Trinta moedas

‘’(…)

No entanto à noite, se o Hebreu passava,

Um murmúrio de inveja se elevava,

Desde a flor da campina ao colibri.

"Ele não morre", a multidão dizia...

E o precito consigo respondia:

– "Ai! mas nunca vivi!"

Castro Alves ("Ahasverus e o Gênio", in: "Espumas Flutuantes")

Prelúdio

O lusco-fusco lúgubre do Planalto Central refletia no bronze da escultura da Loba Romana, em frente ao Palácio do Buriti, enquanto o governador do Distrito Federal, caminhando de um lado para o outro, ignorava o horizonte infinito revelado através da janela do seu gabinete. A conversa que teria dali a alguns instantes não era nada republicana, mas necessária, diante dos números que as mais recentes pesquisas de intenção de voto apresentavam: a pouco mais de seis meses da eleição para presidente da República, em outubro, ele despontava como favorito.

Era preciso, então, reforçar o caixa da campanha. Acompanhado de seu tesoureiro, o governador observava entrar na sala o presidente da Transparência (Transp), uma das maiores empreiteiras brasileiras, responsável por diversas megalomaníacas – e superfaturadas – obras públicas em todo o país.

Após um breve introito de falsas amenidades, iniciou-se o toma lá dá cá. Desta vez, o conluio dizia respeito a uma série de empreendimentos comerciais nas cidades-satélite do entorno de Brasília. O acerto era simples: o governador garantia o apoio para a rápida autorização das obras na Câmara Distrital, especialmente com a remoção de quaisquer obstáculos relativos às licenças ambientais, e o empresário se comprometia a despejar imediatamente nos cofres da campanha alguns milhões de reais.

Todos satisfeitos, mãos se apertaram, risadas galhofeiras inundaram o recinto, e o trato estava fechado.

Vista assim, como quem observa um quadro, a corrupção até se afigura asséptica. Mas aquele que pudesse perscrutar o que vai dentro desses homens descobriria almas poluídas, que até poderão se evadir da justiça dos homens, nunca da divina. Esse tipo de desvio não escapará impune ao juízo final, quando este chegar. Afinal, quando chegará?

*

Enquanto Ana preparava um sanduíche e um chocolate quente naquela fria manhã de junho, o telefone tocou no pequeno apartamento da Asa Sul da capital federal. Era um ritual que se estabelecera nos últimos vinte anos, o qual, por mais que se repetisse, sempre lhe corroía.

Retirou o aparelho do gancho, levou-o ao ouvido e permaneceu muda.

– Ana, minha filha, você está aí? Parabéns pelo dia de hoje. Estou na...

A voz do outro lado da linha foi abafada antes que pudesse concluir a frase. Ana não queria ouvi-la.

Não queria ter contato com o pai, que, quando ela tinha quinze anos, abandonou a família brasileira para viver com uma amante. Dele, só guardou a mágoa – ainda mais depois que o câncer consumiu sua mãe – e herdou o gosto pelo estudo de outras civilizações. O inglês Steven Carpenter era o mais respeitado egiptólogo vivo. Já sua filha se tornara uma referência entre os antropólogos da América do Sul. Era comum que colegas de outros países a visitassem para intercâmbio na Universidade de Brasília, onde dava expediente.

Apesar da clara opção por cortar qualquer vínculo com o pai, ele sempre ligava no dia do aniversário de Ana. Era o primeiro a telefonar, de manhã cedo. Nessas ocasiões, ela emudecia. Sabia quem era. Arrependia-se por atender. Mas o fato é que as breves palavras pronunciadas por Carpenter mantinham viva a memória de alguém que um dia deveras amou.

Quando Ana acabava de se vestir para sair rumo ao trabalho, o telefone novamente soou. Irritada com a insistência, ensaiou bradar algum desaforo.

– O que você quer de mim, afinal? – gritou.

– Ana? Oi, Ana. Me desculpe ligar tão cedo. Aqui é o Josias. Fui acordado hoje por um primo meu que trabalha na Transp. Me pediram para dar uma olhada num artefato que eles encontraram em Planaltina. Estou aqui agora. Por favor, venha para cá. Só você pode nos dizer do que se trata isso. É inacreditável.

*

Em pouco mais de quarenta minutos, Ana chegou ao local onde estava Josias, seu colega de departamento na universidade. Tratava-se de um canteiro de obras para a construção de um shopping center na região administrativa de Planaltina, nos arredores da capital federal. O rapaz veio ofegante ao seu encontro. Estava lívido, como se tivesse presenciado uma aparição fantasmagórica. O encarregado da empresa acompanhava-o.

– Bom dia – disse o encarregado. – Que bom que atendeu ao nosso chamado. Hoje pela manhã, durante as escavações para começar o nivelamento do terreno, encontramos um objeto muito estranho. Gostaríamos da sua opinião a respeito.

– Muito estranho é o fato de vocês conseguirem uma licença para erguer um prédio nesta área, que séculos atrás foi habitada pela tribo dos xavantes. Aqui é um possível sítio arqueológico. Então, seja lá o que tenham encontrado, deve ser um vestígio deixado pelos indígenas. Vamos lá ver! – retorquiu ironicamente a antropóloga.

Um pouco sem graça, o preposto da empreiteira conduziu Ana até a tenda na qual acondicionaram a descoberta. O que se apresentou aos olhos maravilhados da pesquisadora foi uma pequena arca dourada, que poderia facilmente ser envolvida por um amplexo. Do lado de fora, o artefato continha inscrições hieroglíficas, certamente desconhecidas da população autóctone da antiga aldeia. Se tivesse visto aquele recipiente numa exposição, Ana diria ser uma peça originária do Antigo Egito. A hipótese era absurda, para não dizer impossível.

A antropóloga respirou fundo e perguntou a Josias:

– Alguém já abriu a caixa?

– Não, estávamos esperando você chegar.

Ela puxou, então, a alça da tampa da arca. A peça estava emperrada, mas, com o emprego de um pouco mais de força, cedeu. O que havia dentro elevou o grau de espanto do grupo. Um pacote de pano antiquíssimo, amarrado com barbante que, já apodrecido, foi facilmente roto. Ana despejou o conteúdo sobre a mesa: eram trinta moedas de prata, com feições de antigos césares insculpidas. Mesmo não sendo especialista no assunto, ela tinha pouca dúvida: estava diante de dinheiro que circulou no Império Romano.

Aturdida, questionou o encarregado:

– Para onde vão levar essa arca? Quero dizer, vocês têm que comunicar ao instituto do patrimônio histórico. Depois, talvez, o melhor lugar para ela seja o Museu Nacional, no Rio de Janeiro...

– Faremos isso. Por ora, a diretoria mandou levar para a nossa subsede em Taguatinga. É um prédio com muita segurança. O que você me diz sobre o objeto?

– Nada ainda. Preciso de vinte e quatro horas para uma avaliação – ponderou Ana, enquanto fotografava os detalhes da urna e do pacote de moedas. – Mas necessito de livre acesso a esse material a qualquer hora. Caso contrário, não posso me comprometer com vocês.

– Sem problema – redarguiu o preposto da Transp. – Seu acesso estará liberado.

– De acordo. Volto a entrar em contato – disse a antropóloga.

– Ei, Ana – chamou Josias, antes que ela se despedisse. – Tinha até me esquecido nessa confusão. Meus parabéns. Tudo certo para a comemoração mais tarde?

– Obrigada, Josias. Mas acho que não vai dar. Vou desmarcar com o pessoal. O dia e a noite vão ser longos...

*

Nem bem a pesquisadora chegou ao seu escritório na universidade, acessou a internet e logo percebeu que não fora a única a fotografar a insólita arca de Planaltina. Operários da obra tinham feito o mesmo, e já circulavam vídeos e fotos nas redes sociais. Até o momento, a descoberta era tratada como boato virtual, mas não demoraria para que a imprensa se interessasse pelo caso.

A verdade é que Ana não sabia o que fazer. Aquele artefato, tão estranhamente deslocado no tempo e no espaço, não permitia formular qualquer teoria e desafiava os conhecimentos da respeitada profissional. Como índios brasileiros poderiam ter sob sua guarda objetos do Império Romano e do Antigo Egito, com mais de dois mil anos?

Ela navegava aleatoriamente pela internet quando seus olhos se detiveram no título de uma notícia: “Papa da egiptologia faz palestra em Brasília”. A matéria dava conta de que seu pai, Steven Carpenter, falaria a uma plateia no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, no dia seguinte. O objetivo do colóquio seria dar sequência à turnê do pesquisador inglês pelas Américas – iniciada em Nova Iorque e Cidade do México e que prosseguiria depois por Buenos Aires e Santiago – para apresentar os slides com a digitalização de seu mais recente achado no sítio arqueológico da cidade egípcia de Akhetaton: um livro com inscrições ainda não totalmente decifradas, ao qual se atribuía o poder de abrir portais místicos.

A antropóloga remoeu sua angústia ao longo de toda a tarde. Era como se tivesse entrado em um vórtice de emoções confusas, que sempre a jogava de volta ao mesmo ponto. Não sabia como resolver o enigma da arca e das moedas, não podia falar com o pai, mas só ele poderia ajudá-la. Afundou nesse silogismo de premissas imperfeitas e dele só conseguiu escapar quando reescreveu as linhas: não tinha a solução para o mistério, só o pai poderia socorrê-la, logo, precisava procurá-lo. Passou a pesquisar em que hotel ele estava hospedado.

*

O circunspecto Steven Carpenter repousava os olhos negros e os óculos de aro grosso sobre um informativo a respeito de Brasília enquanto sorvia uma dose de uísque no bar do hotel, quase ao cair da tarde. No banco ao lado, reparou na presença de um provecto senhor, de cabelos espessos e um pouco desalinhados, com barba volumosa. O aspecto hirsuto contrastava com o terno elegante que vestia. Usava, ainda, uma comprida bengala prateada. Talvez tivesse uns oitenta anos. A antítese entre o velho e o novo se completava com o celular moderno que o idoso dedilhava à procura de notícias na internet.

Perto deles, uma senhorinha também assaz anosa tropeçou num degrau. Dois jovens que vinham atrás ignoraram – ou fingiram ignorar – o incidente e passaram direto. Um empregado do hotel ajudou-a a se levantar.

– Mal sabem esses jovens que tudo o que se faz fica plasmado na sua trajetória. A vida é como um grande processo. Pagaremos todos pelas nossas decisões no grande tribunal. E ele há de chegar, para lavar da terra os ímpios, os corruptos – comentou o velho com Carpenter.

Desconfortável com o tom religioso da observação do interlocutor, o egiptólogo agnóstico tentou ser cortês, ao mesmo tempo que redirecionava a conversa.

– Nunca é demais lembrar que em Brasília não é de bom tom falar em corrupção – gracejou. – O senhor tem um sotaque estrangeiro. Não é daqui, certo?

– Certamente que não, meu senhor. Sou judeu, de uma terra bem distante. Ora, mas também não és desta terra brasileira, estou com a razão? Parece-me que teu sotaque é da ilha da Bretanha.

– Bretanha? – sorriu Carpenter. – Sim, sim. Está certo. Sou inglês.

– E o que fazes aqui? – perguntou incisivamente o judeu.

– Bem, deixe que eu me apresente. Sou Steven Carpenter, egiptólogo. Amanhã vou proferir uma palestra nesta cidade.

– Sim, estou sabendo, senhor Carpenter. Que coincidência encontrar-te aqui. Aliás, muito me interessa o assunto de tua palestra. Quem sabe eu não vá assistir? Ah, claro, desculpa-me. Meu nome é Giovanni Ver Ash.

– Prazer, senhor Ash. Mas me diga: quando chegou?

– Há poucos instantes.

– E o voo, como estava?

– O voo? Ah, a mim me pareceu um piscar de olhos.

– O que o traz aqui?

– Negócios, meu senhor. Tenho negócios importantíssimos cá.

Nisso, tocou o telefone celular de Carpenter, que pediu licença ao velho e pouco depois já não o notou mais, como se nem tivesse estado ali.

Falavam do Egito. Sucedera um infortúnio. O livro descoberto pelo egiptólogo fora furtado havia duas horas do escritório de Akhetaton. Tentaram contato antes, mas o aparelho estava fora de área. A polícia egípcia estava investigando, porém não foram encontrados vestígios do malfeitor. O caso já estava sendo tratado como de alta complexidade.

A ligação alarmou o estado de espírito do estudioso. Tratava aquela como a descoberta do século. O que faria agora, caso não recuperassem os manuscritos, e... Seus pensamentos foram interrompidos novamente quando o recepcionista do hotel chamou-o para atender outro telefonema. Era Ana. Por um momento, deixou de lado as perturbações causadas pelo desparecimento do livro. Havia vinte anos não ouvia a voz da filha.

*

A campainha tocou no apartamento de Ana. O olho mágico revelava a ansiedade convexa do seu pai. Ela abriu a porta. Ficaram uns dois minutos se olhando, sem dizer palavra. Carpenter rompeu o silêncio.

– Você está tão bonita. Não mudou quase nada – disse. Tentou acariciar os longos cabelos da filha, que se afastou para rechaçar o afago.

– Estamos aqui por uma questão profissional. Essa é a condição – impôs-se Ana, com a voz embargada, de costas para o pai.

– Tudo bem – assentiu o egiptólogo.

Passaram, então, aos trabalhos. Ana explicou o achado na obra em Planaltina e ilustrou a narrativa com as fotos que havia tirado. Carpenter ouvia e via tudo estupefato. Às vezes, se distraía admirando os traços da filha, que o tempo não apagou da sua memória, mas obrigava-a agora a redesenhá-los. A urgência do assunto, no entanto, logo o trazia de volta à concentração.

– Então, o que pensa sobre isso? – indagou Ana.

– O que você pensa? – quis saber o pai.

– Não tenho a mínima ideia. Por isso o chamei aqui.

– O.k. É, de fato, algo espantoso. Temos dois objetos de origens distintas. Primeiro, a arca. Eis a minha hipótese: ela é de origem egípcia.

– Mas como? – agitou-se Ana. – Não faz nenhum sentido. A menos que os colonizadores portugueses a tivessem entregado aos índios. Mas por que lhes dariam uma peça de ouro? E esses índios, de todo modo, foram o de contato mais tardio com os europeus. Em geral, não eram aliados, mas inimigos.

– Não fazia sentido. Talvez agora faça. Descobri no Egito o livro manuscrito que, diz a lenda, é capaz de abrir portais místicos. Você nunca ouviu falar que o Planalto Central, bem onde nós estamos, é um lugar de potentes energias cósmicas? E que as pirâmides construídas em diversas partes do globo são como pontos de conexão que permitiriam o teletransporte?

– Desde quando você dá ouvidos a essas crendices?

– Só estou teorizando. Digamos que alguém, em algum momento da história, abriu um portal místico em Akhetaton e se transportou para o que hoje é Brasília. Nesse caso, essas pessoas poderiam ter deixado a arca sob a guarda dos índios.

– Está bem. Vou embarcar na sua viagem. E as moedas?

– As moedas me fazem ser um pouco mais criativo. Eu tenho uma certeza quanto a elas. Trata-se de dinheiro do início da era cristã. Lembre-se de que por essa época o Egito era uma província recém-anexada pelo Império Romano. Mas essas trinta moedas vieram um pouco de mais longe. Só depois devem ter chegado ao Egito. Não ria. Essas trinta medalhas de prata só podem ter sido o pagamento recebido por Judas Iscariotes para trair o nazareno.

– Como é? – gargalhou Ana. – Você está ficando senil.

O riso foi diminuindo de volume à medida que a filha percebia a feição sisuda do pai, até desaparecer.

– Há no Oriente Médio uma lenda segundo a qual as moedas de Judas teriam sido recuperadas por uma seita cujos membros se denominavam numismatas. Acreditava-se que apenas mediante a entrega desse dinheiro os quatro cavaleiros do apocalipse – peste, guerra, fome e morte – fariam o seu serviço, ou seja, dariam início à dizimação da espécie humana, o que seria a senha para o fim dos tempos.

– O juízo final?

– Isso. Então, os numismatas se tornaram guardiões das moedas, até que um comando divino indicasse quando elas deveriam ser usadas.

– Entendi. É como se fosse uma espécie de poupança do Judas Iscariotes. No fim dos tempos, ele resgata o dinheiro com juros e correção – zombou a antropóloga.

– Não deboche. Estou aqui para ajudá-la.

– Está bem. Vamos formular melhor, então, sua hipótese. Os numismatas guardaram as moedas. Tempos depois, transportaram-nas para o Egito, onde foram colocadas na arca e trazidas, através de um portal, para o Brasil pré-colonial e deixadas sob os cuidados dos xavantes. É isso?

– Uma possibilidade. Não devemos nos esquecer de que o Velho Mundo passava por tempos de muita convulsão. Aqui, talvez, fosse um lugar mais seguro – conjecturou Carpenter, que estancou repentinamente, ao lembrar-se de algo importante.

– O que foi? – quis saber a filha.

– Não pode ser coincidência. Hoje, o livro místico foi furtado. No mesmo dia, encontraram as moedas. Alguém está atrás delas. Onde estão guardadas?

*

Como o encarregado da Transp prometera a Ana, foi-lhe franqueado acesso aos artefatos, mesmo no horário da noite. Antes, porém, ela e o pai deveriam passar por uma triagem com o chefe da segurança da subsede de Taguatinga. Enquanto aguardavam numa antessala na qual podiam ver as câmeras de todos os andares, o guarda do período noturno repetia:

– O chefe já vai recebê-los. É que ele está atendendo uma pessoa que chegou antes. Mas não demora.

– Há mais alguém querendo ver a arca? – perguntou Ana.

– Sim, é... – ia respondendo o guarda, quando foi interrompido pelo soar do interfone. – Pronto, chefe. Ah, sim, estou subindo. Me desculpem, vou ter que ir até a sala da chefia, no quarto andar – disse, chamando o elevador. – Mas que droga! Não está funcionando. Vou de escada. Já volto.

Ansiosos, Ana e Carpenter conversavam, ao mesmo tempo que observavam o sistema de câmeras. Viram quando o guarda entrou na sala do chefe, no quarto andar. Menos de dois minutos depois, abriu-se a porta. Carpenter não podia acreditar. Saía lá de dentro, sozinho, com o andar escorado pela bengala prateada, o mesmo idoso com quem conversara no hotel. Ele tomou a direção das escadas. Ia para o quinto andar, onde estava a arca.

– O que significa isso? – inquietou-se o egiptólogo.

– Você conhece esse homem? – perguntou Ana. E logo puxou o braço do pai, precipitando-se em direção às escadas. – Vamos até lá.

– Um momento – conteve-a Carpenter. – Posso estar louco, mas o mundo é um lugar insano. Esse velho... Imagino quem seja. Ele é o judeu errante.

– Hã?! – atordoou-se a antropóloga.

– Contei apenas parte da lenda dos numismatas a você. A parte que ficou faltando é esta: diziam que o judeu errante, quem negou água a Jesus durante seu calvário e debochou do nazareno, e por isso foi condenado a peregrinar até o fim dos tempos, perseguia, em sua senda interminável, o paradeiro das trinta moedas. Só assim poderia antecipar o juízo final e dar fim a seu tormento. Ele se apresentou a mim como Giovanni Ver Ash. O prenome é o mesmo que ele teria usado em sua passagem pela Itália. O sobrenome é um anagrama de Ashver, um de seus muitos nomes. Provavelmente, foi ele quem se apossou do livro mágico. Se pegar para si as trinta moedas, ele poderá abrir o portal místico e entregar o dinheiro aos quatro cavaleiros do apocalipse.

– Não sei se rio ou se choro, mas vamos logo, então – apressou-o Ana.

– Você vai até a sala da segurança. Eu vou continuar subindo até o quinto andar – ordenou o pai.

*

Ana gritou de pavor quando entrou na sala. O que encontrou foi um mar de sangue. O chefe, o guarda e outros dois integrantes da equipe estavam mortos, estripados. Correu até o quinto andar, com o coração na boca. A escada jogou-a em uma das extremidades do piso. A cena dantesca paralisou-a. No meio do corredor, seu pai estrebuchava com o abdome rasgado por um punhal. Ashver se dirigia à outra extremidade, onde quedava o elevador.

Naquele momento, o ancião imortal enunciava as palavras que constavam do manuscrito e lhe abriram, uma vez mais, o portal místico, para o qual levantou o pacote de moedas. Aguardou alguns minutos, e os cavaleiros não surgiram dentre a luz cegante. Ensandecido, o hebreu espalhou as moedas pelo chão e contou-as uma a uma. Urrou como se o inferno invadisse a própria terra com suas temperaturas incandescentes. Não havia trinta peças. Faltava uma.

Os olhos milenares de Ashver se surpreenderiam se pudessem ver a gravação das câmeras do período da tarde. Saberiam a que ponto chega a cupidez humana, pois teriam visto o presidente da Transp sorrateiramente entrar na sala da arca e subtrair uma das moedas, provavelmente por imaginar que dela não dariam falta. Apenas uma peça entre tantas, quem perceberia? E qual valor uma relíquia daquelas teria no mercado negro?

Agora, nada disso importava. O judeu se batia contra as paredes, frustrado por não conseguir pôr termo a seu infausto périplo de dois mil anos. Esgueirando-se, Ana chegou até o elevador, abriu a porta e empurrou com raiva o ancião desatento, que tombou nos cinco andares de fosso. Em seguida, socorreu o pai:

– Por favor, não morra. Não agora – implorou, chorando e acalentando o genitor em seus braços.

– Não resta muito tempo, minha querida. Estou indo, mas não se lembre de mim com rancor. Esse homem não encontra paz porque não está pronto para se redimir. Seria capaz de matar a humanidade inteira para se livrar de uma maldição que só cessará quando ele entender seus próprios erros. Não plante o ódio no seu coração, pois só colherá infelicidade. Você me perdoa?

– Perdoo, pai. Eu te amo! – debulhou-se em lágrimas Ana, que sentiu os últimos suspiros do pai.

Condoída, a antropóloga encolerizou-se ao ver que Ashver retornava ao corredor depois de escalar o fosso. Rapidamente, recolheu todas as moedas, juntou-as no invólucro e arremessou as unidades separadamente em direção ao portal místico, que principiava a se fechar.

Em desespero, o judeu errante jogou-se no umbral e desapareceu. Teria agora a árdua missão de procurar trinta moedas espalhadas aleatoriamente em diferentes pontos do globo terrestre – ou onde mais o portal tivesse o poder de alcançar.

Epílogo

– Essa não está à venda. É só ornamental – repisou o vendedor ambulante de uma feira de antiguidades nos arredores de uma grande cidade da América Central. – Esta outra aqui é cinquenta dólares. Moeda do Segundo Império Mexicano do século XIX. Vai?

Apoiando-se num cajado de madeira, o idoso comprador esgotava sua paciência:

– Eu vou falar pela última vez. Eu quero esta moeda do Império Romano – e puxou, debaixo de seu traje amarfanhado, um longilíneo punhal.

Era sua. A primeira de uma coleção de trinta.