LEMBREM-SE DOS ESQUECIDOS - GUERRILHA DO ARAGUAIA

O voo de Brasília até o pequeno sítio ao norte da Serra das Andorinhas foi tranquilo. Após quarenta anos do termino da guerrilha, mais um cemitério clandestino havia sido descoberto, outros já tinham sido revistados, na verdade em 1975 a Brigada de Selva fez o rescaldo da zona de conflito escavando, removendo, incinerando ou jogando as ossadas nos rios da região, mas vez por outra surge algo novo e a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos envia um grupo misto de civis e militares para investigar a fim de elucidar a conturbada ação governamental da época. Nossa missão agora não era dar fim as provas, mas sim dar nomes aos despojos.

Na lida do campo, um fazendeiro teve seu arado enroscado em algo parecido com uma lona. Tentando desatar o equipamento deparou com partes de um esqueleto envolto no que parecia um paraquedas. Acionada a polícia local, suspeitaram serem os restos de algum guerrilheiro perdido. Uma inspeção superficial mostrou que no local se encontravam sete ossadas diferentes. A Polícia Federal assumiu o caso preparando o local para nossa chegada.

Trabalhamos por uma semana naquela vala rasa que os militares tornaram um pequeno cemitério sem lápides, nem sequer uma cruz de madeira protegia aquelas almas penitentes. Depois de Xambioá, tínhamos o mais promissor deposito da vergonha produzida pela ditadura no Brasil. Não sete, mas vinte e seis pessoas foram enterradas ali e seus restos iam sendo acondicionados em caixas plásticas. A princípio, faríamos apenas a verificação antropológica, estimando sexo e possíveis traumas, apesar das dificuldades, pois muitos esqueletos estavam incompletos.

À medida que os trabalhos se adiantavam, a consternação da equipe aumentava. Informações dos ex-combatentes, tanto das forças repressoras quanto dos guerrilheiros diziam que eram pouco mais de oitenta homens e mulheres que chegaram ao Araguaia pregando o desconhecido comunismo, no entanto, somando-se sobreviventes e outras vítimas descobertas, aquilo ali mais parecia um massacre. Jamais imaginávamos encontrar tantos esquecidos naquele local.

Durante as escavações, e mesmo a noite quando nos recolhíamos, tínhamos a sensação de sermos observados. Numa conversa informal na hora do almoço, um dos assistentes brincou dizendo que os espíritos dos mortos vigiavam nossas ações. Pelo menos uns três fizeram o sinal da cruz.

Tendo muito a fazer, mesmo domingo sendo folga, resolvi analisar algumas fotos da pericia enquanto os colegas seguiram para a cidade, o isolamento começava a pregar peças em todos nós.

Eu nasci no ano de 1972, meu pai trabalhava em um circo na época, ele nunca soube o que era o famigerado comunismo, não ouvira falar em Lamarca, nem da guerrilha do Araguaia, mesmo assim, por ter os cabelos compridos passou dias confinado num porão juntos com outros como ele detidos arbitrariamente. Cresci ouvindo suas histórias de angustias, então acabo me simpatizando com a luta daqueles ali abandonados. Queria o mais breve possível revelar ao mundo o nome daqueles que resistiram ao infame regime dos generais, queria dar a suas famílias o conforto de saber que seus filhos perdidos enfim conquistaram um lugar de repouso, pensava que por muito pouco meu pai poderia ter tido um fim parecido.

O sol estava a pino enquanto eu analisava algumas marcas feitas no valão, aquele cemitério possuía ainda vários segredos a serem revelados. As moscas alvoroçadas aumentavam a sensação de ser vigiado. Do acampamento era possível ver uma grande área aberta, não havia como alguém se ocultar, bem longe era a borda da mata, o calor dava a impressão de que colunas de vapor emanavam suaves do solo, meus olhos divisavam pequenas criaturas bailando, seguindo-as em direção ao céu. Um sorriso brotou em meus lábios, minhas pernas fraquejaram. Tombei vítima de meu próprio peso.

Difícil saber quanto tempo se passou, aos poucos recobrava a consciência. Primeiro ouvia sons ritmados de vozes humanas roucas e batidas de pés no solo poeirento, meus olhos se acostumavam com a penumbra local, depois meu olfato denunciava um cheiro doce de jasmim, quase nauseabundo, o corpo parecia envolvido por uma camada macia e quente, era como ser devolvido ao próprio útero de minha mãe, eu estava em paz.

Encontrava-me sepultado de pé numa cova tão estreita que mal podia mexer. Alguns indígenas circulavam cantando quase pisoteando minha cabeça. Faziam com que ingerisse um caldo de folhas muito amargo que roubava toda minha vontade de viver. Dentro daquela oca pensava encontrar o meu fim.

Daqueles momentos de terror, as visões, os delírios e as revelações de uma mente atordoada são nítidas como seu eu mesmo as tivesse vivido.

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Sem aviso, três helicópteros sobrevoavam a pequena aldeia Suruí despejando seu conteúdo truculento sobre os inocentes selvícolas. Tomados de assalto, os índios se enfiaram nas ocas armando-se com tacapes e flechas. Rapidamente dominados pela brigada paraquedista, homens, mulheres e crianças foram jogados de bruços na área central da aldeia. Seus lideres, previamente identificados por um militar disfarçado de funcionário do Serviço de Apoio ao Índio, foram arrastados até a presença do oficial em comando. Seriam os guias das forças combatentes, deveriam localizar e identificar acampamentos comunistas. Ao sul, o exército montou o centro de comando no local conhecido como Bacaba.

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De 1967 até 1974 os Suruís foram coagidos a lutar numa guerra que desconheciam, eles abriam as picadas, localizavam acampamentos do PCdoB, identificavam camponeses colaboradores, ajudavam a enterrar os vencidos e em falta de prostitutas suas mulheres saciavam a luxuria dos brigadistas.

Eu parecia embriagado pelo cheiro do jasmim, as visões açoitavam meu espírito como o verdugo do carrasco. Entre um despertar e outro elas seguiam sem trégua, a cada golpe, mais eu sentia a dor daqueles que jaziam no solo do Brasil central.

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Um tenente com a farda decomposta passou arrastando pelos cabelos uma bugra aos berros, ela foi jogada dentro da barraca. A menina gritava enquanto era violada. Tentando se defender, usou os resquícios de forças que ainda tinha, mordeu com toda energia a bochecha do militar. Seu urro de maldição ecoou pela mata. A socos e pontapés foi levada para o castigo. Ela foi estuprada por todo o efetivo presente. Saciados, espancaram, urinaram e como se não bastasse, o tenente apareceu com uma pedra do tamanho de uma batata inglesa, introduzindo-a na vagina deflorada, pediu linha e agulha, costurando-a lá dentro. Se ela não servisse para lhe dar prazer, não daria a mais ninguém. Por fim, com a moça desmaiada, pisou em seu antebraço e com a coronha do fuzil esmagou suas mãos. A índia ficou atada num tronco de jatobá por dois dias até que na segunda noite seus lamentos cessaram e com eles seus sofrimentos. Seu descanso foi na cova junto a outros indigentes.

Os helicópteros decolavam umas três vezes ao dia. Sabedores da escassez de armas e munições entre os guerrilheiros, faziam voos rasantes sem o temor de serem alvejados por tiros de pistolas ou espingardas de caça, tanto ineficaz em combate, do lado de fora, pendurados pelos pés corpos sem vidas balançavam de um lado a outro com o intuito de abalar o moral dos revolucionários. No acampamento, cabeças decapitadas eram jogadas aos pés dos prisioneiros para que estes identificassem os rostos deformados de seus pares.

Os mais resistentes durante as torturas, como castigo eram pendurados numa espécie de jirau. Duas forquilhas fincadas no solo com um varão de madeira por cima. O sujeito tinha suas mãos e pés amarrados juntos como se estivesse de cócoras, o varão era introduzido entre as pernas e braços na altura dos joelhos que ficavam para frente e cotovelos para trás, ai eram erguidos e o varão colocado nos ganchos da forquilha. Quem visse de longe pensava serem araras brincando em seu poleiro. Nesta posição tinham suas nádegas expostas a qualquer sorte de flagelo, os pés eram queimados com tochas de estopa embebidas no querosene. Mutilados não conseguiriam empreender fuga pela selva.

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O tempo se arrastava, dos oitenta guerrilheiros inicialmente estimados pelo exército, mais de cento e vinte pessoas perderam suas vidas na guerrilha esquecida.

Na tarde daquele domingo, ao retornarem da cidade, meus amigos me encontraram encharcado de suor, me debatia numa das covas ardendo em febre. As visões foram obras da insolação, mas isso não me interessa, o que sei é que aqueles ossos não desejam uma sepultura com jazigos imponentes, seus espíritos não querem a glória ou seus nomes nos livros, o que desejam é que sua história seja contada para que nas horas mais negras o país não se esqueça e repita sua maior vergonha.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 07/05/2017
Reeditado em 07/05/2017
Código do texto: T5992554
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