Fantasmas Não Existem - DTRL 29,5

Entrou rapidamente no carro, fechou ela mesma a porta e encolheu-se no banco de trás.

– Boa tarde, meu filho. Vamos para Copacabana. Cinco de Julho, esquina com Santa Clara.

Logo em seguida o celular tocou. Era a filha.

– Cadê você, mamãe?

– Já estou dentro do táxi.

– Como assim, mãe? Você não ia voltar de carona comigo?

– Me deu uma dor de barriga, filha. Achei que não dava para esperar.

O taxista observou a velhinha pelo retrovisor. Ela não parecia estar se sentindo mal.

– Estou saindo do cemitério agora. Vou dar uma passadinha na sua casa.

– Não, filha, deixa pra passar lá mais tarde, à noite. Estou esgotada. Vou comer alguma coisinha e depois deitar.

– Tem certeza, mãe? Não acho bom você ficar sozinha numa hora dessas.

– Eu estou bem, filha – afirmou, começando a se impacientar – Não precisa se preocupar.

– Tudo bem, mãe. Mais tarde a gente se fala. Fica bem, tá?

Desligou e mandou uma mensagem para o filho antes que ele também a chamasse. Depois se dirigiu ao motorista do táxi.

– Acabei de enterrar meu terceiro marido, meu filho. Acho que agora não me caso mais.

O motorista olhou-a novamente pelo retrovisor tentando adivinhar-lhe a idade. Disse um “sinto muito, senhora” protocolar, mas amistoso, querendo que a conversa continuasse.

– Meu marido era dezessete anos mais novo que eu. Pela lógica, era para ele ter me enterrado.

Bernadete não era uma senhorinha frágil, tinha uma aparência vivaz e saudável. Pele, olhos e músculos aparentando algo entre sessenta e sessenta e cinco anos de idade.

– Estou cansada de doenças, de lutos, de mortes, meu filho. Não é fácil chegar viva, lúcida e com saúde aos oitenta e um anos de idade. São tantas perdas e tão frequentes que a gente fica treinada – disse, sem esperar interlocução ou resposta. Depois, continuou divagando, mas já sem falar, até o final da viagem.

Em casa, deixou-se ficar por um tempo sentada, planejando o que faria durante o resto do dia. Não estava com fome nem sentia o corpo cansado. Sabia que precisava manter-se ocupada; não acolher a tristeza, mas espantá-la. Não havia frieza nessa atitude, mas praticidade. Na sua idade, não tinha a vida pela frente, não tinha tempo para simplesmente

esperar que o luto passasse.

A primeira coisa a fazer era esvaziar o guarda-roupa de Fred. Sabia das experiências anteriores que esse era o primeiro desafio a ser encarado.

Também precisava se alimentar.

Examinou o freezer repleto de comidas congeladas. Fred, que fora farmacêutico clinico por toda vida, tornara-se um cozinheiro gourmet caprichoso depois que se aposentara. Trocara o rigor na confecção de prescrições médicas pela exatidão ao executar receitas culinárias, era o que Bernadete pensava.

Na prateleira de cima havia tortas preparadas com as sobras da ceia do último Natal. Lembrava-se das palavras do marido: “Note bem, meu amor, o peru está à esquerda, o pernil à direita. O peru, que você gosta, do lado do coração, não esqueça.” Suspirou de saudade. Peru era sua comida de Natal predileta. Retirou-o do freezer e colocou-o para descongelar sobre a bancada.

No Natal, Fred já sabia de sua doença e também que ela era fatal e intratável. Só contou a Bernadete, entretanto, quando teve que ser internado, dez dias antes do suspiro final. Agora ela entendia porque naquele Natal ele lhe dera uma nova aliança e a fizera, em tom de brincadeira, prometer que se ele morresse ela não se casaria de novo, nunca mais.

Porque precisava atenuar a solidão que aquele apartamento vazio de Fred lhe causava, conectou o celular na caixinha de som que havia sob o móvel da sala. A música lhe faria companhia e lhe traria bom ânimo para encarar a tarefa que ela sabia mais difícil quanto mais fosse adiada.

Havia terminado de esvaziar os cabides do armário do marido no quarto quando ouviu tocar uma música que não se recordava de ter no celular.

From here, where I am, (*)

I scream your name,

You don´t know

How I´m feeling

How deep is my pain

Eram os Lame Gravediggers (**) , a banda barulhenta, trash e pesada que Fred formara com o primo e os amigos quando era jovem.

Definitivamente, ela não tinha aquilo no celular. Sentiu um arrepio, respirou fundo. “Fantasmas não existem”, pensou, e foi até a sala.

A música alta pareceu amplificar em suas narinas o cheiro de Fred, impregnado em tudo que havia naquele ambiente, um pouco sombrio e muito decorado.

Passou adiante a música, sentindo o coração acelerar-se. Não entendia como ela havia aparecido no seu celular, mas sabia por experiência que esse era o tipo de coisa esquisita que costumava acontecer logo em seguida ao óbito de pessoas chegadas. Escancarou a janela para que um pouco de ar entrasse. Depois foi até a cozinha pegar um copo de água. Assustou-se com a porta do freezer aberta, tinha certeza de tê-la deixado fechada.

Ao passar de volta pela sala, pegou o celular com a caixa de som e levou-os para o quarto. Preferia evitar que o vizinho viúvo do apartamento ao lado, tão bom cozinheiro como Fred e muito bem apessoado, fizesse algum juízo maldoso sobre ela por escutar música alta no dia que enviuvara.

Quando terminou a limpeza do armário restavam sobre a cama duas malas de roupas para doar e um saco cheio de lixo a ser descartado. Sentiu-se, enfim, com fome e cansada.

Na cozinha, ao desembrulhar a comida da embalagem, viu que não era de peru a torta que havia descongelado, mas de pernil. Pelo cheiro, percebeu que estava mais ao gosto do falecido do que ao seu, muito temperada. Fez uma careta de desgosto, seu paladar pedia uma comida simples, com tempero delicado, mas comeu mesmo assim, fazendo a comida, cujo sabor pareceu-lhe excessivamente amargoso, descer com a ajuda de um copo de Coca-Cola.

Depois, esgotada, foi se deitar bem antes do horário a que estava habituada. Quando a filha ligou, respondeu com a voz pastosa que já estava deitada, sentia-se bem e que depois se falavam.

Acordou de madrugada sentindo cólicas. Tentou resistir permanecendo na cama, mas logo a dor se tornou insuportável. Correu para o banheiro antes que acontecesse um desastre. Lá ficou por toda a noite num mal-estar desconcertante, se lembrando da torta de pernil, de como ela havia lhe caído mal, mas achando improvável que uma comida preparada pelo meticuloso Fred há tão pouco tempo pudesse estar estragada.

Sentia apenas dor de cabeça e uma leve náusea quando voltou para a cama já no alvorecer, desmilinguida e esvaziada.

Perto das nove, a filha ligou para saber como ela estava. Respondeu com a voz embolada que se sentia bem, mas ainda estava deitada, antes do telefone cair de sua mão sem forças, deixando a filha do outro lado sem as outras respostas que precisava.

A filha só conseguiu chegar ao apartamento de Bernadete por volta de uma hora da tarde. Depois dos fatos seguintes consumados, pareceu-lhe que algo conspirara para que ela se demorasse. Foi parada numa blitz, teve um pneu furado e pegou um engarrafamento tremendo por causa de uma manifestação no centro da cidade.

Entrou pela porta da cozinha, não tinha a chave da sala. Notou a aparência estranha dos restos de comida sobre a pia, estavam esverdeados e minando um líquido esbranquiçado. Nem as moscas ou as formigas se aproximavam.

Encontrou a mãe praticamente desmaiada no quarto. Tomou-lhe o pulso, estava fraco. Os olhos não tinham sangue e a língua estava áspera e ressecada. Tentou falar com ela, mas só ouviu palavras desconexas em resposta.

Levou-a para o hospital com a ajuda do marido e do irmão mais velho. O diagnóstico foi de desidratação profunda e os prognósticos bastante desfavoráveis.

– Se ao menos vocês a tivessem trazido algumas horas antes – foi o que os médicos disseram.

No dia seguinte Bernadete entrou em coma. Faleceu no terceiro dia depois de internada.

Para alguns familiares mais sentimentais, restou uma versão romântica de que Bernadete morrera de tristeza pela morte do companheiro amado, hipótese que os mais cartesianos descartaram argumentando que a causa mais provável era que a comida congelada estivesse estragada.

Ou envenenada previamente por Fred, foi o que pensou, mas não falou, o primo e parceiro da época dos Gravediggers, para que ele morresse sossegado em casa, talvez junto com a esposa, antes que a doença se agravasse.

A filha de Bernadete, entretanto, defende uma versão mais sobrenatural, meio gótica. Afirma que o espírito do padrasto de alguma forma interferiu na comida e atrasou o socorro da mãe para levá-la com ele, braços dados, pela vida eterna, juntos e para sempre.

FIM

(*) Daqui onde estou

Eu grito seu nome

Você não sabe

Como me sinto

Como é profunda minha dor

(**) Coveiros Mancos

Melisas Ribeiro
Enviado por Melisas Ribeiro em 07/01/2017
Reeditado em 26/01/2017
Código do texto: T5875207
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.