Um Monstro no Quarto

Aquela noite de 31 de outubro estava demasiamente grande, sendo que parte da culpa era das torrenciais chuvas de mais cedo, que acabaram por elevar os níveis dos rios da região. Bernardo se encontrava já deitado em sua cama, na pequena casa que residia com seu pai, Lauro, desde o falecimento de sua mãe. Era pouco mais de nove horas e ambos já se estavam dormindo, já que iriam acordar cedo para viajarem de madrugada, para aproveitarem o máximo possível o feriado prolongado.

Bernardo tinha pouco mais de sete anos e era um garoto bastante agitado. Tinha severas dificuldades de dormir e não eram poucas as vezes que assustavam seus pais madrugada afora com suas andanças sonâmbulas pela casa. Da mesma forma, era facilmente acordado, por qualquer barulho. E, como o interruptor do quarto era próximo da casa – estratégia do pai ao edificar a casa, pois sabia da dificuldade de dormir do filho, o que lhe impediria de levantar toda hora para acender a luz -, não eram raras as ocasiões que a luz do quarto ficava apagando e acendendo durante a madrugada.

Naquela noite, Bernardo se encontrava irrequieto, girando de um lado para o outro na cama. Sentia-se uma carne fritando na frigideira quente, devido ao calor da noite. Girava e girava, de um lado para o outro da cama, em intervalos regulares. Repentinamente, completamente tomado pela irritabilidade, levantou-se, em um só pulo, sentando-se ofegante na cama. Apertou o interruptor e ligou a luz. E, naquele instante, viu aquilo que mudaria sua noite... e sua vida.

Havia um rapaz de pele negra, careca, sem camisa e portando cachimbo na boca e gorro vermelho na cabeça com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados no sopé da cama, olhando fixamente para Bernardo. Ao perceber que o garoto lhe viu, o rapaz ri e entra debaixo da cama.

Bernardo ficou completamente imóvel desde o instante em que fitou o rapaz. Assim que este foi embora, reuniu coragem suficiente para agir, embora seus músculos quisessem ficar parados. Gritou, o mais alto que pôde, um escandaloso “Paaaai!”, que ecoou pelos quatro cantos da casa. Seu pai chegou em um pulo, esbaforidos, com o corpo todo tremido devido ao susto.

- O que foi, Bernardo? O que aconteceu? – perguntou o pai

- Tem um monstro debaixo da cama. Tem um monstro debaixo da cama. Eu vi. Eu vi. – gritou o filho, com muito medo. Levantou-se da cama e correu para os braços do pai, que lhe abraçou.

- Não tem monstro nenhum no seu quarto, Bernardo. – disse o pai, tentando se recuperar do susto. Olhou rapidamente o quarto, à procura de algo diferente.

- Eu vi. Eu tenho certeza. Estava parado na cama me olhando, quando eu liguei a luz. Depois, ele entrou para debaixo da cama. – disse o garoto, enquanto lacrimava generosamente.

O pai para ao lado da cama, ajoelha-se e abaixa o corpo, a fim de olhar o que estava debaixo do móvel. Não havia nada. Levantou-se.

- Não tem nada aqui. O que quer que seja o que você viu, foi embora. – disse o pai. Olhou novamente o quarto. Foi em direção ao guardarroupa, que ocupava a outra parede do cômodo. – E como era esse “monstro”?

- E...Ele era negro e usava um gorro vermelho na cabeça.

Aquilo chamou a atenção do pai.

- Você andou lendo a respeito do Saci antes de ir dormir, não foi? – perguntou, virando-se para o filho

- Não, pai.

- Mas você viu o alvoroço que está a internet sobre a suposta aparição do Saci aqui na cidade, não viu?

- Vi.

- Então é isso. – disse o pai, abaixando-se ao lado do filho. Puxou-o para si, olhando-o nos olhos. – Você viu na internet e ficou impressionado. Não tem como ninguém entrar aqui em casa sem nos ver. Espera aí que vou te trazer um copo de água para você se acalmar. – disse. Bernardo meneia a cabeça. O pai levantou-se e saiu alguns segundos do quarto, retornando em seguida com um copo cheio em mãos.

- Toma. – disse – Beba.

O filho pegou o copo de água e o virou, bebendo todo o seu conteúdo em poucos segundos. Enquanto isso, o pai atravessou o quarto e foi em direção à janela aberta ao lado da cabeceira da cama.

- E deixa eu fechar essa janela porque vai acabar entrando um bicho. – disse, antes de fechar. Em seguida, retorna para seu filho.

- Saci não existe, meu filho. Essa é uma lenda que nossos avôs contavam para os filhos ficarem dentro de casa no Dia das Bruxas, para não saírem pedindo bala nas outras casas e incomodassem os vizinhos. Não tem nada de real nisso. Agora, vai dormir que iremos acordar cedo.

- Está bem, papai. – disse um Bernardo mais calmo.

O pai fica ao lado da cama enquanto Bernardo se arrumava para voltar a dormir. O garoto deitou e se enrolou na coberta.

- Seu quarto está quente. Vou ligar o ventilador para refrescar.

O ventilador, localizado no teto, pouco a pouco, começar a se ventilar.

- Cubra direito, para não se resfriar. Boa noite. – disse o pai, enquanto arrumava a coberta do filho e antes de lhe dar um beijo de boa noite na testa. Passou pela porta e, antes de sair, apertou um interruptor, que fez o ventilador, localizado no teto, começar a girar. Em seguida, disse, antes de apagar a luz e fechar a porta.

- Boa noite, campeão.

- Boa noite, pai.

Bernardo estava mais calmo – fruto da água com açúcar dada por seu pai -, além de estar com bem menos calor. Não se agitava mais na cama e estava prestes a adormecer. Todavia, quando já estava pegando no sono, escutou um pequeno e rápido bater de uma porta do guardarroupa.

No mesmo instante, abriu os olhos. Esperou alguns segundos para analisar se o som iria se repetir. Não se repetiu. Fechou novamente os olhos. Entretanto, seu coração começou a voltar a acelerar dentro do peito. Já não estava tão calmo quanto antes e começava a ficar inquieto.

Pouco a pouco, contudo, o rapaz foi voltando ao normal. Começava a quietar-se. Estava voltando à paz de antes quando, de repente, ouviu uma pequena risada dentro do quarto, próximo a seu rosto. Abriu os olhos de sobressalto e girou o corpo rapidamente para apertar o interruptor ao seu lado. Em poucos segundos, a luz do cômodo iluminou o ambiente. Entretanto, nada havia à sua frente, nem no quarto. Saltou da cama e caiu no chão, ajoelhando-se em seguida e abaixando o corpo para fitar o que havia debaixo de sua cama. Nada havia. Correu em direção ao guardarroupa e abriu porta por porta. Igualmente nada havia.

- O que será que foi isso? Será que foi o tal do Saci? – se perguntou. Queria saber mais, queria entender o que estava acontecendo, mas seu corpo era demasiadamente cansado e não conseguia forças para nada. Queria apenas deitar e dormir. Pensou que tudo aquilo era fruto de sua imaginação, devido ao medo que estava sentindo. Esqueceu tudo e foi-se deitar, na tentativa de adormecer.

Dessa vez, foi um pouco mais difícil para Bernardo adormeceu. Já começava a ficar sismado com os barulhos e acabava por não conseguir relaxar. Começou a rolar na cama como antes, virando de um lado para outro em intervalos regulares.

Vinte minutos haviam se passado e Bernardo continuava irrequieto sobre a cama. Apesar do ventilador ligado, estava suando. Repentinamente, eis que escuta barulhos de panela caindo no chão, vindos da cozinha, do outro lado do corredor. Levantou-se assustado e ligou a luz correndo, sentando na cama. Em seguida, saiu da cama e correu em direção à porta. Abriu-a e colocou a cabeça para fora do quarto.

- Bernardo! – gritou seu pai. O grito veio à direita, em uma porta à esquerda, dentre as três que ocupavam o final do corredor. – Vai dormir. Larga as panelas!

- Mas pai... não fui eu...

- Bernardo. Sossega, que amanhã a gente vai acordar cedo. Volta pra cama. Anda...

- Mas... pai...

- Bernardo. Não me fala levantar.

- Tá bom, pai...

Bernardo fechou a porta e voltou para o interior do quarto, cabisbaixo. Voltou para a cama e tentou dormir. Queria dormir. Mas não conseguia. Estava intrigado com todos aqueles barulhos. Poderiam estes serem até irreais, mas a visão do rapaz não era e Bernardo tinha certeza disso. Levantou-se, evitando fazer barulho e caminhou no completo escuro em direção à cômoda, que se encontrava ao lado da porta. Foi-se guiando pelas mãos, que balançavam à sua frente. Encontrou-se com a cômoda e esticou os braços a fim de pegar o seu celular, que estava do lado esquerdo da televisão.

Naquele instante, sentiu uma pesada mão pousando sobre a sua. Em seguida, ouviu novamente a risada, logo atrás de sua nuca, ao lado do ouvido direito. Estava tão perto que Bernardo pôde sentir a sua respiração acertando seu pescoço.

O garoto sentiu um frio subir por sobre sua espinha, que paralisou-lhe de medo e congelou-lhe o corpo. A mão pousada sobre a sua não saía de lá e começou a se fechar, apertando seus minúsculos dedos. Bernardo começou a sentir dor, onde começou a se mexer na tentativa de se desvencilhar do agressor. Não conseguiu êxito e o aperto e a dor só foram piorando.

Desesperado, Bernardo joga o corpo para trás com toda força, acertando em algo, que cai no chão e solta sua mão. Correu em direção ao interruptor e acendeu a luz. Desesperou-se. O rapaz estava parado à sua frente.

Naquele instante, Bernardo visualizou por completo o rapaz. Estava com o gorro vermelho na cabeça e sem camisa. Usava apenas uma bermuda avermelhada, um cachimbo na boca e não tinha a perna direita. Bernardo sobressaltou-se a tal ponto que arregalou os olhos.

O monstro, ao fitar Bernardo, riu. O garoto, sem perder tempo, saiu correndo para fora do quarto. “Papai, papai, papai”, gritava, enquanto corria. Correu tropeçando pela casa, desembocando primeiramente em um corredor. Virou-se para a direita e continuou sua corrida, sem olhar para trás. Neste instante, sentiu um forte vento vindo de detrás de si lhe passar, durante alguns segundos. Não entendeu o motivo de haver vento, haja vista que a casa inteira se encontrava fechada, mas não iria se preocupar com aquilo naquele instante.

Continuou sua corrida, virando para a esquerda, frontalmente a uma porta e a abriu. Adentrou no cômodo e apertou, o mais rápido que pôde, o interruptor, inundando o quarto com a luz.

Era um espaçoso quarto, com uma cama de casal no centro, um rack com uma televisão de 42´ à sua frente, um guardarroupa à esquerda e uma mesa com computador à direita, à frente da porta. Bernardo estarreceu-se e novamente congelou. O monstro estava à sua frente, sobre a cama, com um maléfico sorriso no rosto, ao lado de seu pai.

- O que...?! – perguntou, estupefato

O rapaz ri, sendo que seu maléfico riso ecoa por todos os cantos do quarto. Este mostra que está portando na mão direita uma faca e a ergue no ar, segurando-a com as duas mãos.

- Não! – gritou Bernardo. Este grito acabou por acordar seu pai, ainda meio sonolento.

- O que...?! – murmurou o pai.

- Sai daí, pai. – gritou Bernardo, sem tirar o foco do monstro

- O que...?! – perguntou Lauro. Olhou para a porta e fitou seu filho parado no local, olhando fixamente para algo atrás dele. Acordou por completo, perdendo a consciência. Virou o corpo para trás. Visualizou o monstro parado, em pé, atrás de si, com uma faca apontada em sua direção. – Que...?!

Entretanto, não teve tempo. O monstro desceu a faca em sua direção com toda força e velocidade, cravando-a em seu pescoço. Bernardo soltou um grito seco e paralisou-se no mesmo instante. Seu pai ainda tentou exprimir alguma reação, mas logo sua vida se esvaiu de seu corpo, devido a inúmeras facadas que tomou.

O monstro se sujou de sangue, enquanto fez uma poça sobre os lençóis. Olhou para Bernardo, retirando-o de sua paralisação. Soltou um pequeno riso diabólico e apontou a faca em direção ao garoto. Em seguida, saltou, caindo no chão no pé da cama.

Essa foi a gota d´água para Bernardo, que postou-se a correr para fora do quarto. Adentrou no interior do corredor e acelerou os passos em direção ao outro lado. Sentiu novamente um vento passar por si, mas novamente não deu importante. Chegou do outro lado do corredor o mais rápido que pôde, entrando no interior de uma cozinha, após ultrapassar várias portas laterais.

Virou-se para a esquerda, a fim de passar no espaço compreendido entre o balcão e a parede e adentrar na copa, adjacente à cozinha. Naquele instante, sobressaltou-se novamente. Fitou o monstro parado na porta de madeira do outro lado da copa, com seu inconfundível sorriso diabólico nos lábios.

De inopino, Bernardo olhou para trás. Nada viu além do corredor inundado na escuridão. Pensou em voltar e tentar sair para outro lado, mas sabia que o monstro apareceria por lá. Não sabia como, mas o monstro tinha feitiço para se teletransportar, ou algo assim.

Lembrou-se das horrendas histórias do Saci que o pai de seu avô contava, já nonagenário. Conta o sábio idoso que, em tempos antigos, um monstro de pele negra, usando somente bermuda e gorro vermelho, um cachimbo e faltando-lhe uma perna atormentava os moradores da pequena e histórica Larital e que o mesmo invadia casas no dia 31 de outubro com portas e janelas esquecidas ou deixadas abertas para roubar meninos, como ato de vingança por ter sido dedurado por um menino quando ainda era escravo e fugia das mãos de seu dono, tendo sido recapturado e apanhado até a morte.

Todavia, nunca imaginou que aquela pesada história que seu bisavô lhe contava até dois anos atrás – quando o mesmo falecera – fosse verdade. Sua mãe mesmo, quando também ainda era viva, lhe proibira de ouvir tais histórias, já que somente piorava o seu estado de insônia e a mesma também, ao que tudo indicava, não acreditava na veracidade dos contos narrados pelo idoso.

Porém, naquele instante, com seu pai falecido a golpes de faca e o monstro lhe impedindo de sair, Bernardo sabia que a história era real. E precisava agir para não ter o mesmo destino que seu pai. Lembrou-se de que se encontrava na cozinha. Saiu correndo em disparada para o interior da cozinha, contornando a mesa central o mais rápido que pôde e chegando nas gavetas da pia, no canto oposto à porta.

No exato momento em que Bernardo voltou a se mexer, o monstro lhe copiou. Saltitou rapidamente em direção à cozinha, ainda com o sorriso no rosto e a arma em punhos. O garoto abriu todas as vezes da pia o mais rápido que conseguiu até achar uma enorme faca guardada ao fundo, escondida sobre outros utensílios – uma tentativa frustrada de seu pai de lhe proteger de possíveis acidentes, mas que acabou por salvar sua vida naquele instante.

Bernardo pegou a arma e a ficou em punhos, segurando à sua frente com os dois braços. Tremia inconsumeravelmente, principalmente porque avistou o monstro ao lado do balcão. Engoliu em seco. O monstro parou e sorriu. Em seguida, jogou a faca no chão. Bernardo surpreendeu-se e estranhou a atitude do inimigo. Baixou a guarda durante alguns segundos, mas logo voltou ao normal.

O monstro sorriu novamente e retirou o capuz. Bernardo ficou na defensiva. Em seguida, enfiou a mão lá dentro e jogou um pó brilhoso no ar. O garoto estranhou e tentou se proteger. Todavia, acabou por aspirar o ar, que rapidamente lhe retirou toda a consciência, caindo em um só baque no interior da cozinha e deixando a faca cair próxima de si.

O Saci caminhou em direção ao garoto e fitou durante alguns segundos. Sorriu. Em seguida, puxou-o pelo colarinho e saiu andando pelo interior da casa, em direção à porta da copa, assobiando.