A dor atrás dos olhos

- Pensa que é gostoso acordar com dor de madrugada? Dois pregos grandes cuidadosamente colocados atrás dos meus olhos, arranhando.

“Você não entende, na verdade, nunca me entendeu. Acha que sou um hipocondríaco. Depois daquela bateria de exames que deu um diagnóstico favorável toda e qualquer queixa minha se torna um pequeno riso. Doze anos de casamento, hoje é difícil encontrar alguém com uma jornada dessa, erros e falhas esfregadas continuamente na cara, dia a dia.

E os apagões? Você me chamou de dorminhoco, que a velhice bateu, que daqui um tempo devia usar fraldas.

E lá na superfície aquele riso contido. Acho que foi ai que comecei a te odiar.

Em fevereiro, voltando do trabalho sentado no coletivo senti náusea e tudo escureceu. Quando voltei já tinha perdido o ponto de casa, levantei babado, o motorista me olhou como se estivesse levando um débil mental. Desci tonto, a dor atrás dos olhos, forte, parecia que alguma veia fosse arrebentar. Tive de sentar na calçada pra não cair. Ali mesmo chamaram a ambulância, primeira vez na vida, para você, o primeiro vexame.

Disse a todos os vizinhos que nada havia acontecido comigo, que o calor tinha me dado mal estar afinal “está ficando mais velho”.

Uma resposta natural, automática, a qualquer reclamação minha. Quando ficamos juntos a diferença de idade lhe era atraente.

“Adoro homens experientes”

Você adorava mesmo o sólido séquito de amigos, o humor maturado, a segurança financeira.

Daí as dores ficaram frequentes, seu temperamento cada vez mais ácido, ríspido. Me lembrei que antes do primeiro apagão pensava na minha vida, minha prisão escolhida, minha rotina carcerária.

Acordar, fazer café pra você, levar as crianças para a escola, trabalhar, retornar, repetir.

Sem alterações a não ser suas provocações diárias e gradativas, insultos velados e pouca vontade de conviver.

Então vislumbrei um lugar escondido na minha cabeça, que só eu obviamente poderia acessar. Uma casa velha, com um buraco para entrar, tive de me esgueirar para passar. Poltronas muito boas me esperavam, café sempre quente, uma estante recheada com tudo que eu queria ler novamente mas não tinha tempo e qualquer música que eu pensasse virava trilha sonora.

Isso foi devolvido num sonho, quando apago vou pra lá. A dor atrás dos olhos ataca mais forte quando retorno.

As lembranças de minhas viagens ficavam mais vívidas.

A dor, parte ruim de algo bom.

Pode me culpar, tornei forte o egoísmo quando fiquei velho. Você sempre empurrou.

Abandonei meu emprego, afinal, a renda extra era pros teus caprichos. Podíamos viver bem com os rendimentos da minha aposentadoria.

Você ficou tão feliz quando contei sobre a demissão, a vasilha de vidro quase destroçou meu crânio.

Em diante, toda tarde visitava meu canto enquanto as crianças estudavam. Você me encontrava após sua academia, jogado no sofá com dores fodidas.

Cogitou o divórcio então, me acusou de encher a cara em casa.

É estranho pensar como não vi sua alma escrota!

A juventude sua arma, sua certeza inabalável sobre tudo, suas opiniões blindadas. Você pediu por essa conversa, entendeu toda essa pompa?

De terno perto da meia noite dou valor a essa última conversa.

É necessário também saudar o novo e não falo de você, sua idiota.

Esse invólucro gasto suportou o tédio mas anseia a satisfação.”

- Idiota é você pra começar, o que quer dizer isso, você vai aceitar o divórcio? Ou está pedindo o divórcio?

- Me deixe terminar, pedi dez minutos do seu precioso tempo para explicar as razões de minha despedida. Encontrei um novo eu escondido, esquecido, perto do meu refúgio. Ele não é tão tolerante, me fere pois quer ficar então arranha atrás dos meus olhos. Vou me aposentar finalmente, tente uma nova vida com seu novo homem em mim, quem sabe não se dão bem? Vou me deitar enquanto apago, não vou me estender, minha aposentadoria merecida começa fechando os olhos.

Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 30/12/2016
Código do texto: T5867583
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