Isabela DTRL 29

O chão da lavanderia estava inundado de sangue. O cheiro de ferro queimava o nariz. Suas bonecas estavam observando tudo. Eram convidadas de honra. Já sem vida há um bom tempo, o gato de cor cinza mirava o nada.

Com uma chave de fenda nas mãos, Isabela explicava as suas visitas o que aconteceria a seguir:

“ Olhem, filhinhas. Só temos que esperar agora o gato homem dar um beijo de amor verdadeiro e aí....”

***

"Uma, duas, três, quatro...”

“Isabela, minha mãe disse que se contar estrelas nasce verrugas nos dedos. Você não tem medo? As bruxas tem verrugas. Não serei mais sua amiga se virar uma bruxa, né?”

Com o dedo ainda em riste no céu noturno, Isabela ignorou os avisos da amiga e continuou a contar. As bruxas sempre foram seres injustiçados. Seria um prazer ser uma bruxa.

Na calçada em frente a sua casa, já estava só. Com as mãos cansadas apoiadas no chão, continuava a contar os astros com os olhos.

Como seria lá em cima?

Poderia viver em um planeta como o menino do livro da biblioteca da escola somente admirando as estrelas de perto?

Poderia levar sua amiga raposa lá em cima também...

Os olhos cansados abraçaram a fronha do seu travesseiro. A lua e o céu ganhava nuvens escuras também.

***

“Mamãe , o papai não vai voltar mais para casa?”

“...”

“ Por que a senhora está chorando?”

Enxugando as lágrimas no avental, colocou algumas frutas e um pão dormido na lancheira da filha.

“ Nada querida. Vamos, já vai se atrasar. Hora de ir para a escola. Vamos.”

Isabela parou na calçada e com os olhos semicerrados encarava o céu claro.

“ Mãe, por que o sol não cai na nossa cabeça?”

“ Por que Deus está segurando, filha. Ele faz tudo pela gente.”

“ Já pedi para o papai parar de beber e Deus não me escutou ainda. Esta muito ocupado segurando o sol pra gente?"

Como metais, as lágrimas caídas intensificavam a luz do sol na face triste e cansada...

“ Vamos, Isabela. O portão já vai fechar. Vem."

Arrastada pela amiga, Isabela corre ao ouvir o sonoro e inquietante sinal do colégio.

“ Tchau, mamãe.”

“ Tchau, queridas."

***

“ Se eu jogar feijões em uma ovelha nascerá nela também?”

Isabela estava fascinada com seu trabalho de ciências. Conseguia criar vida ali naquele pedacinho de algodão dentro de um copo plástico. Mostrou a todas as suas bonecas. Mesmo aquelas que não tinham mais cabeças viram seu pequeno feijão florescer aos poucos.

' (...) e como o rei só tinhas doze pratos, uma feiticeira acabou ficando de fora do jantar de batismo da princesa. Essa, no entanto, acabou lançando um feitiço. E quando a filha do rei completasse a idade adulta, iria furar-se d...'

" Mamãe, não é muito injusto?"

Fechou o livro e suspirou fundo.

" Filha, já falamos sobre isso, não? É apenas um conto de fadas. E como todo conto de fadas, tem que ter uma bruxa. E além do mais, a princesa acordaria com um beijo verdadeiro de amor."

***

" Mamãe, o que é essa mancha roxa nos seus olhos?"

" Nada, querida. A mamãe bateu na porta do quarto."

" O papai, posso ver ele hoje?"

" Não, amor. Seu pai chegou ontem mas já foi embora."

" Queria mostrar meu feijãozinho para ele."

O esôfago não foi capaz de engolir aquelas lágrimas secas.

"..."

" Por que o papai bateu em você, mamãe? Vocês não são mais namorados? Minha amiga da escola disse que os pais delas moram em casas separadas porque não namoram mais."

"..."

" Eu te amo, mamãe. Não gosto mais do papai. Ele bate em você."

"..."

O som de dois corações abraçados era a única coisa que quebrava o silêncio naquela monótona manhã de domingo no cômodo apertado.

O leite não suportou a temperatura acima dos cem graus no fogão...

" Mamãe, eu te amo."

Diluída pela dor, as lágrimas dessa vez alcançaram o estômago e não os olhos.

"..."

***

" Bruninha, Claudinha, Fernandinha, olha, sejam boazinhas que todas irão ir ao jantar de formatura da princesa. Se vocês brigarem, todas vão dormir durante anos até o beijo de amor de verdade."

" Isabela, já está na hora de dormir, viu? Guarde essas bonecas. Sua mãe ligou e disse para você também escovar os dentes."

" Mas já vai começar o jantar de formatura da princesa. Todas minhas bonecas ganharam convite. Você também quer ir?"

" Mas é claro que sim, querida. Mas vamos deixar esse jantar para amanhã?"

" Minha mamãe vai demorar no hospital. Por que o papai bateu de novo nela. Está tomando injeção agora? Estou com saudade..."

" Sua mamãe vai ficar bem. Amanhã mesmo ela deve voltar pra casa. Todas estamos com saudade da sua mamãe. E além do mais, semana que vem é sua festinha de formatura, certo?"

" Posso dormir com meu vestido?"

" Prometo que amanhã iremos buscar sua mãe com seu vestido, ta bom?"

" Tudo bem..."

***

“Alô, dona Rosa”

“ Sim. Quem fala?”

“ Aqui é a assistente social Maíra. Desculpe, mas peguei seu número com uma vizinha sua. Preciso que venha urgente para sua casa.”

“ Minha filha Isabela, está bem. O que houve?”

Colocou o gancho do telefone no peito sentindo uma dor horrível...

“ Não posso entrar em detalhes por telefone, mas sua filha está bem. Preciso que venha urgente a sua casa, ok?”

O gancho tocou o chão. Logo, a linha ficou muda também.

Chovia lá fora, mas dentro do metrô apenas sua angústia inundava seu interior. Gostaria de esconder-se dentro da parte negra dos túneis para sempre.

Apenas pensamentos de vingança brotavam em sua mente.

‘ eu mato aquele desgraçado. Eu mato. Se ele encostou um dedo na minha filha...'

Com o olhar perdido, lembrou-se da preparação da formatura de Isabela...

' Mamãe, posso dormir com ele?'

' Mas é claro que não. Estraga a roupa dormir vestida.'

' Depois eu posso?'

' Quando acabar a formatura, sim. As professoras entregarão as lembrancinhas e você já será uma mocinha. De prêmio, dormirá com seu lindo vestido.'

Eufórica e com medo de pisar na barra do vestido, voltou o olhar para suas bonecas.

' Viram, filhinhas? Vou poder dormir de vestido. Nã, nã, nãaaa.'

“ Pedimos aos usuários que desembarquem nesta estação. A composição será recolhida.”

“ Senhora, estação final. Senhora. Senhora?”

***

As sirenes coloriam o céu cinza chuvoso. Isabela rabiscava o vidro da viatura policial aproveitando sua respiração forte.

“ mamãe...”

Batia no vidro vendo sua mãe ensopada pela água ao longe.

Em um plástico laminado sobre uma rígida maca, o corpo era transferido para a gaveta do carro funerário.

Vizinhos, com seus guarda chuvas cochichavam um ao outro sobre o que teria acontecido. Olhares de desaprovação fulminavam Rosa.

“ Rosa, certo. Falei a pouco com a senhora ao telefone.”

“ Cadê minha filha. Cadê?”

De modo impulsivo, Rosa balançava freneticamente os ombros da assistente social aos prantos.

“ Preciso ver minha filha. Cadê ?”

“ Agora não, Mathias...”

Desaprovando a aproximação policial, Maíra apontou a viatura em que Isabela estava sentada.

“ Filha, você está bem? O que aconteceu. Está machucada? Onde? Onde? “

Isabela tinha o colo e as mãos sujas de sangue.

Com as duas mãozinhas vermelhas em direção ao ouvido de Rosa, cochichou baixinho.

“ Mamãe, promete que não beija ele? Deixa dormir..."

Tema: Conto de Fadas

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 01/11/2016
Reeditado em 06/11/2016
Código do texto: T5809887
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