Alma

A tempestade caía enquanto eu bebia tudo que via pela frente naquele boteco cheio de bêbados e vadios. Em mim trovões se faziam a cada batida do coração que galopava sentimentos tão selvagens. Eu nunca soube domar nada, nem a mim. Por isso bebia, acreditando que mergulhando assim no álcool eu me esqueceria do que me feria. Por toda a vida fracassei em me amar, então quando via um pouco de mim em alguém, me amava no outro. Não era outrem que eu amava. Nunca foi. Sempre foi apenas confusão da minha cabeça e da minha alma.

A ressaca de toda manhã já era tão usual, assim como as vozes que me assombravam toda noite. O vício era meu refúgio, e assim eu persistia, errante. Esses machucados na pele são apenas para esquecer os do espírito. Olhei-me no espelho noite passada, e atrás de mim o reflexo de um demônio qualquer. A visão tão embaçada só me confundia. Algo me perseguia há alguns dias. E alimentava em mim o ódio que eu sentia de mim mesmo. Vi meu reflexo e encarei-me, algo se fortaleceu dentro de mim; eu sorri e percebendo os dentes desalinhados e amarelos vi ali alguém que eu sempre odiei... um ódio crescente e infinito se fez forte. Fechei a mão e num golpe só dei um soco no espelho que se estilhaçou. Não sentia dor, mas sim alívio. O sangue escorreu no vidro manchando meu reflexo. E eu senti alguma coisa vibrar de alegria com minha atitude. Era algo monstruoso que se alimentava da minha fraqueza.

Não chorei, pois nunca choro. Desaprendi. Os olhos ficam marejados, a voz embargada, mas as lágrimas não chegam. Sinto falta de chorar, de lavar a alma. Minha alma está suja e envergonhada. Talvez eu a tenha negociado no inferno e nem lembro mais. O corpo, essa coisa deformada serve apenas para julgamentos alheios. E o brilho nos olhos de outrora se apagou. Eram vagalumes mortos. A escuridão e trevas estavam ativas em mim. Eu sentia algo demoníaco me devastar. E não podia fazer nada. Nada.

Enfaixei minha mão num curativo mal feito para os machucados de ontem. Pus minha melhor roupa e maquiei meus sentimentos. Mesmo assim me sentia nu. Um alvo a todo momento. Fingi um sorriso amarelo e enfrentei o mundo. Esse mundo que não me pertence e nem eu pertenço a ele. Hoje já nem dói mais encarar parcos sentimentos e emoções tão porcas. O palco não importa, nem a trama, o que importa são os holofotes, estes sempre iluminam os melhores atores dessa vida ingrata.

Ao sair no fim da madrugada de casa avistei um gavião. A neblina ainda era muita e a penumbra total. A ave remexia alguma carniça. De novo a voz que sempre me acompanhava me disse agora para eu ir ver o que aquele gavião comia. Ao me aproximar um pouco mais vi vários urubus rodeando aquela carcaça. Um pássaro Anu-preto alçou voo e deu seu grito de mau agouro. Assustei-me, mas ele só estava incomodado com minha presença. Era um gramado úmido do sereno da noite que eu pisava, o orvalho brilhava sobre a vegetação. Pensei em dar meia-volta. Mas a voz tornou a pedir que eu seguisse em frente. Agora havia lama sob meus pés, resquícios da tempestade do dia anterior. Estranhei meus sapatos que não deixavam pegadas no chão. Cheguei perto do animal morto. O gavião permaneceu imóvel. Os urubus me observavam pousados nos galhos de uma árvore seca.

Quando olhei o cadáver levei um susto que meu coração pareceu congelar. Lembrei-me do que passou: a corda, a cadeira. Foi num galho daquela árvore há alguns dias. A voz me convencera a fazer aquilo. Estava insuportável viver. Eu não fui forte, a fraqueza me foi mais presente. A voz parecia um demônio, mas era um demônio amigo, traidor. Por dias eu vaguei por aí, acreditando me embebedar e me ferir. No espelho só o que eu via era meu corpo de antes, que agora não me pertencia mais e estava ali, só podridão infestada de moscas e vermes. Os machucados não doíam por que não havia mais dor. Mas a alma vai para sempre doer. Tarde eu me dei conta de que agora eu sou apenas uma alma penada, obsessiva, andando de bar em bar, me odiando eternamente. Eu gritei. O sol apareceu, um demônio me surgiu e me pegou pela mão enquanto os pássaros carniceiros aproveitavam o banquete do que restou de mim.