O AÇOUGUEIRO ASSASSINO

- Amor... você viu a notícia no Estado de Minas? – pergunta Arnaldo, sem tirar os olhos do jornal.

- Ainda não tive tempo, meu bem! Estou às voltas com o almoço! – a voz vem, aflita, da cozinha. – As crianças querem comer almôndegas...

- Nossa cidade está na primeira página! – grita Arnaldo, com excitação na voz. – O maníaco misterioso fez mais uma vítima! Já é a oitava pessoa que desaparece, misteriosamente...

- Há alguma ligação entre as vítimas, meu bem? – e Tereza surge na porta que separa a sala da cozinha, curiosidade expressa na face, um molho de manjericão na mão esquerda e uma faca na outra mão. Aproxima-se de Arnaldo que, apavorado, grita:

- Cuidado com essa faca! Você conhece o meu horror por facas...

- Fique tranquilo, meu bem! Essa faca, na minha mão, não representa perigo algum para você! – e Tereza esconde a faca atrás das costas, beija a cabeça de Arnaldo, espicha o pescoço, olhando a manchete, por cima do ombro dele. – Você não me respondeu! Há alguma ligação...

- Todas as vítimas são do sexo masculino – interrompe Arnaldo.- acima de 40 anos e com peso acima do normal.

- Cuidado, querido, você está dentro do perfil do psicopata! – fala Tereza, sorrindo, e retorna para a cozinha.

Arnaldo se entrega à leitura e começa a imaginar como a polícia poderia desvendar os enigmas. Seus pensamentos são interrompidos por um xingamento que vem da cozinha:

- Puta que pariu! Eu sabia que tinha esquecido alguma coisa!

- O que você esqueceu, Tereza? – pergunta, desinteressado.

- Esqueci de comprar a carne moída, Arnaldo! – e a voz adquire um tom de súplica. – Você pode ir ao açougue do Fortunato, para mim?

- Querida, faz a almôndega sem carne! – argumenta, descomprometido com a ansiedade da esposa.

- Não existe almôndega sem carne e sem manjericão, meu amor. Corre lá no açougue, pois hoje é domingo e já, já que ele fecha! – fala Tereza e surge na sala, com pose autoritária. – Ah! A carne tem que ser chã de dentro ou patinho! Explique ao Fortunato que é para almôndega e peça para ele passar duas vezes na máquina...

- Tá bom! Tá bom! – e, dando-se por vencido, Arnaldo dobra o jornal e se dirige para a porta.

- Arnaldo... – a voz de Tereza é autoritária. – Nada de passar no boteco do Josemar! Traga a carne com urgência porque...

Arnaldo fecha a porta e sai, sem esperar que ela termine a sua ladainha de todas as horas.

***************

- Bom dia, Fortunato! – cumprimenta Arnaldo, estranhando o açougue vazio. – Cadê os clientes? Viraram vegetarianos?

- Que nada, Arnaldo! Todos já vieram! – responde um homem imenso, musculoso, vasta cabeleira, sobrancelhas espessas e um sorriso bondoso no rosto. – Eu já estou fechando...

- Ainda dá pra me arrumar um quilo de chã de dentro, moída? – lembra da esposa e fala, sorrindo. – É para a patroa fazer almôndega!

- Chã de dentro... chã de dentro... – e Fortunato vai pegando as peças de carne, no balcão, afastando uma da outra, procurando. – Chã de dentro... chã de dentro...– olha para Arnaldo e fala. – Só tenho lá dentro, na câmara frigorífica. Quer vir comigo? Assim você fica conhecendo os doces segredos da carne. E você mesmo escolhe a peça de carne... – e sorri, como que para o encorajar.

- Ok! Aceito o convite! – e Arnaldo olha para o relógio. – Mas, não posso demorar! A patroa recomendou pressa... sabe como são as mulheres, né?

- E como sei! – suspira Fortunato, solidarizando-se com Arnaldo. – Por que você acha que eu nunca quis casar? Vamos! Vamos! Prometo que não vai demorar! – e Fortunato sai de detrás do balcão, abaixa a porta do açougue e convida Arnaldo para o seguir.

Entram por um longo corredor, mal iluminado e frio e Fortunato abre uma pesada porta de aço e cede passagem para Arnaldo. Entram num recinto enfumaçado, com pouca claridade e estupidamente gelado. Arnaldo sente uma sensação estranha e começa a tremer de frio. Fortunato aciona uma alavanca e duas fortes lâmpadas iluminam a câmara frigorífica. Os olhos de Arnaldo se abrem de espanto, sua voz demonstra todo o seu horror

- O que... significa... isso? – e tenta se voltar para contemplar Fortunato, que se encontra atrás dele, porém, uma vigorosa pancada na cabeça o derruba sobre o gélido chão da câmara frigorífica.

Quando Arnaldo acorda, tremendo de frio, sente que está completamente nu. Ao tentar se mexer, sente uma dor lancinante nas costas e descobre que está suspenso por um gancho, meticulosamente enfiado entre as suas costelas. Contempla, horrorizado, oito corpos também suspensos por ganchos e completamente descarnados. Um grito de horror ecoa dentro da câmara, hermeticamente fechada.

- Assustado, Arnaldo? – percebe-se uma satisfação na voz do açougueiro. Arnaldo vira a cabeça e geme de pavor ao contemplar Fortunato assentado numa banqueta metálica, com um sorriso divertido no rosto, afiando uma longa faca numa chiara.

- Por favor... me tire daqui... – geme, apavorado.

- Você vai sair daí... aos pouquinhos! – e uma gargalhada sinistra ecoa no recinto; os olhos dele brilham febris.

- O que significa isso? – e os olhos apavorados de Arnaldo percorrem os cadáveres pendurados.

- Uma experiência, meu caro! Uma experiência inusitada... estou apaixonado por ela. – sorri, desliza a faca na chiara, seus olhos reluzem. – As pessoas sempre reclamaram da qualidade da carne que eu vendia... inclusive a chata da sua mulher! Decidi inovar de forma revolucionária! Depois que eu passei a vender carne humana, tenho recebido somente elogios... – levanta, deixa a chiara sobre a banqueta e se aproxima de Arnaldo. A longa faca brilha em suas mãos... os olhos de Arnaldo brilham de pavor... os olhos de Fortunato brilham, insanos. A ponta da faca é encostada no umbigo de Arnaldo. Arnaldo treme, chora, suplica...

- Por favor... pelo amor de Deus... – geme, em transe. – Com faca, não! Deixe-me ir... Eu não contarei nada!

Os olhos deles se encontram. Não há misericórdia nos olhos do açougueiro. A pressão da ponta da faca aumenta... Arnaldo fecha os olhos e balbucia, trêmulo:

- Por... que... meu... Deus?

A faca entra impiedosa... um grito horripilante sai da garganta de Arnaldo. Com um movimento rotatório preciso, um enorme buraco se abre no ventre dele e suas vísceras jorram para fora e caem dentro de um balde. O sangue jorra... Arnaldo agoniza... Fortunato descalça as luvas, sorri e se dirige para a porta, apaga a luz e sai.

***************

- Henrique, meu filho! – grita Tereza.

- Sim, mamãe? – responde uma voz infantil, do quarto.

- Toma conta dos seus dois irmãos, que eu vou correndo ao açougue buscar uma carne! – sua voz mostra descontentamento. – Mandei o seu pai, mas ele deve ter passado no boteco... se depender dele, vocês não comem almôndega, hoje.

- Pode ir tranquila, mamãe!

- Como ir tranquila? – responde Tereza, nervosa. – O açougue já deve estar fechado.

Quando Tereza chega, vê o açougueiro abaixando a porta.

- Seu Fortunato, um instantinho, por favor! – sua voz é ofegante.

- Posso te ajudar, Dona Tereza? – pergunta gentil, levantando a porta e se desmanchando num dócil sorriso.

- Seu Fortunato... o Arnaldo esteve aqui?

- Arnaldo... Arnaldo... – Fortunato coloca a mão direita sob o queixo, desloca os globos oculares para cima, arqueia as espessas sobrancelhas, pensativo. – Arnaldo... não! Não esteve, Dona Tereza.

- Deve ter ficado no boteco! – a voz dela mostra irritação. – Vocês, homens, são todos iguais! – desabafa e, depois, mais tranquila. – O senhor poderia me arrumar um quilo de carne moída, para almôndega?

- Para almôndega? – ele sorri. – Tenho uma carne especial lá dentro. Um instantinho que eu já volto.

Entra na câmara frigorífica no exato instante em que Arnaldo exala o último suspiro. Com precisão cirúrgica, extrai um naco de carne da sua região glútea. Retorna e apresenta a peça de carne para Tereza:

- Veja, Dona Tereza! Carne especial... de primeira! – e sorri, triunfante. – está fresquinha!

Tereza deita um olhar ambicioso na peça de carne e seus olhos brilham, satisfeitos. Toca na carne e sente a maciez.

- Seu Fortunato, pode moer essa peça inteira! O que sobrar, eu congelo!

Com um prazer infinito, assobiando uma antiga canção, Fortunato passa a carne na máquina de moer...

- Uma ou duas vezes, Dona Tereza?

- Duas, por favor! É para fazer almôndegas!

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- Crianças, venham almoçar! – chama Tereza.

As crianças descem correndo, atraídas pelo cheiro gostoso da comida e se assentam, barulhentas, à mesa.

- Eu quero três almôndegas! – grita Fernanda e aponta para a travessa cheia de suculentas almôndegas ao molho de tomate com manjericão.

- Então, eu quero quatro! – retruca Guilherme, autoritário. – eu sou maior que você!

Tereza sorri, embevecida. Henrique, com o queixo apoiado nos cotovelos, pergunta:

- Não vamos esperar o papai, mamãe?

- Seu pai, meu filho? – suspira, resignada. – Seu pai está no boteco, com os amigos. Só Deus sabe a hora que ele vai chegar! – e assim falando, começa a servir os filhos.

Guilherme abocanha uma almôndega, fecha os olhos, em êxtase, e grita:

- Mamãe? Que tempero você colocou nessa almôndega? Ela está simplesmente divina!

- Não é o tempero, meu anjo! A carne é que é especial! – responde Tereza, sorrindo ternamente.

(Alexandre Brito)

Alexandre Brito
Enviado por Alexandre Brito em 15/12/2016
Código do texto: T5854009
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