Pântano

Eu fechei os olhos e beijei-o. Fui covarde de fazer isso com ele, mas beijei-o pensando em você. E outro, e outro, e outro... Mas é você quem dita o ritmo da meu espírito, assim descompassado, esquizofrênico. E eu não sabia mais o que fazer para te ter. A imaginação me foi consolo. E a tequila que surtia efeito me fazia surtar sem você por perto. A noite se demorava, e eu me vi mais uma vez sozinho. Bêbado me perguntava onde e com quem você estaria agora. Afastei-o de mim quando, então, abri os olhos e não encontrei teu rosto, teu sorriso, teu olhar...

Alguns dizem que me tornei um monstro. Vampiro. Eu dou de ombros e alço voo. Não sei mais quem sou. As luzes da boate me entorpeciam. Caço em outros lábios os seus. De repente, tudo escureceu. Eu perdi a consciência. Desmaiei, adormeci, sei lá. Quando despertei o salão estava vazio, copos e garrafas de bebidas espalhados pelo chão. Levantei-me e fui em direção a escada de saída. Ao pisar no primeiro degrau a escada atrás de mim se desfez. Eu não podia mais voltar atrás. E os degraus a minha frente se formavam em uma espiral. E conforme eu avançava o caminho já percorrido ia se desfazendo. E senti que a velocidade aumentava e eu precisava correr naquela espiral sem fim. Estava tonto e cansado e então deixei-me cair no vazio. Meu coração gritou. Eu estava preso numa espécie de buraco negro. Algo me atraiu e me fez perder a mim mesmo, me destruir.

A gravidade, de repente, se fez presente e eu caí em queda livre. Quando enfim me vi de novo em alguma superfície, percebi que vários insetos me envolviam. Eu caí numa piscina de baratas. Elas percorriam em mim seus destinos incertos. Eu era o caminho da cruz de bichos nojentos. Eu me enojei e quis vomitar. Talvez eu tivesse apenas bebido tequila demais, cerveja demais. Desesperado fiquei e me debati feito louco. Gritei, mas as baratas ameaçavam entrar na minha boca. Então, me emudeci de novo. Corri, esmagando sob meus pés tantas delas, enquanto várias caíam do meu cabelo, dos meus ombros, de todo o meu corpo. Assim fiz até me ver sem mais nenhuma delas. Sozinho estava eu novamente.

O sol ameaçava nascer. Lento ele nascia, como quem se recusa a chegar. Eu me sentia imundo depois de conviver com aqueles insetos. Desejei chuva, mas só havia neblina. Como quando tentei te beijar e você se esquivou. Você apenas me defendia; e se defendia. Uma borboleta pousou no braço. Suas asas coloridas me fascinaram. E eu pude ver a lagarta que ela fora um dia. Eu pude ver sua metamorfose, ela destruindo folhas para se alimentar, se arrastando por caminhos obscuros, fugindo de predadores. Enfim, ela se enclausurou, teve seu tempo de solidão, seu casulo, até vir, então, feito a fênix. Renasceu. Agora, em vez de destruir folhas, polonizava flores. Agora, ela sabia cultivar jardins. Ela aprendeu a provar o néctar de tudo. Ela então voou, e eu vidrado em sua beleza a segui. Mais uma metamorfose, então se fez. Ela criou pernas, e braços. Ela era um homem. E então, trôpego fugiu de mim. Mas eu continuei a segui-lo. Um carro freou bruscamente, quando em um momento de loucura ele se jogou na frente do veículo. Eu lhe empurrei, e na calçada lhe encostei na parede para lhe dar uma bronca, como um adulto fala a uma criança desobediente. E então olhei-o nos seus olhos e lhe chamei de amigo. Enfurecido ele me empurrou e me questionou: amigo? Eu nunca entenderia.

Ele, então me ofereceu uma maçã. Eu hesitei em aceita-la. E quando por fim mordi-a, ele saiu correndo, deixando cair sua carteira. Eu a peguei, no entanto algo me enfraqueceu. E eu o deixei ir, mas ele sempre esquecia algo de si para trás. Não foi a primeira vez que ele permaneceu mesmo sem querer. Algo me entorpeceu os sentidos. E a chuva que antes tanto desejei, de repente chegou. Eu me sentia enforcado, uma angústia me agarrava a garganta. A maçã tinha o gosto do beijo dele; seu veneno. Ele, então deu meia-volta e me pediu a carteira; eu lhe entreguei. Mas descobri tanto dele quando fucei nela. Descobri que ele gosta de poesia tanto quanto eu. E que os astros não perdoam. Eu poderia roubá-lo para mim. Eu poderia cometer crimes passionais. E desejar a felicidade dele apenas comigo e mais ninguém. Mas a chuva continuaria a cair, e embora doesse, caía. E eu já nem sabia o que era chuva e o que eram lágrimas.

Os bueiros entupidos faziam a rua alagar. E eu imóvel sentia a água subir pelas minhas pernas. Alguns ratos desesperados nadavam, enquanto o lixo boiava. E eu: imóvel, irredutível. Eu sabia onde estava me metendo. Mas eu queria entrar naquele pântano. Os carros provocavam ondas de água poluída e as pessoas se protegiam sob guarda-chuvas e marquises em lugares mais altos; e incrédulas me assistiam. Eu declamava poesias que ele não poderia ouvir. Eu via os ratos passarem por mim, e lembrava das baratas que me envolveram. E da borboleta demoníaca que me encantara para depois desiludir-me. A chuva caía cada vez mais forte. Uma represa em mim se rebentou com a tempestade. E então tudo se inundou. Porém, a força das águas foi incapaz de me mover. Imóvel elas me submergiram. Cheguei a acreditar que me afogaria no álcool, que seria um dia o monstro que tantos profetizaram. Porém, era uma água suja que me escurecia a visão. E eu percebi que não saberia respirar em pântanos. Mas mesmo sem ar eu permanecia vivo. Descobri que o inferno não era de chamas ou rios de sangue. O inferno era de sentimentos recalcados, de águas podres. Aos poucos a plateia assistiu-me afogar, e então quando completamente coberto pela água, todos foram embora. Fui tornando-me uma estátua em uma cidade perdida e submersa. Agora, aguardo, imóvel, você vir me salvar. Bastaria um beijo! E então verá que tornei-me frio, tornei-me pedra no momento em que lhe dedicava uma poesia. E ao me devolver o ar, verá que perdi meu último fôlego quando eu dizia que para sempre eu vou te...