Fome

Depois de limpar as marcas de pasta de dente na pia, percebeu com demasiado espanto que o gosto de carne humana ainda não havia saído de sua boca. Não importava a força usada no processo de escovação dos dentes ou mesmo os metros de fio dental passado entre eles. O maldito gosto continuava lá. Preso em algum lugar da garganta ou ecoando do fundo de suas entranhas. Nuca se dera conta do quanto o gosto de sangue era desagradável quando sorvido em profusão. Como nauseantes poderiam ser os momentos posteriores ao festim macabro que ele acabara de servir. O vermelho vivo estampava a camisa branca e marcava o piso no caminho da cozinha até o banheiro.

Ao olhar no espelho não reconheceu sua própria face suada. Marcas angustiantes saltavam-lhe a testa formando um visível mapa de sua insanidade. Seus lábios tremiam balbuciantes. Emitiam palavras incompreensíveis ao raciocínio. Sons gorgolejantes e molhados. Nada em sua vidinha medíocre o havia preparado para isso. Tivera um sono restaurador e ao acordar fora assaltado de um contagiante bom humor. Tomou um banho rápido e antes mesmo de vestir a calça, já escolhera a gravata com uma gravura de Andy Warhol reproduzindo serialmente Marilyn Monroe com variações de cores.

Assim que penteou os cabelos e colocou um tranqüilo ar de vencedor no rosto, sentiu-se pronto. Deu as costas para o espelho e sentiu uma rápida movimentação às suas costas. Virou-se rapidamente correndo os olhos por todo quarto. Notou uma pequena sombra na janela. Escancarou a cortina, dando de cara com um corvo que bicava o vidro. A ave estava machucada. Vários ferimentos salpicavam seu corpo. Abriu a janela e antes mesmo de terminar de fazê-lo levou uma bicada no dedo. Levou o dedo a boca buscando aliviar a dor subida. Notou com descontentamento um pequeno ferimento surgir no local da bicada. Estancou a pequena gota de sangue com a toalha recém usada no banho e seguiu para a cozinha.

A chaleira apitava enchendo o ambiente com vapor de água. Serviu-se da mesma e depositou um sachê com ervas. Preparou duas fatias de pão e serviu o chá em uma caneca simples. Percebeu o quanto estava faminto. Apenas duas fatias de pão não preencheriam o vazio no seu estômago. Na geladeira achou um pedaço de queijo e partiu uma fatia. Com mesma faca cortou um dedo e o enfiou na boca. Arrancou a carne por entre os ossos com muito apetite. Abandonou a faca e continuou a refeição levando a mão à boca. Mordia com muita força ignorando a dor. Comeu as estruturas superficiais das costas da mão e também as estruturas internas, incluindo-se ossos, músculos, tendões, ligamentos, artérias e nervos. No banheiro, cobriu o local onde antes estivera sua mão. Percebeu assustado que sua fome não havia passado.

Deep Space
Enviado por Deep Space em 27/11/2016
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