidade. E apesar de tudo ainda vivia.

Ela caminhou até o banheiro, e pegou a gilete do pai. Sentada no quarto, em sua cama, sabia o que devia fazer para se limpar. Como esvaziar o corpo de todo sofrimento.

Fez o primeiro traço no braço esquerdo. Sentiu o sangue quente brotar. Foi a primeira sensação de conforto que sentiu. Fez o segundo, o terceiro e os outros tantos. Fez no outro braço também. A cada corte podia sentir o seu corpo sendo lavado com a justiça que lhe cabia. Aquela fora a única decisão que a vida lhe deixara. Não morrer, ela não pensava em morte. Pensava em purificação, em limpeza, em resgate, em salvação.

Até que não pensou em mais nada.

Estava livre.

Camilla T
Enviado por Camilla T em 25/07/2016
Reeditado em 25/07/2016
Código do texto: T5708510
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.