A morte na sacada do meu apê

Mais um texto dedicado a Woody Allen

e a sua notável capacidade de

se repetir eternamente

na maior

cara de pau

Eram duas horas da manhã de uma madrugada de quinta-feira. Fazia frio e eu não conseguia dormir. Rolava de um lado para o outro da cama; encarava o teto esperando que um portal para o outro mundo se abrisse ali — esperando que se rachasse e a cama do cara do andar de cima caísse em cima da minha cabeça. Contava carneirinhos, porquinhos, morceguinhos, formiguinhas... e nada do sono vir.

Foi então que o telefone tocou. Quem seria?

“Alô?”

“Alô, Nelson?”

“Sim, sou eu. Quem é?”

“A Morte.”

“Ha, ha, ha. Essa foi boa.”

Desliguei. Voz sexy. Mas eu não estava a fim.

Fui até a geladeira, peguei uma latinha cerveja e uma asinha de frango. Liguei a televisão. Às duas e quinze da manhã também não passava nada que prestasse. Terminei a cerveja e peguei mais uma.

Sentei-me na cadeira da sacada do apartamento e acendi um cigarro. Fazia muito frio e eu estava descalço e sem camiseta. Não havia estrelas no céu, nem lua, aviões ou pontos luminosos executando danças triangulares insanas. Não estava sequer escuro. Muito estranho. Senti um calafrio que fez com que todos os meus cabelos se arrepiassem. Havia alguma coisa de pé ao meu lado.

“Olá.”

“Merda! De onde você saiu?!”

“Não é educado desligar o telefone na cara das pessoas.”

“Quem é você? O que quer?”

“Pensei que já tinha dito.”

“Como assim?”

“Eu sou a Morte. Vim te buscar.”

Fiquei ali, de olhos arregalados olhando para ela. Suava frio e a garganta estava seca. A Morte, ou quem quer que fosse, tinha uma puta duma presença de espírito. Usava um manto com capuz meio empoeirado e tinha a pele tão branca que quase chegava a ser azul clara; a boca era preta e carnuda com piercing de argola no meio, e duas longas mechas de cabelo escapavam-lhe na fronte. Parecia com qualquer outra gostosa que eu jamais pegaria, exceto pelos olhos: os olhos eram dois buracos negros sem fundo que pareciam conter tudo e nada ao mesmo tempo... a coisa mais incrível que eu já havia visto. Fiquei olhando para eles um tempão... horas, dias, semanas. Parecia que o tempo tinha parado.

Até que o cigarro que eu havia esquecido no meio dos dedos me queimou.

“Ai, porra!”

“Hihihihi!”

“Muito engraçado.”

“De fato.”

“Escute, se você é a Morte, onde está sua foice?”

“Deixei em casa. Só serve para causar uma certa impressão.”

“Sei, sei. Escute, estou adorando levar esse papo aqui com você, mas é que amanhã tenho que acordar cedo pra trabalhar, portanto, se você não se importa...”

“Na verdade, me importo, sim.”

“Olha aqui, garota, provavelmente foi alguém lá do escritório que te mandou; deve ser o meu aniversário ou qualquer coisa do tipo. Legais essas suas lentes de contato e essa sua fantasia, faz bem o meu tipo. Mas o que acontece é que eu não tô nem um pouco a fim. Tá frio demais e eu andei bebendo. Leve esses vinte reais que eu tenho aqui e tenha uma boa vida. Te acompanho até a porta.”

“Vai é ficar sentadinho aí.”

Quando ela disse isso minhas pernas bambearam, e eu caí novamente sobre a cadeira. Tentei me levantar de novo mas não consegui de jeito nenhum. Comecei a ficar preocupado.

Ela se recostou sobre as grades da sacada e pegou um dos meus cigarros. Acendeu com a ponta do dedo indicador, soprou e me deu uma piscada de olho. Deu uma longa tragada e soltou a fumaça — no formato de esqueletos marchando um atrás do outro. Deixou uma perna branquíssima escapar no meio da manta. Usava salto alto e tinha as unhas pintadas de preto. Pôs o pé no meio das minhas duas pernas e me “intimou”:

“Você tem sido um garoto mau.”

“Existem piores.”

“Você não tem respeito nenhum pela sua própria vida, e tampouco pela vida dos outros.”

“Sei. E o que tem a ver o cu com as calças?”

“Tudo está ligado, baby. Tenho te observado faz tempo. Você é do tipo que não faria falta.”

“Tenho dois gatos e um peixinho dourado pra tomar conta. Poupe-me dessa.”

“Na, na, na, na... não vai dar. Estamos em falta de almas como a sua.”

“Como? E todos os outros filhos da puta? Tem gente muito pior do que eu! Vendedores de carro, farmacêuticos, padres, advogados, dentistas, carcereiros, políticos, professores de química, dono de casa de repouso, dono de hotel no meio do nada... É só escolher!”

“A questão não é essa.”

“E o que é então?”

“A coisa toda não tem nada a ver com merecimento. Tudo tem que se encaixar, não pode haver desarmonia. Existe um sistema.”

“Está me dizendo que há harmonia no meio desse puteiro dos infernos?”

“Sim. Tudo está em seu lugar. Tudo segue um ciclo. Quando esse mundo for varrido pelas ondas, um novo renascerá.”

“E por que eu não posso esperar pelas ondas?”

“Não sei. Só executo ordens.”

Nisso, as minhas pernas começaram a se mover sozinhas. Me “levantaram” da cadeira e caminharam em direção a parapeito. Fiquei aterrorizado.

Anos atrás havia tentado o suicídio da mesma forma, só que estava completamente bêbado e fumado. Dessa vez, só tinha tomado duas. Além do mais, naquele momento descobri que eu não queria morrer “tanto” assim. Era diferente quando não era você mesmo quem estava no controle da situação. Tinha dois gatos e um peixinho dourado pra tomar conta. Tinha uma carreira num escritório de contabilidade. Dali a uns anos teria a minha própria sala e uma secretária linda, sexy e inteligente que se apaixonaria por mim; nós nos casaríamos, teríamos filhos e seríamos felizes pra sempre. E se não fosse isso, poderia ser qualquer outra coisa também...

Naquele momento foi que eu saquei que derramar café no terno bege, no meio de um evento cheio de gente importante aonde você teria que fazer uma apresentação crucial pra sua carreira poderia também significar algum tipo de chance. Só que era tarde demais pra se tomar consciência disso.

Nos filmes, dizem que a vida de que um homem levou passa diante de seus olhos quando ele está para morrer. Bem, no meu caso, foi a vida que eu poderia ter tido que eu vi.

Sobre o parapeito com os dois pés cujos passos eu não controlava, senti uma lágrima quente deslizar do meu olho esquerdo. Aí vieram as outras. Nunca chorava. Nem trancado no banheiro com o chuveiro ligado. Nunca quisera tanto viver como naquele dia, naquele momento.

Então pulei e arrebentei a cabeça no chão.

~O Maldito Escritor~ 14/04/2010

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Gilberto Sakurai
Enviado por Gilberto Sakurai em 03/10/2016
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