Pele de Cordeiro - DTRL 29

- Só isso mesmo. Obrigada.

Liz se despediu da atendente falando baixinho, acomodando o pacote de doces na bolsa sem se voltar para o olhar da outra mulher uma segunda vez. Ela questionaria a pressa do estabelecimento em despachar os clientes e fechar as portas tão cedo da noite, se não tivesse acompanhado pelos jornais, nos últimos dias, diversas amostras da criminalidade da região.

Saindo da confeitaria, encarou a rua que se estendia melancolicamente pela noite, larga, vazia, escura. Uma verdadeira boca pronta para engoli-la. Provavelmente era melhor atravessar um bosque escuro ao invés daquele labirinto de concreto. À noite, tal como uma floresta sombria, a rua também parecia viva, parecia que também respirava, assoprando seu hálito ruim de bueiros e becos.

A moça puxou sua boina vermelha mais para baixo, a fim de proteger seus ouvidos do vento frio, e a peça escarlate que lhe enfeitava a cabeça a fez lembrar-se dos conselhos da avó para não desviar do caminho. “Não é confiável andar por aí a essa hora”, a velha senhora havia dito.

“Nenhum poste é confiável aqui, em qualquer esquina, a qualquer hora”, Liz pensou consigo mesma, em resposta. Ela apertou a alça da bolsa com mais força e encolheu os ombros, andando mais rente às paredes. Havia dito que tomaria o máximo de cuidado e esperava que uma jovem caminhando sozinha, com um chapéu cor de sangue, não fosse muito chamativo.

Com uma olhadela, conferiu os lados e atrás de si. A presença de qualquer coisa ali não passava de uma suspeita, um fantasma tão quieto quanto sorridente. Ela chegava a ouvir olhos piscando e bufadas abafadas no meio de todo aquele silêncio, e o clima fez suas pernas sentirem a necessidade de trabalharem com mais ânimo, cada passo um soco no estômago.

Esqueça a boina vermelha parecendo uma tocha cortando a noite sob a luz dos postes. Eram aqueles sapatos barulhentos, mastigando a calçada com as solas, que a entregaria, denunciando sua presença exatamente como o bater de asas de um inseto se exibindo para morcegos e corujas.

Uma pequena corrente de tensão a apertava e ela se distanciou um pouco mais do meio-fio, querendo que as sombras das casas a escondessem, mas não percebeu que o ato também a fazia se aproximar dos becos, todos abertos para um abraço.

- Ei, mocinha da touca vermelha! – A voz rouca chegou antes que o bafo na nuca. Liz quis ignorar as palavras e continuar andando, mas seus movimentos foram embotados pela embriaguez repentina do susto. De repente, seus pés tinham desaprendido a andar e até os fiapos soltos de sua blusa jeans estavam arrepiados. – Perdida? – Quem quer que fosse poupou Liz do trabalho de se virar. O homem deu a volta e se postou ao lado dela, permitindo que a moça visse melhor os olhos azuis no rosto magro e peludo, duas gemas no fundo de covas.

- Não. Sei o caminho para... – Liz se calou. “Não importa se está nervosa demais para pensar direito, não fale o caminho para a casa da vovó, não fale mais nada. Só fuja!”, uma parte de sua mente a repreendeu.

- Opa! Calma, novinha! – O homem agarrou o braço dela e a puxou para si. Todo o frio do inverno era melhor que o calor daquele corpo. Liz se viu empurrada para o beco que continha um odor pior que a camiseta surrada. – Tem coragem de andar sozinha por aí com essa bolsa cheia de... Doces? – Ele olhou mais de perto.

- Não tenho muito dinheiro, mas pode levar tudo.

- Essas porcarias? Prefiro comer outra coisa.

Liz sentiu as mãos pesadas agarrarem seus pulsos com a firmeza de algemas e a barba espessa e suja roçou seu rosto. Tomou fôlego para preparar um grito, mas dedos se uniram em sua boca, sufocando sua respiração assim como o golpe de suas costas contra a parede.

Ter os braços soltos para que o estranho pudesse agarrar outras partes de seu corpo não era reconfortante. Nada naquilo era. As mãos espalmadas tatearam o ar em busca de um apoio que não veio na descida para o chão com cheiro de esgoto, docinhos de confeitaria e urina. O odor não era mais desagradável que a língua intrusa varrendo a pele feminina e espalhando, entre as lágrimas, o sabor de álcool e outras sensações mais ácidas.

Os cotovelos de Liz cravaram no peito ossudo do homem acima, enquanto a pressão na cintura a impedia de se mexer. Nenhum som ao redor era ininteligível aos seus ouvidos, dos sussurros excitados às buzinas distantes. Mas ela procurava ser ouvida, apesar dos lábios cerrados para escapar daquela língua que explorava seu rosto com violência, sem conseguir realizar o intento de entrar em sua boca.

Havia, porém, outras formas de conhecê-la por dentro.

Os dedos grossos e ásperos dele percorreram o ventre em busca do cós da calça dela. O volume que abriu entrada por debaixo da roupa fez pressão para que o botão desabotoasse e o estranho começou a se contorcer para conseguir virar a moça de costas, até que, em um lampejo, Liz cravou os dentes na clavícula de seu indesejável parceiro, espremendo bem o osso com uma mordida.

O homem deu um urro engasgado e bestial, contraindo-se ao cair de lado. Liz acompanhou o movimento, ficando por cima dele em seguida. Soltou os dentes e se levantou, desferindo um chute na virilha. Depois de um segundo golpe, saiu aturdida pelo beco, virando em quinas obscuras. Ela própria não sabia o que a movia, ou se estava tomando o caminho correto.

Foi ter um pensamento claro somente quadras depois, bendizendo aos céus por não ter se perdido ao vagar atordoada por vielas desconhecidas até chegar ao ateliê onde morava. Ela havia chegado a sua casa, muito embora o nome no letreiro que dizia “Fio de Liz” se referia à sua avó, não a ela.

Passou trêmula pela porta, trancando tudo de volta e passando por roupas elegantes expostas na frente, ternos e vestidos de noiva aguardando corpos que os dessem vida e a chance de uma dança.

- Vovó! – disse ela, com a garganta embargada, ao chegar à área residencial, no segundo andar. – Cheguei! – Liz foi à cozinha e pôs a bolsa na mesa. Depois de tudo, tinha esquecido que o acessório de couro continuava em seu ombro, unido a ela como um novo membro.

Tirou o pacote de doces e o encarou por um momento, o estômago embrulhando. Tinha calafrios só de pensar em experimentar um daqueles bolinhos fofos ou qualquer outra coisa. Pegou o pacote e jogou tudo no cesto de lixo, perto da pia.

– Vovó! – Ela ficou perto do corredor e, com o desejo de ouvir uma voz familiar e reconfortante, considerou ir falar com a avó, mas ela já deveria estar deitada e não seria bom ver a neta naquele estado.

Liz entrou no quarto e trancou a porta, pondo-se a andar em círculos pelo recinto, agitada. Olhou-se no espelho do guarda-roupa e percebeu os cabelos desarrumados saindo da boina abarrotada. Tirou a peça de lã e a jogou na cabeceira da cama. Depois, tirou a blusa, as calças e as sandálias, jogando tudo de lado. Apenas de lingerie, ficou curvada sobre as próprias coxas, sua pele latejando e grudada de nojo da camada de fluídos que ainda sentia.

Foi praticamente se arrastando para o banheiro e se jogou sob o chuveiro, exatamente como estava. Queria poder se afogar na água que caía, queria se livrar da própria carne contaminada com a luxúria daquele indivíduo.

Vestida com blusa e calça de dormir, ela ficou deitada na cama, depois do banho, poupando-se do esforço de se mexer. Não tinha jantado nada, não tinha a menor fome e tomava cuidado até com a saliva para não acabar vomitando ao engoli-la. Aquele sabor horrível da mordida pulsava em sua cabeça, não a deixando esquecer ou se convencer de que tudo não tinha passado de uma alucinação.

Liz se virou, encolhida em posição fetal, e observou o computador desligado. Ele estaria disponível naquela hora? Talvez fosse melhor vê-lo, nem que fosse apenas através de uma foto. Talvez isso a faria se sentir melhor. Levantou-se e se sentou na cadeira. Ligou a máquina, esperando iniciar, e acessou a rede social. De fato, foi muito bom ver o sorriso daquele rapaz de óculos escuros. Por sorte, estava disponível. Clicou no ícone e a janela da webcam abriu.

- Oi, amor – falou a imagem do jovem que se materializou na tela. – Por que ainda está acordada?

- Cidade grande... Aqui as coisas são mais agitadas. As pessoas demoram a dormir.

- Sei bem como é. Eu estava estudando, mas fiquei muito feliz quando me chamou. Como vão as coisas aí, na casa da sua avó? Está se adaptando rápido?

- Sim... – respondeu Liz, parcialmente de lado, alisando uma mecha de cabelo caída sobre o rosto.

- Vocês duas brigaram?

- Não... Nunca! – Ela se virou para a imagem do namorado e se encolheu com os olhos dele examinando-a através do vidro.

- Esse desânimo todo não é cansaço que eu sei. O que aconteceu?

Com a resolução do vídeo e a iluminação, Liz não conseguia ver a testa enrugada de Mário, mas ela sabia que uma marca de interrogação marcava a expressão do rapaz acima daquele olhar. Ela o conhecia, e ele também pouco se deixava enganar por ela.

- Estava andando na rua e encontrei um sujeito.

- Ele fez alguma coisa? – Mário aproximou o nariz da tela como se pudesse atravessar. – Você foi assaltada?

- Não – disse ela. Se sorrisse, talvez pudesse convencer de que tudo não tinha passado de um contratempo. – Eu só me assustei. A cidade anda violenta.

- Liz, pelo Amor de Deus, tenha cuidado. Meu pai trabalha aí, você sabe. Qualquer problema, qualquer problema mesmo, fale com ele.

- Seu pai? – falou Liz, pensativa. Sabia que o pai de Mário era delegado na cidade. A surpresa ficou por saber que aquela área ficava sobre a jurisdição dele. – Ah, sim. Falarei, se precisar. – A moça refletiu se estava contando uma mentira ou não. Não era uma má ideia, mas um boletim de ocorrência não mudaria o que aconteceu, e a perspectiva de voltar àquele assunto não parecia promissora.

- Prometa! Não me faça ir aí.

Liz revirou os olhos.

- Está bem. Prometo que falarei.

- Ainda não fui à casa da sua avó, mas conheço a cidade. É infestada de facções criminosas eternamente em guerra umas contra as outras. Esse pessoal é barra pesada.

- Sim. Nem parece gente – ela comentou, distraída, voltando a se concentrar logo em seguida. – Falou sério em vir?

- Por quê? Não falará com meu pai?

- Não é isso. É que estou com saudades.

- Agora não é possível. Estou enrolado com meu estágio aqui. Está se sentindo sozinha?

- Quem sabe um pouco.

- Eu soube que sua avó é um doce de pessoa. Você tem a ela. Isso é importante.

- É. –Liz acariciou o teclado com as pontas dos dedos. Pensou sobre as letras, nas palavras e na dificuldade em compartilhar seus sentimentos através delas, sejam faladas ou escritas. – Vou tentar dormir. Podemos nos falar amanhã?

- Claro, amor. – Mário deu uma piscadela de olho. Chegou a parecer que realmente estava perto dela. – Boa noite.

Pela manhã, Liz se postou diante da porta, as mãos na maçaneta e os lábios ensaiando movimentos muito discretos, preparando um cumprimento convincente ou contando até dez para tomar coragem. Ela empurrou a porta e entrou no recinto que parecia o recorte de um cenário de época.

Uma estante de madeira envernizada ostentava prateleiras de fotos amareladas e frascos de perfumes vazios, conservados naquele lugar apenas por sua beleza. No lado oposta a qual estava uma antiga máquina de costura, havia uma penteadeira com espelho de bordas redondas e acabamentos barrocos, e não muito longe desta, aos pés de uma grande janela cujas cortinas caiam de lado como cabelos ao redor de um enigmático rosto transparente, estava uma senhora atenta às agulhas de tricô e no fio negro de lã que serpenteava de seus dedos experientes rumo ao novelo no chão.

- Bom dia, vovó. – Liz se aproximou. – Sua benção!

- Deus lhe dê saúde! Está precisando. – A idosa olhou sobre os óculos para a neta. – Você não jantou ontem e ainda por cima jogou os doces no lixo. – As rugas no canto dos olhos se aprofundaram e aumentaram em número quando ela fitou melhor a moça. – E nem parece que dormiu.

Liz pôs as mãos no rosto e colocou os cabelos atrás da orelha. Não era de usar muita maquiagem, mas esperava que a quantidade que tinha usado fosse o bastante para esconder seu abatimento. Infelizmente, havia percebido que não era. A palidez era visível até para as cataratas da avó.

- Foi uma noite longa.

- E não deve ter começado aqui. Estava bem antes de sair. Seguiu pelo caminho que mandei?

- Eu... Bom, peguei um atalho e...

- E o quê?

Liz fingiu se distrair, olhando pela janela.

- Eu conheço muito bem essas ruas, essas pessoas e também você. Muito mais do que pode imaginar – reiterou a avó. – Há algo que queira me contar?

- Não. Nada. Estou atrasada. Só vim lhe dar bom dia. – Liz se virou. – Eu tomei café. Prometo almoçar...

- Liz! – disse a senhora, interrompendo o trajeto da neta.

- Sim?

- Pode abrir a última gaveta da cômoda, por favor?

A jovem se virou e viu o móvel atrás de si, com um jarro de flores murchas em cima.

- Tire uma caixinha. Tem um desenho na tampa.

A neta se aproximou e puxou a arcaica alça de metal da gaveta. A madeira emperrou um pouco antes de se projetar pesadamente para frente e revelar velharias, dentre as quais estava a famigerada caixinha descrita. Liz a levantou como se fosse feita de vidro.

- Vovó...

- Sabe do que se trata, não sabe?

- Por que está me mostrando isso?

- Porque você agora está morando comigo. Está sob minha responsabilidade. – A idosa repousou o volume negro de lã nas pernas antes de continuar. – Estou velha para proteger você, mas não significa que não possa colaborar na sua segurança.

- Vovó, eu não posso...

- Pode! Já está bastante grandinha. Só tome cuidado, está bem? Ele é uma ferramenta maravilhosa, mas se estiver nas mãos certas.

Liz olhou para a senhora na cadeira, cujas mãos voltavam a conduzir as agulhas com maestria. Aquilo, sim, estava nas mãos certas.

- Pode deixar. Vou me cuidar. Até mais tarde. – Ela saiu dos aposentos da avó e seguiu segurando a caixa com as duas mãos até o quarto no qual dormia. Pôs o objeto em cima da cama e o contemplou por um minuto. Examinaria melhor o conteúdo para ter certeza sobre o teor do presente, se não estivesse realmente atrasada. Pegou a bolsa e fechou a porta para começar a jornada do dia.

No final da tarde, a caixinha permanecia no mesmo lugar, intocada. Estava esperando a nova dona, se é que Liz podia se colocar nesse termo. Ela estava refletindo sobre isso quando se sentou sobre a colcha costurada naquele mesmo ateliê, sob o olhar atento da avó. O desenho na tampa era muito bonito, como poucas vezes ela tinha visto, como não era feito em nenhum lugar que ela conhecesse. Tocando na superfície, pensou em um barulho de disparo, em um homem com uma ótima mira e em garrafas de vidro sobre a cerca.

Ela estava pensando em uma lembrança.

A garrafa se estraçalhou em inúmeros cacos, tantos que a menininha que tampava os ouvidos não conseguiria contar.

- Viu como se segura? Não é tão difícil – Genésio falou para a neta, os olhinhos dela ainda estavam fechados e o coração batendo como as asas de um pombo assustado.

- Ai, vovô! É muito forte.

- Não posso discordar. – O homem se agachou perto da menina e ela não recuou ao ver a arma mais de perto, o que não deixava de ser um avanço para ele. – Sabe, Liz... Talvez você não possa segurar isso agora, nem atirar como eu atirei, mas em breve vou lhe ensinar.

- Vou atirar contra bicho também? – perguntou a neta, pensando nas histórias de caçada do avô e nas peles que ele guardava para a esposa fazer peças de roupa.

- Contra muitas coisas, se for necessário. Eu sei que parece assustador atirar contra um bichinho, ou até contra outra pessoa, mas muitos poderão não ter a mesma piedade com você. Há pessoas más, querida, e às vezes é necessário tomar atitudes difíceis para que haja justiça e algo bom sobreviva, mesmo que signifique atirar contra alguém. Mesmo que isso machuque.

Liz abriu os olhos. Estava de volta ao quarto e não era mais uma criança de oito anos. Ela levantou a tampa e lá estava o revólver do avô, exatamente como se lembrava. Justiça. Essa tinha sido a palavra usada por Genésio. São necessárias atitudes difíceis para que algo bom seja preservado.

Ela se levantou e caminhou para o espelho, vendo no reflexo o abatimento de quem não conseguiu se concentrar em qualquer outra coisa durante todo o dia, de quem olhava para os lados ao menor barulho e se via se esquivando involuntariamente do toque de outras pessoas. Talvez algo bom não tenha sobrevivido à última noite, sufocado debaixo da raiva, do nojo e da sensação pegajosa da imundice.

Também havia o sabor de carniça daquele homem. Tinha sido como morder a carne podre de um cachorro morto. Ela achava que sair para cumprir a agenda do dia a faria esquecer, mas o esforço não surtiu o efeito desejado.

Liz olhou para a cama e viu sua boina vermelha na cabeceira. A peça continua presente, apesar de ter se livrado de toda a roupa da última noite. Ela a pegou e a pôs na cabeça. Ficava muito bem nela e tinha sido praticamente a única peça de seu vestuário que não havia entrado em contato com aquele marginal. Ela não precisava deixar de usar, assim como não precisava ter se arrependido de sair. Ele que tinha escolhido a selvageria, não era ela que precisava interromper a própria vida. Virou-se para a cama e viu o retalho de madeira se destacando sobre a colcha. Um novo acessório pode mudar tudo.

“Quer saber de uma coisa?” pensou Liz, sozinha no quarto. “Está na hora de comprar doces para a vovó.”

- Vou sair – disse ela, em pé e com a bolsa de lado. – Não vou demorar.

A senhora na cadeira aos pés da janela estava como mais cedo, com exceção do volume de lã que segurava. O que tecia tomava consistência, embora ninguém ainda soubesse dizer o que era. A avó interrompeu o trabalho minucioso um momento e olhou para a neta. Não para a vista espantada, mas para o alto da cabeça, mais precisamente para o revestimento macio que encobria os cabelos.

Liz sabia que a avó não gostava da boina vermelha, por mais que dissesse que não. No começo, a idosa tinha insistido para que ela não deixasse de usar, que era louvável que a neta aderisse à nova moda da cidade – sinal de que estava se entrosando – e Liz passou a usá-la com um pouco menos de remorso. Agora, não era só uma questão de moda.

- Tem certeza?

- Sim. Vou tomar cuidado. Dessa vez, estou mais confiante. – A jovem segurou melhor a bolsa e um sorriso delgado escondido entre as rugas era um indício de que Dona Liz sabia que a neta tinha aceitado o presente. – Joguei os doces todos no lixo, lembra? Preciso comprar mais.

- Está bem. – A velha deu um balanço na cadeira. – Só preste atenção por onde anda – disse ela, deixando subtendido qualquer outro conselho que poderia ter.

- Eu sei. Até daqui a pouco. – A moça fechou com cuidado a porta do quarto e se dirigiu para a saída do ateliê.

O frio na barriga não era somente devido ao clima. Parecia que estava se encaminhando para uma apresentação importante na frente de críticos. Sentia uma multidão a olhando, mesmo que as ruas se tornassem cada vez menos movimentadas conforme se aproximava da confeitaria. Na verdade, a ausência de pessoas não melhorava em nada, só a tornava mais paranóica sobre vultos ao redor.

Entrou no estabelecimento, cuja fachada parecia ser feita do mesmo confeite dos bolos exibidos na vitrine, e foi ao balcão. A atendente era a mesma que estava trabalhando na noite anterior. Ela pegou o pacote, depois de colocar os bolinhos confeitados dentro, e o estendeu para a cliente. Liz saiu sem dizer grandes palavras e hesitou na calçada. “Não faça nada de que possa se arrepender”, repetiu para si, mas os pés já estavam na direção da rua triste, de muros pichados e casas silenciosas.

Se antes parecia estar entrando em uma floresta, dessa vez não deixou de comparar a um mergulho. Ela mal respirava e nem olhava para os lados. Daria meia-volta, se voltar atrás não exigisse um esforço hercúleo. Já havia escolhido aquele caminho e precisava seguir em frente, por mais que andar estivesse sendo difícil. Ela estava zonza e o ar frio parecia exigir tudo dela.

A caminhada prosseguiu por alguns minutos até ela se encostar a um poste. Só precisava tomar um pouco de ar para continuar.

- Olha só quem é. – Uma voz masculina arrastada foi como uma injeção de cafeína nos movimentos de Liz. Virando-se, percebeu o homem entrar na área melhor iluminada pelo poste, espremendo os olhos fundos para reconhecê-la. – Não será a mocinha da touca vermelha, ou eu deveria chamar você de cadelinha? – Ele pôs a mão no ombro. – Que dentes grandes você tem!

Liz ficou ereta, tudo em seu corpo aquecendo, mas antes de qualquer gesto brusco, o homem se jogou em sua direção e cravou os dedos finos em sua garganta. Um espasmo de pânico a engasgou enquanto era arrastada pela calçada rumo ao beco mais próximo.

- Você não tem medo de morrer, não é, vagabunda? Aquilo doeu pra caralho! – Ele a pressionou contra o muro, os olhos dela bem abertos, avermelhados e lagrimejantes com a falta de ar e as lembranças. – Ou não está lembrada de mim? – Houve uma pausa, como se ele genuinamente esperasse uma resposta.

A mão dele afrouxou a garganta e subiu pelo rosto. Ela não se mexeu. Ao chegar à testa, puxou-a pela cabeça, arrancando a boina e jogando Liz de barriga no chão. A bolsa parou logo adiante, deixando parcialmente visíveis o pacote de doces e, lá no fundo, algo a mais.

- Não contou para ninguém nosso encontro, não é? – disse o homem, começando a desafivelar o cinto. – Está na hora de recomeçar de onde paramos. – Ele deu passos perto das pernas da jovem e, antes que se agachasse, a última coisa que viu foi ela se virando e apontando um cano metálico que imitava o barulho de um trovão.

Um jato vermelho respingou nas sombras, tingindo o reboco descascado do muro.

Depois do zumbido do barulho e da dor nas mãos causada pelo impulso do disparo, demorou alguns fragmentos de tempo para Liz se dar conta do que tinha acontecido e se levantar, energizada pela adrenalina.

Um corpo estava jogado diante dela. Com o rosto desfigurado pelo tiro, nem parecia humano. Talvez nunca tivesse sido. Ela tinha feito aquilo? E que sabor ferroso era aquele em sua boca? Era o sangue daquele homem? Como alguém que se afogava em meio a um mergulho, sentiu a pressão do desespero e a agonia de não saber como agir. Pegou a bolsa, guardou a arma e saiu apressada, esvoaçando os cabelos livres, sem reparar de imediato que a boina tinha ficado para trás.

Manteve o ritmo tanto quanto pode, quase se esbarrando em quem via pela frente, e parou em uma calçada, às margens da avenida. Curvou-se no meio-fio, esperando vomitar tudo o que tinha comido durante o dia. O que veio foi o soluço como o de um choro. Será que alguém repararia em uma louca tendo um ataque de nervos? Olhou em volta e não viu ninguém interessado nela.

Os passantes se desviavam dela como se fossem água contornando uma pedra no meio do riacho, e ninguém nos automóveis dava mais atenção. Reparou melhor no fluxo de carros e avistou uma viatura. Quando esta chegou mais perto, foi como se os sentimentos conflitantes de Liz se tornassem dois braços e a empurrassem para a pista.

- Então você o executou? – perguntou o delegado, olhando-a de forma séria. – Tudo com um único tiro?

Liz ainda não tinha conhecido o pai do namorado pessoalmente. Pelo pouco que Mário contava, dava para saber que era um bom homem. Quando viu o carro da polícia, tudo em que conseguiu pensar foi em se jogar na frente do veículo e insistir para que os policiais a levassem até ele. Parecia a pessoa correta para ajudar. Felizmente, não tinha se arrependido.

- Eu sei que não foi muito responsável da minha parte sair assim, mas eu estava desesperada e não sabia o que fazer. Eu devia ter contado para alguém, eu sei...

- Para a polícia, por exemplo.

- Sim. Mas quero que me entenda. Eu tive vergonha, medo e não queria que essa história chegasse aos ouvidos da minha avó. – Liz olhou para Onofre com olhos de súplica. – Ela é frágil e se souber de uma coisa dessa não sei o que pode acontecer.

Delegado Onofre Gonzalez apoiou os cotovelos na mesa e ficou pensativo, a expressão enigmática de quem já tinha visto e ouvido muita coisa nos anos de trabalho naquele ofício.

- Entendo mais do que imagina.

- Eu vou presa?

- Não. Você só se defendeu. Mas a arma...

- Ela é herança do meu avô. Algum problema?

Onofre virou o rosto e viu através das persianas de sua sala o vai e vem de uma cidade conturbada. Pensou na surpresa em ver a namorada do filho emergindo daquele tumulto e não sabia como Mário reagiria se algo acontecesse a ela.

- Pelo que me contou, vejo que sabe atirar muito bem, mas não saia com ela, está bem? Todo cuidado é pouco.

- Tudo bem. – Liz ficou um pouco em silêncio, preparando o pedido. – Isso pode ficar só entre a gente? Não só para poupar minha avó. Mário também precisa ficar fora disso, pelo menos até eu poder contar tudo pessoalmente.

O homem ficou calado, olhando-a nos olhos. Por um instante, ela pensou que qualquer esperança de sigilo acabaria por ali, mas, para sua surpresa, o delegado acabou acenando. Um acordo estava sendo selado.

Em casa, colocou o pacote de doces em cima da mesa – aqueles não iriam para o lixo. Ela tinha conseguido dar um telefonema para a avó, para dar uma desculpa esfarrapada para o atraso, e poderia ficar mais tranquila, sabendo que a velha mulher estava dormindo sem saber o que aconteceu.

A nova tranquilidade de Liz se dava de muitas formas. Havia uma agitação em seu peito, sem dúvidas, uma perplexidade diante da própria atitude, mas também uma sensação que era difícil de identificar com clareza. Algo naquilo lembrava a primeira vez que tinha dirigido um carro. Podia sentir as pernas bambas e o suor frio de uma novata, e quando tinha passado o pior, no momento em que estava se deslocando pela estrada sem nenhum problema, tudo havia se transformado no orgulho de dominar algo e no desejo de repetir a façanha.

O fato de ter dormido pouco durante a noite não a impediu de ter um dia normal. Continuava quieta maior parte do tempo, mas já não virava para o lado a cada barulho ou desviava das pessoas como se fosse levar um choque. Só não sabia dizer se aquele bem-estar provinha do diálogo com o delegado ou de algo anterior.

De qualquer modo, praticamente não precisou usar maquiagem para esconder o abatimento do rosto antes de entrar no quarto da avó para avisar que a sopa do jantar estava pronta.

- É uma das poucas noites em que não usa a boina – comentou a velha, balançando. Às vezes, ela e a cadeira de balanço pareciam uma coisa só.

- Pois é... Perdi. – Liz passou as mãos pelos cabelos, como que para confirmar.

- Vá comprar outra.

- Como é?

- Foi o que ouviu. Vá comprar outra – insistiu a avó, continuando a tricotar. – Se ela fica bonita em você, devia usar, não importa se é daquele lugar.

- Está falando sério?

- Por que não estaria?

- Eu não sei, vovó...

- Se for por falta de dinheiro, eu dou.

- Não precisa. – Liz pensou melhor. – Pode deixar! Vou comprar uma nova. Quando chegar, quero que já tenha terminado sua sopa – disse Liz. Ela foi ao quarto, pegou sua bolsa particularmente mais pesada e saiu.

A loja para onde teria que ir ficava no mesmo bairro, seguindo pela rua em frente à sua casa. Tratava-se de outro ateliê, concorrente ao Fio de Liz há muitos anos. Talvez desse até para ver da janela do quarto da avó, no segundo piso.

Quando chegou de mudança na cidade para fazer um curso profissionalizante, Liz logo se encantou com a tendência que se alastrava entre as moças. A nova moda era um modelo exclusivo de boina feminina vermelha fabricada pelo ateliê Estela Elegância. A peça possuía um formato mais avantajado, e o trançado formava padrões que lembravam folhas e flores.

Foi um tanto decepcionante descobrir que aquela beleza vinha do desafeto de sua família. Não tinha como adquirir aquilo sem divulgar o trabalho do ateliê rival que há tanto tempo disputava com unhas, dentes e agulhas a clientela do negócio de seus avós, roubando-lhes alguns clientes sempre que era lançado algum novo produto. Contudo, para a surpresa e satisfação de Liz, a avó acabou descobrindo que ela queria a boina e disse que poderia comprar.

A neta havia perguntado se aquilo não a desagradaria, mas a senhora apenas soltou um resmungo, pegou um novelo muito escuro de lã e passou a tricotar como se o dia seguinte nunca fosse nascer. Para não entrar em conflito com ela, Liz comprou o belo adorno de cabeça e não procurou mais tocar no assunto, tentando esquecer a questão, afinal, era só um pedaço de pano. Que mal teria?

Havia muitas delas nas cabeças dos manequins que observavam a rua das vitrinas, de muitas cores além do vermelho vibrante, mas só os escarlates eram os preferidos das clientes que entravam e saiam da loja. Liz entrou, experimentou dois que as vendedoras impertinentes ofereceram e ficou com o terceiro.

Não tinha interesse em rondar pelo estabelecimento para dar uma olhada melhor nas outras roupas à venda. Pelo que olhou durante a compra, viu que preferia o estilo mais tradicional que era feito na empresa da família, com exceção, é claro, do chapéu.

Ela saiu da loja com a cabeça mais aquecida devido à lã. Mesmo seu braço estava mais confortável, apesar do peso extra da herança do avô. O revólver não era tão pesado, e aquilo era um preço pequeno a pagar pela ausência do medo de andar sozinha. Ela sabia bem como era a incerteza, a sensação de pequenez frente a uma pessoa, uma mera pessoa como ela, mas contra a qual pouco podia fazer.

Até o gosto ela sentia na boca, bem como o cheiro de bebida e a aflição de uma barba espessa roçando na sua garganta. De todos os sentimentos que regurgitava nas últimas horas, o desejo de que alguém desse um fim naquilo era o mais forte. Não foi à toa que havia se jogado em uma delegacia em busca de ajuda durante o pânico que teve após matar uma pessoa pela primeira vez.

Onofre havia sido muito gentil e tudo em sua postura indicava que podia confiar nele. Ter esse tipo de apoio era importante, mas não tão doce quanto não depender de ninguém além de si mesma para se defender. Podia acontecer uma virada, uma mudança fundamental no interior de uma pessoa, Liz pensou enquanto desviava do caminho, quando ela matava alguém e um delegado lhe dava razão. Ela estava apenas se defendendo, não foi o que o pai de Mário tinha dito? Sim, ela precisou fazer o que fez.

Liz se viu em uma rua diferente da qual deveria estar, andando de ombro menos encolhidos e não procurando mais as penumbras. Não sabia por que tinha tomado aquela direção, não havia outra razão, exceto o simples e puro fato de que podia. Não tinha mais que encurtar sua noite, ou evitar passeios, mesmo que tudo o que via eram ruas comuns, sem nenhum atrativo singular. Era melhor se familiarizar com a cidade e ela se sentia segura o bastante para alguma exploração. Muitas coisas podem proteger uma mulher: um policial, um namorado, leis... Mas nada é como uma arma.

Liz passou por uma esquina e deu a volta, pronta para seguir para casa tendo pouca companhia a vista, a não ser por dois jovens encostados a um muro, conversando baixinho. Quando ela passou por eles, ambos a seguiram com o olhar durante bons metros. Liz ficaria lisonjeada, se não soubesse bem que aquele tipo de olhar não tinha nada a ver com beleza.

Ela queria ter um retrovisor consigo, mas bastava apurar os ouvidos e ficar atenta às sombras para saber que estava sendo seguida. “Idiotas”, a moça pensou, sem fazer questão de apressar o passo mais do que achava conveniente. Na verdade, chegou a ser divertido a brincadeira de gato e rato, faltava somente saber quem comeria quem. Acabou virando em um beco e descobrindo que não tinha saída.

- Algum problema, rapazes? – perguntou ela, virando-se para os dois homens que bloqueavam a saída.

- Nenhum – disse o mais alto. – E você? Tem algum problema com a gente?

Liz olhou para ele, confusa.

- Por que teria?

- Sei lá... – Os dois se aproximaram. – Sabe que você se parece com uma garota que um amigo nosso descreveu?

- É verdade – falou o segundo. – Ela tinha até um chapeuzinho dessa cor. – Ele esticou o braço e tomou a boina da cabeça de Liz.

- Muita gente tem esse chapéu. É moda. Deviam pedir mais informações do seu amigo.

- Pode ser, mas não dá mais para perguntar nada para ele – falou o primeiro. – Ele está morto. Morreu com um tiro na cabeça ontem.

Uma sombra de palidez passou pelo semblante de Liz.

- Pois é... Foi pouco depois de nos contar que tentou pegar uma novinha parecida com você – disse o outro, amassando o tecido vermelho com a mão.

- Olha... – Liz abriu a bolsa sem desviar o olhar dos dois na sua frente. – Eu tenho dinheiro. Essa nossa conversa pode acabar por aqui?

- Relaxa... Temos muito que conversar. – O mais alto chegou mais perto. – Você namora alguém da turma do Flecha?

- O quê? Não sei do que está falando. – Liz tentou desviar do bafo, a mão ainda enterrada na bolsa.

- Sabe, sim. – O homem por pouco não encostou o rosto nela. – E vai nos conhecer também se... – O resto da frase foi abafado com o barulho cortante do disparo. O homem tombou para trás, com o queixo estraçalhado por estar no meio da trajetória da bala que viajava de baixo para cima.

O outro não teve tempo de se recuperar da surpresa. Ele recebeu um tiro no ombro e caiu gemendo, comprimindo o ferimento com a boina. Olhou para cima e a próxima parte do seu corpo a receber o metal foi o olho direito, esfolado com o segundo tiro.

Liz guardou a arma quente na bolsa e olhou para sua boina nas mãos do sujeito morto. O tecido estava imundo de sangue, o que o dava mais tons de vermelho do que seria interessante. Não valia mais a pena, pensou a moça que saia depressa do beco, olhando para os lados para se certificar de que ninguém a tinha visto.

Durante o jantar, ficou mastigando pedaços da carne dispersos na sopa e repassando mentalmente o diálogo que teve com os dois jovens. Tirar o dobro de vidas que da última vez afetou menos o seu apetite do que poderia prever, mas não queria dizer que nada a perturbava. O que aqueles homens haviam falado no beco deixava a impressão de que estava perdendo algo, e os sonhos ruins que teve durante a noite não ajudaram a descobrir o que era.

Ficou quieta e pensativa durante os dois dias que se seguiram. Em uma manhã de sexta-feira, lavou o rosto e foi à cozinha, tendo mais um susto para se somar a todos os outros que já teve na vida. Delegado Onofre estava sentado à mesa, em companhia da avó de Liz, saboreando com uma xícara de café um dos últimos bolinhos que a jovem havia comprado.

- Esses doces são melhores que rosquinhas. Vou passar a comprar mais deles.

- Não vai cumprimentar a visita, filha? – A senhora olhou para a neta estática na entrada.

- Bom dia – disse Liz.

- Não é todo dia que recebemos a visita de um delegado.

- Eu expliquei à sua avó que não vim a trabalho. Contei que sou pai do seu namorado.

- Ah... – A jovem ainda estava confusa. – Algum problema com o Mário?

- Não. Ele está perfeitamente bem.

- Que bom! Desculpe estar um pouco desconcertada. É que estava de saída...

- Não vim tomar seu tempo. – Onofre se levantou da cadeira, sorvendo o que restava na xícara. – Só queria dar uma palavrinha com você. A sós, se não for incômodo.

- De forma nenhuma! – A avó olhou para os dois através das lentes de seus óculos. – Filha, por favor, acompanhe o moço até um lugar em que possam ficar à vontade – terminou ela, acompanhado a neta e o delegado se afastarem.

Liz fechou a porta do recinto onde os clientes experimentavam as roupas e se virou para Onofre, que passava perto de alguns ternos pendurados em araras.

- Você tem saído à noite ultimamente? – falou ele, indo direto ao ponto.

- Sair? Bom, eu dei uma volta, sim, há dois dias.

- Onde?

- É... – Ela ponderou sobre o que deveria falar e viu que não tinha motivos para esconder nada. – Fui comprar uma boina.

- Encontrou alguém?

- Dois caras – ela afirmou. Tudo indicava que o delegado sabia onde queria chegar e seria prudente não contradizê-lo. – Eles me abordaram e...

- Meu Deus! – Onofre passou a mão no rosto. – Você disse que queria poupar sua avó. Por que não me ouviu e esqueceu aquela arma?

- Eu não tive escolha – disse Liz, se policiando para não falar muito alto e acabar sendo ouvida. – O que você acha que fiz? Que eu saí e me expus voluntariamente ao perigo? – perguntou, esperando que a resposta não estivesse estampada na sua cara.

- Brigar não vai resolver nada. O mal está feito.

- Alguém viu os corpos?

- A polícia foi ao local, como da outra vez, mas novamente nós não fomos os primeiros a chegar. Esse é o problema. Eles estão furiosos.

- Eles quem?

- A Matilha. É nova aqui e não sabe, mas esses bairros são dominados por uma facção criminosa. Eles se alto denominam Matilha. Há outras como a Turma do Flecha. Todos vivem em pé de guerra por pontos de drogas, retaliação por assassinatos e roubo de armamento. Estávamos em um tempo de relativa paz até que membros da Matilha começaram a aparecer mortos com um tiro na cabeça e uma boina vermelha do lado. Todos acham que é um tipo de recado.

Liz sentiu uma fisgada no peito, como se um grande inseto tivesse se materializado em seus pulmões e quisesse sair. Não foi recompensador começar a entender do que os dois homens haviam falado.

- Alguém sabe que fui eu?

- Não. Os informantes que consegui não puderam me falar muito, mas ninguém sabe quem é responsável pelas mortes, o que não é necessariamente bom. Os ânimos estão acirrados e estamos tomando conhecimento de casos de mulheres abordadas na rua simplesmente por estarem de boina vermelha.

A moça ficou olhando para os olhos do delegado. Se a intenção dele era assustar, teve o que queria.

- E agora?

- Tudo aconteceu muito recentemente. É cedo para medir as conseqüências, mas todo cuidado é pouco, como eu já falei para você. Eu sugiro que tome mais cuidado e, se possível, esqueça aquela arma. Agora, se sabe o que é bom para você, tem que aprender a seguir um conselho até o fim.

Liz viu que não possuía o direito de discordar. Se por algum momento teve a sensação de ter o poder sobre a própria vida nas mãos, o sentimento tinha sido fulminado pela culpa e pela incerteza. Uma guerra de gangues estava à espreita, e ela tinha uma grande parcela de responsabilidade, muito maior do que gostaria de admitir.

As horas que se seguiram ao encontro com Onofre foram particularmente tensas. Para a avó, ela arrumou uma razão fajuta para a visita do pai do namorado e teve que exercitar a criatividade para arrumar mais desculpas para explicar por que não queria mais sair à noite, o porquê de ter perdido a nova boina e não querer mais comprar uma terceira. Precisava de muito para poupar aquele velho coração das preocupações, mas estava disposta a pagar o preço de suas ações, nem que precisasse se trancar em casa o resto do ano.

As casualidades, no entanto, sempre podem mudar os planos de alguém, como os ventos mudam a topografia das dunas de um deserto.

Após o final de semana, Liz estava sentada no canto de uma sala do ateliê, dando pontos em uma calça enquanto ouvia as máquinas de costura soltarem seus estampidos, golpeando os tecidos entre os dedos das costureiras. Toda aquela agitação era explicada pelos vestidos de saias volumosas que as mulheres preparavam com o máximo de cuidado que o tempo permitia.

- Está acabando o rolo de linha branca. – Uma fez o anúncio apocalíptico, segurando alfinetes com os lábios. – Está faltando no almoxarifado – balbuciou para as outras quatro, que se entreolharam, à procura de uma solução.

A força de trabalho do Fio de Liz não era grande, principalmente nos últimos meses, com os negócios pouco aquecidos, e toda a mão-de-obra estava ocupada no momento, dando retoques e ajustes nos vestidos da noiva e das madrinhas de um casamento a ser realizado nos próximos dias.

Os olhares vagaram entre elas até repousarem na jovem do canto, sentada em um tamborete estofado. Nada a prendia ali, a não ser o desejo de se distrair. Nem mesmo os pontos na calça jeans que segurava eram merecedores dos melhores elogios – algo muito ruim para quem tinha uma ascendência tão talentosa na costura.

Liz devolveu o olhar e esperou alguém falar o que queria dela.

- Bom, como eu posso ajudar? – perguntou, depois de alguns instantes.

- A linha de que preciso é vendida aqui perto, ao lado do posto de gasolina do bairro – falou a primeira, pegando os alfinetes da boca. – Não tem como errar.

- Sair? – Liz pensou nas horas. – Agora?

- Sim. Esses vestidos precisam ficar prontos o quanto antes e estamos todas ocupadas. Algum problema?

- Não. Pode deixar. – Ela se levantou, deixando a agulha e a linha em cima do assento, junto com a calça.

- É desse de que preciso. – A costureira levantou um cone de plástico fino devido à escassez da linha branca enrolada nele. – Só preciso de mais uns dois.

- Sei de qual é. Não vou demorar – falou Liz, se virando para a porta. Realmente, o desejo era de que tudo fosse o mais breve possível.

- Sim, é bom não demorar mesmo. Hoje em dia, o mundo não está para brincadeira. Soube da filha da Marcilene? Pois é, a coitadinha foi assaltada ontem à noite. Os bandidos tomaram a boina...

A conversa de comadres foi ficando cada vez mais ofuscada entre o tear das máquinas conforme Liz se aproximava do quarto. Não possuía mais uma boina vermelha para uma saída rápida, mas havia uma peça especial no seu guarda-roupa que também lhe caía muito bem. Ao abrir as portas do móvel, avistou a caixinha no fundo, o desenho da tampa se destacando no escurinho do canto. Intimamente, pediu desculpas ao delegado por aquele pecado. O burburinho na sala de costura lá embaixo não a deixava parar de pensar na necessidade de se precaver.

Ela tirou o conteúdo da caixa, verificou se estava carregada e a guardou na bolsa antes de sair pelo ateliê e se expor à noite, onde as luzes dos postes faziam o papel das estrelas, uma vez que o céu estava de uma monocromia opaca, com um ou outro ponto brilhante que piscava como uma luz de natal solitária.

O inverno já estava às portas. O vento frio continuava indiferente aos calafrios dos passantes e Liz desejou não ter esquecido o cachecol que sua avó havia feito para ela há muito tempo. Por outro lado, estava cansada de peças de lã. A confusão que acabou causando não gerava um contexto atraente para moda, nem que fosse um elegante chapéu vermelho.

A única novidade que aceitava em seu figurino era o acessório metálico com cabo talhado em madeira no interior de sua bolsa. Mas mesmo ele estava com ela somente para casos de extrema necessidade, como, por exemplo, ter que lidar com as ameaças daquela cidade que a boina e aquele instrumento acabaram potencializando. Não, Liz pensou melhor. Ela que havia piorado tudo. Ela e sua dificuldade de seguir conselhos. Se pelo menos tivesse procurado logo a polícia, como Mário queria, se não tivesse desviado do caminho...

Ela avistou a lojinha, após o posto de gasolina. A jovem comprou os rolos de linha branca que a costureira queria e foi embora, refazendo metodicamente os passos que a levaram até aquele local. “Siga em frente, menina da touca vermelha. Não se desvie...”, ela repetia o mantra, rente às paredes. Não era agradável se chamar pelas palavras usadas pelo homem que a havia atacado na primeira vez, por isso mesmo era necessário. Ela precisava se lembrar dos perigos e de como começou.

A prova de que a estratégia estava funcionando foi ver a si mesma logo à frente. A menina de chapéu vermelho caminhava perto das paredes, a bolsa agarrada de lado, não muito distante da primeira. Liz estreitou os olhos e fitou a visão que ficava mais ou menos visível à medida que entrava e saía das áreas mais iluminadas pelos postes, como se fosse uma realidade tentando sintonizar.

Os cabelos lisos da outra estavam jogados nas costas, caídos sobre uma blusa parecida com a dela de acordo com o que ela podia enxergar na noite, o que a fez pensar no que mais poderia ser igual. Uma moça de boina vermelha, indo sozinha pela rua afora. Faltavam os doces para a vovó na bolsa, mas Liz não podia saber com certeza, já que, mesmo que eles estivessem lá, não poderia vê-los.

O que poderia dizer, certamente, era que a outra não possuía uma arma, ou estaria, no íntimo, esperando ser interceptada por um tarado, ser levada para um beco e tolerar um minuto de assédio apenas para ter o prazer de atirar na cabeça nojenta dele. Não. Era uma forma de vingança que só pertencia à Liz. Entretanto, aquilo não significava que a outra estivesse imune à iniciativa de homens como os dois que saíram do beco e passaram a acompanhá-la.

Liz conhecia aquele jeito de se aproximar de alguém, assim como conhecia a maneira discreta e depois mais visível de acelerar o passo adotado pela moça que tentou fugir, virando em uma ruela. Não era preciso muito para saber o que estava acontecendo. “Não desvie do caminho, não desvie do caminho...”, pensou, mas era tarde. Ela não podia ignorar. Virou na esquina e manteve contato visual com o pequeno grupo à frente, na rua deserta. Em volta, tudo estava fechado. Todos os moradores entocados em suas residências, com medo. O medo parecia ser um velho vizinho deles.

As sombras encobriram o trio em um trecho. Chegando nele, Liz olhou de um lado para o outro e ouviu bravatas distribuídas no ar. Ela se escondeu atrás de uma parede e, com um olho, viu o homem pressionando a moça contra o muro.

- Por favor, podem levar a bolsa. – A súplica era regada por lágrimas. A moça escondida não podia ver o rosto da outra de onde estava, mas sentia o pânico e a insegurança na própria carne.

- Você conheceu o Josenildo? – O de camisa rasgada nas mangas se aproximou.

- Não. – A garota balançou a cabeça. – Não sei quem é.

- É melhor não mentir! – O outro rapaz se aproximou e arrancou a boina vermelha, fazendo a moça soltar um gemido, como se tivesse doído. – Eu já vi você enrabichada com um da Turma do Flecha. Alguém matou o Josenildo e deixou a porra de um chapéu como esse.

- Depois o Tigre e o Fael. Alguém da Matilha mexeu com a novinha de um deles e agora estão deixando isso. Foi você, não foi? Recebeu uma cantada e mandou o namoradinho se vingar do grupo.

A garota continuou balançando a cabeça, de lábios cerrados.

- Acho que não gostou da pegada – disse o que segurava o chapéu, mostrando os dentes amarelados.

- Será? Acho que nós dois vamos ter que mostrar como é que se faz. – O mais próximo pressionou com força as bochechas da moça, fazendo a boca dela formar um bico apto para um beijo.

Liz se encolheu onde estava. Podia sentir o bafo daquele homem lambendo sua face. A mão foi à bolsa, sentindo através do couro o contorno duro do aço, e seus movimentos pararam. O que iria fazer? Já tinha causado muito problema.

Um soco na parede reverberou no beco quando a jovem acuada tentou escapar, o pânico dela divertindo os dois rapazes. Liz sentiu vontade de fugir, de ir embora e fingir que nada tinha visto, mais havia uma força, um extraordinário magnetismo a ligando a toda aquela sujeira. Querendo ou não, ela fazia parte de tudo. Com cuidado, sacou a arma e apontou para a cena que se desenrolava, o dedo indicador pesando no gatilho. Um tiro. Ela não podia errar.

O disparo se deu durante um flash de confiança, um instante antes de o homem afundar o rosto na garganta da moça em uma carícia pervertida. Pedaços de seu crânio se propagaram logo depois do barulho estridente, a cabeça dilacerada bem na região na orelha. Os joelhos começaram a dobrar, cedendo sob o peso que não possuía mais nenhuma vida para sustentá-lo, e o corpo tombou com um baque seco no chão.

O companheiro recuou como se tivesse se esbarrado em uma muralha. Ele procurou ao redor, os olhos atentos e confusos varrendo a noite. Por um momento, Liz acreditou que ele iria uivar, fazendo jus ao nome do grupo, um uivo que seria um pedido de ajuda aos pares e uma ameaça, mas apenas apertou a boina entre os dedos sem muita consciência do que estava fazendo e disparou na direção contrária ao qual mais um disparo estava sendo preparado, levando consigo o chapéu escarlate.

O beco estava vazio novamente, a não ser por um conjunto estranho formado por um morto, uma atiradora e uma jovem trêmula, com suas costas apoiadas na parede e as mãos limpando o rosto sujo de sangue respingado e lágrimas. Liz voltou a esconder a arma e expôs mais do rosto. Tinha vontade de se revelar por inteira para a colega em prantos, tomando fôlego entre soluços, mas, antes que adquirisse toda a coragem necessária, a outra pulou o corpo e correu pelo beco, passando perto da presença oculta a poucos metros.

Liz deu alguns passos e se voltou para o cadáver caído que espalhava pelo chão uma mancha vermelha e quente. O vermelho é uma cor que se destaca bem na noite. É muito fácil vê-lo, e talvez até senti-lo entrando pelas narinas e mexendo com os sentidos. Havia algo de hipnotizante naquilo, na morte jogada aos seus pés, na carne corrompida exposta. Liz não tinha um machado, nem nada parecido, mas o pequeno metal que possuía não a deixava ser o elo fraco.

Ela piscou, lembrando que não tinha tempo para devaneios. Vozes interrogativas e sirenes afoitas já eram ouvidas e ela precisava se apressar. Saiu rapidamente pela ruela e deu a volta no quarteirão, saindo na rua em frente ao ateliê, em um ponto acima do Estela Elegância. O lugar parecia bem mais agitado e ela ficou feliz em poder se misturar aos passantes. Sem trocar nenhum olhar com ninguém, deslizou em silêncio entre as pessoas e fez caminho até em casa, onde jogou os rolos de linha nas mãos das costureiras. Nenhuma delas quis se aprofundar nas razões da demora. Havia uma missão a ser cumprida. O casamento de um casal apaixonado dependia disso.

Liz sentou no sofá e apoiou a cabeça nas mãos. De fato, a moça que viu de boina vermelha não era ela, e nem poderia ser. Não era como se pudesse voltar no tempo e desfazer tudo, não importava quem pudesse ter razão ou não no que aconteceu. Apertou a bolsa e sentiu o revólver. “Se sabe o que é bom para você, tem que aprender a seguir um conselho até o fim”, o delegado havia falado. Mais uma recomendação violada. Mas uma moça havia sido ajudada por ela naquela noite, e isso devia significar alguma coisa, por mais que o rastro de acontecimentos que a havia levado até aquele momento não pudesse ser apagado. Talvez não fosse tarde para recomeçar, para ver que muita coisa boa podia ainda sobreviver.

Ela se levantou, caminhou para o corredor e viu, após um pequeno avanço, a porta entreaberta do quarto de sua avó. Não seria educado ir dormir sem desejar boa noite. Liz precisava ver se ela estava bem, e mostrar que estava bem. Depois de duas batidas na madeira com os nós dos dedos, entrou, encontrando a visão familiar da senhora sentada ao pé da janela, as mãos juntas, tricotando o emaranhado negro de lã. Liz se perguntou se aquela mulher com o mesmo nome que o seu pensava no que fazia, ou se os dedos dela não precisavam mais de comando para tecer as tramas.

- Boa noite, vovó. – Ela chegou perto da janela, falando baixo. A avó olhou por cima dos óculos, sem mover a cabeça.

- Boa noite para você também, filha. Está sendo?

- O quê?

- A noite. Está sendo boa?

- É... Está seguindo com seus altos e baixos. – A neta virou e olhou para o trançado absolutamente bem feito que a idosa tecia com maestria. Já não havia mais fios negros estendidos para um novelo no chão, apenas a massa escura e bem acabada que pendia das mãos enrugadas e talentosas. – Vovó, você já esteve em uma situação ruim e quando foi tentar se soltar acabou piorando tudo?

- Pergunta curiosa – disse a senhora. – Está passando por algum problema?

- Não... Bom, mais ou menos.

- Acho que todo mundo se sente assim, de vez em quando. Você se esbarra em algo, vai se soltar e acaba chamando mais coisas ruins. É como se estivesse presa em uma teia de aranha. – A mulher se voltou para a janela, através da qual dava para ver um pouco do movimento da rua, e a neta seguiu seu olhar.

- Está tendo muito movimento lá fora – disse a mais nova. – Algum evento?

- Atacaram o Estela Elegância e deixaram quase tudo destruído. Só faltou colocarem fogo.

- Nossa! Alguém se machucou?

- Não sei. Soou mais como um aviso. Acho que não queriam deixar feridos.

- Aviso? De quem?

- Sei lá... Vera saiu um pouco e foi ver o que era. Pelo que ouviu na rua, bandidos associaram as boinas vermelhas do ateliê à morte de comparsas da quadrilha deles e resolveram deixar um recado à altura. Esses marginais têm dessas coisas, sabe? – A velha levantou os braços, contemplando o próprio trabalho em forma de um emaranhado da cor de carvão. – Eu lamento pelo pessoal da loja, mas é como dissemos: às vezes, caímos em uma situação na qual é impossível até se mexer sem causar uma reação. – A senhora pôs as agulhas de lado e apresentou a peça à neta que estava olhando para ela, muito quieta. – Para você!

Liz a pegou e examinou o trançado macio, apalpando como se o volume fosse um gatinho.

- Isso é uma...

- Sim – interrompeu a avó, satisfeita. – Pode usar.

A neta levou o presente ofertado à cabeça e a boina se acomodou com perfeição. Era um novo modelo, de uma nova cor.

- Sei que você gostava do vermelho, mas o inverno está chegando e o outro vai ter que sair de moda um pouco mais cedo.

Em silêncio, perto da janela, Liz chegou a acreditar que um sorrisinho havia brincado naquele rosto gasto pelos anos, mas foi apenas por um breve momento. Rapidamente, a senhora abaixou a cabeça, pegou as agulhas e novos fios de lã e começou a trabalhar com a destreza de quem tinha experiência naquela arte, enquanto as luzes pálidas da cidade entravam no quarto e banhavam seus cabelos presos em coque, deixando-os mais claros, branquinhos como os de uma ovelha.

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Tema: Conto de Fadas.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 08/11/2016
Reeditado em 10/11/2016
Código do texto: T5817072
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