Se essa rua fosse minha

Se essa rua

Se essa rua fosse minha

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas

Com pedrinhas de brilhante

Para o meu

Para o meu amor passar

Eu ouvi tantas vezes essa música quando era criança que nunca parei para pensar nela. Todo mundo já ouviu essa música. Minha mãe cantava para mim; na escola as professoras cantavam. Mas um dia eu comecei realmente a ter medo dela. E seu significado mudou totalmente para mim.

*****

Era hora de mudar. O apartamento onde eu morava com a minha família estava ficando pequeno e meu pai realmente queria se mudar para uma casa maior. Depois de muito procurar, resolveram se mudar para uma cidade mais calma no interior. Meu pai podia chegar ao trabalho de carro em uma hora e a cidade era bem tranquila e tinha uma boa vizinhança. Um lugar perfeito para mim e minha irmã mais nova. Eu tinha doze anos e minha irmã tinha seis. Claro que no começo eu não quis me mudar e deixar meus amigos para trás, mas minha mãe insistiu que eu faria novos amigos e seria divertido. O que eu achava mais legal na casa nova, além dela ser enorme e ter um quintal bem grande, é que bem em frente tinha um bosque. Sim, neste momento você deve estar pensando na música, mas eu já chego lá.

Assim que nos mudamos, a primeira coisa que minha mãe disse foi: “Nunca vá passear sozinho naquela floresta, é perigoso.”. Claro, eu sei disso, mas eu gostava de explorar. Meio que contrariado, eu ouvi minha mãe e não me meti lá. Alguns dias depois eu fui para a nova escola e realmente, fiz amigos bem depressa. Logo perguntei a eles sobre o bosque em frente à minha casa.

- Ah. Você se mudou pra Rua das Pedras, né? – Disse meu novo amigo assim que perguntei sobre o lugar.

- Sim! Aquela rua é bem quieta. Desde que cheguei eu estou com vontade de ir naquele bosque.

- Por quê? – Outro menino me perguntou. – É só um punhado de mato e árvores. Não tem nada lá.

- Porque parece divertido! Eu nunca explorei uma floresta antes.

- Olhe, não tem nada de legal naquele lugar. E se fossemos você, nunca iriamos lá.

Depois disso eles resolveram me ignorar sempre que eu tocava no assunto, ou então mudavam completamente o rumo da conversa. Resolvi desistir, não queria que meus novos amigos se distanciassem de mim por bobagem. Pelo menos, eu pensei ser bobagem.

*****

Fazia poucos meses que eu me mudara para lá. Já estava acostumado com a cidade e com as pessoas, até mesmo com a paisagem. As férias de julho haviam chegado, então eu tinha autorização da minha mãe para dormir mais tarde.

Estava no meu computador naquela madrugada, diria até distraído, mas um barulho do lado de fora me chamou atenção. Eu ouvi um pequeno assovio, uma espécie de uivo baixo. Bom, era julho, frio, imaginei que fosse o vento, mas olhei mesmo assim. Lá fora eu vi uma garotinha. Ela usava roupas de inverno antigas, sujas e rasgadas. Tinha os cabelos loiros e compridos e era tão branca que parecia nunca ter tomado sol na vida. Também reparei que ela era muito nova, talvez tivesse a idade da minha irmã. Abri a janela do meu quarto, que ficava no segundo andar, para ver melhor. Ela estava cantando, e a voz dela me deu arrepios.

Se essa rua

Se essa rua fosse minha

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas

Com pedrinhas de brilhante

Para o meu

Para o meu amor passar

Ela repetiu esse verso umas três vezes enquanto saltitava rua abaixo. Se eu me lembrava direito, essa música era um pouco mais comprida. Ela começou a dar piruetas no lugar e continuou cantando este trecho da música. Eu fiquei hipnotizado olhando para ela lá embaixo. Então ela parou de pular e dançar e olhou diretamente para mim. Por um momento eu congelei e fiquei todo arrepiado. Os olhos dela tinham olheiras roxas profundas e ela me encarava de um jeito assustador. Percebei que eu havia parado de respirar. A garotinha sorriu e saiu correndo floresta adentro.

*****

No dia seguinte eu contei para minha mãe o que havia visto e, exatamente como imaginei, ela não acreditou em mim. Disse que devia parar de ver filmes de terror e me concentrar nos estudos.

Será que havia visto um fantasma? De verdade? Resolvi perguntar para os meus amigos da escola, mas nenhum deles me disse nada. Pareceram assustados quando perguntei se alguma menininha tinha morrido naquele lugar e mudaram de assunto. Será que ninguém ia me dizer nada?! Fiquei um pouco frustrado e pensei em descobrir sozinho.

No fim da tarde eu fui até o começo do bosque. Assim que cheguei lá senti um arrepio na espinha, como se eu não pudesse entrar lá. Ou como se não quisessem que eu entrasse lá.

- Ei, moleque! O que diabos pensa que está fazendo aí?

Me virei assustado e vi que um senhor estava parado bem atrás de mim com cara de poucos amigos. Era um senhor bem velho, seus poucos cabelos eram totalmente brancos, tinha barba por fazer, seus olhos eram leitosos de um jeito estranho e parecia bem bravo. Na verdade, eu até o achei parecido com algum marinheiro saído de alguma história de terror, porém sem o uniforme.

- Eu só vim ver o bosque.

- Não está pensando em entrar ai, eu espero!

- Não senhor.

- Bom mesmo. É muito perigoso. Uma vez que se entra, nunca mais se volta.

O velho deu um sorriso banguela e assustador para mim.

- Então existem mesmo histórias sobre esse bosque?

- O Solidão? O que você acha?

- Solidão? – Que nome esquisito para um bosque.

O velho soltou uma gargalhada que me fez dar dois passos para trás.

- É só uma homenagem, sabe? Da cidade. O bosque tem esse nome há mais de setenta anos!

- Uau. O senhor conhece a história dele então?

Peguei o velho desprevenido. Ele me olhou como se me analisasse. Queria saber o motivo de meu interesse.

- Eu moro aqui desde sempre. Lógico que conheço histórias a seu respeito. E se quer uma dica minha. Fique bem longe dele.

Falando isso, ele se virou e foi embora.

Naquela noite eu fiquei de prontidão na janela esperando a garotinha. As chances de ela aparecer de novo eram praticamente nulas, mas ela veio. Às quatro da manhã eu ouvi aquele assovio baixo novamente. A garotinha veio saltitando pela rua cantando aquela música. Se essa rua, se essa rua... Eu fiquei olhando pra ela atentamente. Estava apavorado. Mesmo sendo um fantasma, ela parecia muito real para mim.

A garotinha parou bem na frente da minha casa e olhou para cima. Estava me encarando de novo. Aqueles olhos grandes e azuis com olheiras enormes, e pálida. Ela ficou olhando para mim por tanto tempo que eu estava quase fechando as janelas e me escondendo embaixo da cama. Depois um tempo que pareceu uma eternidade, ela sorriu para mim e mexeu os lábios, mas eu não consegui ouvir o que ela disse. Serrei os olhos e me inclinei mais para baixo apurando a audição.

- ... coração...

Não consegui ouvir direito, mas aquela palavra ficou gravada na minha cabeça. Ela olhou para baixo, colocou a mão no peito e então eu fiquei chocado. Sangue começou a jorrar do peito dela. Muito sangue mesmo. Ela cuspiu mais sangue no chão e deu um largo sorriso para mim, então continuou descendo a rua cantando.

Nessa rua

Nessa rua tem um bosque

Que se chama

Que se chama Solidão

Eu caí sentando e sem forças no chão. Comecei a respirar mais rápido e antes que eu percebesse, estava chorando. Esperei me acalmar e corri para o computador, procurei pela letra completa da música. Logo após suas últimas palavras a música seguia assim:

Dentro dele

Dentro dele mora um anjo

Que roubou

Que roubou meu coração

Mas a última estrofe não fazia muito sentido, então parei nessa. Ela havia cantado algo sobre coração bem baixinho, e depois sangue saiu do peito dela. Eu precisava saber o que acontecera ali antes da próxima noite.

*****

Na manhã seguinte eu voltei para o bosque, mas não consegui entrar. Como o velho não voltou a aparecer eu voltei para casa e pesquisei no computador qualquer coisa sobre assassinato naquela rua. Não encontrei nada. No fim da tarde eu já estava começando a ficar irritado. Continuava sem saber quem era a menina e o que havia acontecido, mas naquela noite, não importava o quanto eu esperasse por ela, ela não veio. Nem na outra noite e nem na outra. Dez dias se passaram e eu continuava sem encontrar nada de útil na internet, meus amigos continuavam a ignorar o assunto e eu não tinha coragem de entrar no bosque.

Já era quase final de julho e eu estava quase desistindo quando eu vi algo estranho. O sol estava se pondo e eu olhei de relance para a janela. Aquele velho estava lá na entrada do bosque. Resolvi descer e falar com ele.

- Ei vovô. O que está fazendo aí?

Ele se virou lentamente para mim.

- Então. Desistiu?

- Desisti?

- De entrar no bosque?

Dei de ombros. O velho deu um sorriso amarelo e tornou a olhar para o bosque e de repente começou a cantar. Aquela musiquinha infantil que estava me atormentando. Ele a cantou até o final com um tom triste. Quando terminou ele continuou a olhar para o bosque, mas desta vez, ele estava magoado.

- Já faz muito tempo. Hoje faz 75 anos.

Olhei para ele sem entender uma única palavra. Ele estava falando do nome do bosque?

- O que faz 75 anos, vovô?

- Que perdi minha irmãzinha. Ela foi sequestrada por algum maníaco. Foi arrastada pra dentro deste bosque e assassinada de modo terrível. Nunca encontraram o coração dela.

Neste momento senti todo o ar deixar meus pulmões. Aquela garotinha teve um fim tão horrível assim? Lágrimas correram pelos meus olhos sem eu nem entender o motivo de estar chorando.

- Não tem por que chorar menino. Já faz muito tempo. Além do mais, o maníaco não está mais entre nós.

Engoli em saco e me atrevi a perguntar:

- O que houve com ele?

O velho deu um largo sorriso e seus olhos brilharam de uma forma muito bizarra.

- Está morto. – Olhou para mim e completou – Nunca encontraram o coração dele.

E saiu cantando.

Se eu roubei

Se eu roubei teu coração

Tu roubaste

Tu roubaste o meu também

Se eu roubei

Se eu roubei teu coração

É porque

Só porque te quero bem

Stephanie Telmo
Enviado por Stephanie Telmo em 22/02/2017
Código do texto: T5920880
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