Vermelho-Sangue

Ele desperta de um sono profundo e sem sonhos. E percebe – que horror – que seus olhos fitam escuridão e seus dedos arranham madeira. Ele foi sepultado vivo.

Não se pergunta a razão. Apenas grita, e é o único a ouvir seu próprio terror. Tudo o que ele sabe é que, agora, como um verme, deve cavar para viver.

E cava. Não sabe de onde vêm as forças que o tornam capaz de arrancar a tampa de seu esquife ordinário, lasca por lasca, e destroçar a terra ainda fofa que cai sobre seus olhos.

Somente cava. A cova é rasa e o ar gelado da noite não tarda a castigar seu rosto. Está sujo e estarrecido, mas livre.

Julgara-se morto; julgaram-no morto. Por um instante ou por uma eternidade, de fato, esteve em outro lugar, onde seus sentidos de nada lhe serviam. O mundo se apagou. Não viu paraíso, purgatório ou inferno. Agora, jaz de pé, olhando para o próprio túmulo vazio, e teme cogitar que nenhuma dessas coisas realmente exista.

Afinal, então, não foram os céus que decidiram ser bons para com ele? Se Deus houve por bem lhe dar mais dias na terra, por que questioná-lo? Este humilde homem sabe ser grato às dádivas do Senhor. Está vivo; esse conhecimento lhe basta.

Não sabe quanto tempo se passou. Talvez alguns dias. A família decerto ainda o chora e será feliz outra vez com o seu retorno, sob as graças divinas. Tudo o que ele quer é abraçar novamente os dois filhos pequenos e beijar na boca sua terna esposa.

Ele ouve os lobos lamentarem tristemente nas colinas. Nunca a sua canção lhe pareceu tão alta e próxima. Estão ganindo e uivando como se junto de seu ouvido. Apurando a visão, ele quase pode enxergar seus pequenos olhos de rubi na noite. A música que eles cantam é repleta de medo e pena.

As luzes da casa estão acesas e a porta está trancada. Nunca imaginou ter de bater para entrar no próprio lar, mas ele o faz. Seu filho mais velho aparece para recebê-lo; de pronto, é como se não o conhecesse. O menino não amadureceu e o homem sabe que pouco tempo se passou desde que o viu pela última vez. Talvez não reconheça seu rosto. Pode ser pela lama que lhe cobre as faces. Pode ser pelo inesperado que é ver voltar o pai.

A mãe deixa cair a xícara que tem nas mãos ao chão. Não repara que estilhaços lhe acertam os pés; é seu marido que está em casa.

Depois que ela o banha em silêncio, longamente, e o veste com roupas limpas, não é cedo demais para jantar. A família ainda não sabe conter o pranto quando todos se sentam. Lágrimas de alegria e de espanto. Mas não fazem perguntas à mesa. O homem sorri. Contudo, a boa comida da casa não lhe apetece, muito embora seu apetite seja grande. A comida é como barro e o vinho tem gosto de fel.

Via se deitar cedo. Ele está feliz; para as crianças, é como se nunca tivesse partido. A esposa, todavia, reza muito antes de ir para a cama, grata ou aflita.

Eles não se amam esta noite. Ele a beija. Porém, não a quer, como não quis sua comida e sua bebida. Sente o corpo lânguido. Sabe que está vivo, mas não muito. Os lobos ao longe o assanham e o desafiam; só ele consegue ouví-los. O vento também canta. Somente quando o sol boceja no horizonte ele é capaz de adormecer.

Não há quem o faça se levantar para a refeição do meio-dia ou mesmo para um repasto qualquer à tarde. Ao pôr-do-sol, finalmente, ele se sente disposto. O jantar feito com primor pela esposa uma vez mais o desagrada. Ele brinca com as crianças, que nada desejam entender, enquanto ela chora no quarto o mal incurável do esposo, que lhe pôs no destino uma morte mal-morrida e um sorriso esquisito e constante nos lábios.

Tarde da noite, olhos muito abertos, ele conversa com a mulher. Durante o dia, sonhou que padecia de uma estranha doença trazida por um homem pestilento. Ele tinha raiva do mundo. Queria espalhar sua praga por toda a parte e, assim, ter companhia em sua vida amaldiçoada. No sonho, esse homem o atacava e o arranhava nas costas e o mordia na garganta.

Ela se sobressalta. Na outra semana, quando o enterraram, ele tinha feias marcas nas costas e no pescoço. Agora, já não as tem.

Ele quer amá-la esta noite. O corpo dela lhe dá vontades. É quente. Pulsa.

Mal se dá conta do que fez quando ela se debate contra ele, berrando imprecações, com o tenro colo coberto de sangue. Ela leva a mão ao pescoço ferido. Grita muito. Do quarto ao lado vem um choro infantil.

Tudo o que ele vê é o vermelho-sangue. A bonita camisola de rendas que deu a ela quando completaram cinco anos de tranqüilo matrimônio. O colo arfante. Ele vê o vermelho. O sangue.

Os lobos. A lua. As montanhas e o vale. Tudo à sua volta sussurra e parece cantar vitória para o homem, e ele não sabe a razão. A natureza, entretanto, está ao seu lado.

Não se recorda bem; algo aconteceu. Ele estava em casa com sua esposa e seus filhos.

Deveria ter sido bom, mas foi calamitoso e deixou-o zangado. Ele só desejava voltar para sua vida e vivê-la como sempre fez. Abraçar as crianças e beijar a mulher na boca. Alguém gritou. Alguém se feriu, houve fuga e pavor. Nada é como ele quer!

Não se lembra de como fez o que precisava ser feito. Sabe apenas que, de alguma forma, aplacou a histeria de sua mulher e as lágrimas de seus filhos. Ninguém mais está sentindo dor agora. Disso, ele tem certeza.

Mas a noite foi ruim e ele está cansado. Passa a mão pela barriga; está contente, pois não sente mais fome, sede ou ganas de abraços. Basta de abraços esta noite. Seu coração está cheio de dúvida, mas também de satisfação. Ele poderá dormir de estômago cheio e sem gritos ou choradeira a incomodá-lo.

O túmulo que outrora rejeitou lhe parece aconchegante agora. Nascemos do barro; dormir na terra já não lhe soa como má idéia. Ele se deita e ela o acolhe. Cobre-se bem para não ser notado.

É frio e as trevas têm um beijo mais doce do que o de sua esquecida esposa. Tudo está como devia estar.

Amanhã à noite, ele poderá, talvez, sair ao encontro de outras. Escolherá uma nova amada e se fará amar por ela. Dar-lhe-á de presente uma camisola de rendas brancas. Irá abraçá-la e amá-la como somente ele pode amar uma mulher, e irá saciar-se nela. Não haverá gritos dessa vez, nem choro de crianças. Unicamente o vermelho-sangue.

Camila Fernandes é escritora, ilustradora e revisora de textos. Faz parte do grupo Necroautores e publica seus textos em: www.necrozine.blogspot.com, www.fabricadeletras.blogspot.com, www.circulodecronicas.com, www.estronho.com.br, www.cpoesia.net, www.novaliteratura.com, www.prefacio.net, www.suigeneris.pro.br e recantodasletras.com.br

Camila Fernandes MilaF
Enviado por Camila Fernandes MilaF em 07/03/2005
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