Senhor

A respiração ofegante e o suor me acompanhavam. Em roupas de ginástica, fones no ouvido e óculos escuro já tinha quase hora que eu corria. Mas corria sem rumo. Era cedo. O sol tímido em meio a neblina anunciava o dia aos poucos. O cansaço aumentava conforme a rua se transformava em ladeira. O coração descompassado e a visão turva começou a se confundir com a neblina. O senhor apareceu na minha frente como um holograma, assim tão de repente. O susto me tomou o ar. As pernas bambearam. Olhei nos seus olhos, e você nada dizia, apenas sorria calado; sua feição tão carinhosa, e eu adorava as suas rugas quando sorria mostrando seus dentes amarelos.

Em fração de segundos lembrei de tanta coisa. Desde os presentes e as promessas de dez anos atrás. O sentimentos jurados para sempre naqueles quartos de hotel, em lençóis que testemunharam outros amores, outras dores. As promessas quebradas, e as ameaças mantidas. Mas esse amor eterno... Uma bicicleta quase me atropelou, e então voltei dos meus devaneios. Descansei minhas mãos no joelho e olhei o céu alaranjado; o sol que devagar tomava coragem de nascer mais um dia. Coloquei o fone nos ouvidos e tornei a correr. O senhor, tão previsível, permaneceu atrás de mim. Porém, mesmo com essa perseguição me fazendo lembrar de tudo eu continuei em frente.

Duas crianças que andavam de patins passaram na minha frente me fazendo tropeçar e cair. Acabei machucando os joelhos e batendo a cabeça, mas logo levantei, mesmo um pouco tonta. A infância era tão linda, repleta de inocência. Agora, caminhando lentamente, ouvindo as desculpas da mãe do casal de crianças ao longe, enquanto elas diziam que foi sem querer. Comecei a ouvir muitos barulhos, além das crianças chorando com a bronca, as buzinas dos carros, os pássaros, a música nos meus ouvidos, a batida do meu coração e a sua risada. Tudo tornou-se uma mistura de sons, um barulho insuportável, mas sua risada me perturbava em um crescente. Fechei os olhos, tampei os ouvidos e dei um grito de desespero.

A música em meus ouvidos, de repente, cessou. Tudo se fez silêncio e ausência. Eu estava só. O sol, enfim, aquecia e iluminava a tudo tão nitidamente. Tentei olhar para o céu, pedir ao Senhor que me protegesse, mas a claridade me doeu os olhos, me cegou. Era sempre assim, sempre foi assim. Quando, então, sentei-me na calçada, sob a sombra de árvore, de novo o senhor passou na minha frente, sorrindo para mim. Não sei por quanto tempo isso duraria. Esperei alguns minutos, retomei o fôlego e a coragem, e, então, voltei para a casa. A cabeça doía, e os joelhos ralados ardiam. Tirei a roupa e fui para o chuveiro, temperei a água e entrei no banho. Tentei relaxar, senti a água correr em meu corpo, e logo percebi também que você me ensaboava. Senti o sangue gelar, e engoli em seco. Tentei impedir que lágrimas viessem à tona, mas não pude; misturaram-se a água do chuveiro e você nem percebeu. Controlei a respiração e deixei, então, que você fizesse o que quisesse comigo. E, mais uma vez, fui seu prazer. Depois de me possuir assim, de ter o meu corpo, você sumiu tão de repente quanto apareceu. Precisei descansar um pouco, como de costume. Liguei a TV, e alguns minutos depois adormeci.

Um sonho então invadiu minha alma. E nele o passado. Eu ainda era uma criança. E quando fiquei mocinha, o senhor veio e me disse que eu já estava pronta para aprender a amar. E então, você começou a me apresentar o amor. O toque na pele, o calor dos corpos, o beijo, o carinho, e enfim, o prazer. Eu não entendia como a dor poderia se chamar prazer. Mas eu confiava em você. E cresci confiando. Você dizia que se mamãe fosse viva, ela ficaria orgulhosa de mim. Até me tornar adulta eu acreditei que o mundo fosse aquele que o senhor me mostrou. Talvez o problema é que eu tenha gostado demais. Ou tenha me acostumado a sentir dor e aprendido a amar isso. Um barulho me acordou, me assustando. Era meu gato que subindo na estante derrubou um vaso e o quebrou.

Levantei e fui até a janela, e o dia antes tão claro e bonito, agora estava nublado e ameaçava tempestade. Relâmpagos e trovões formavam uma sinfonia. Enquanto recolhia os cacos de vidro quebrados, levei um susto. Era só o vento batendo a porta me alertando para a chuva que vinha vindo. Tudo ótimo para um dia de domingo. Resolvi preparar o almoço. E ao picar os alimentos me distraí e acabei cortando meu dedo. Sangrou muito. Pus o dedo na boca quase que por instinto, e o gosto do sangue me fez estremecer. A televisão se desligou e as luzes se apagaram sozinhas. As cortinas dançavam com a ventania. A chuva caía forte. E quando a energia voltou, o senhor também apareceu de novo para ter meu coração e alma mais uma vez.

Foi culpa minha essa eterna perseguição; eu sei. Eu quis que fosse assim. Eu te eternizei. Pensei que os amores são eternos somente com a morte. E apesar da sua perda ser a minha maior dor, eu aprendi com o senhor que a dor também é prazer. Assim me refaço com meus fantasmas, minha culpa e dor. Será assim para sempre esse tormento. Sua alma me possuindo, o demônio que sempre fora abusando de mim desde a infância, me levando para hotéis baratos, onde o cheiro de cigarro estavam impregnados nos travesseiros. Eu odiava o cheiro de cigarros. Mas um dia quis também que sentisse prazer como eu, e então, enquanto o senhor dormia em um desses hotéis onde dizia que me amava, eu em um golpe certeiro te dei uma facada. Senti o gosto do seu sangue e gostei, além de a sensação ser maravilhosa. Enterrei a faca na sua garganta mais umas três vezes, depois rasguei sua barriga e retalhei seu rosto. Seus olhos vidrados eram tão bonitos. Quando mamãe era viva ela dizia que nós tínhamos o mesmo olhar, e que eu havia puxado o seu gênio. Enfim, eternizei o nosso amor. Todos os dias você viria me assombrar como sempre fizera, me possuindo como o pior dos demônios.

Rodrigo Amoreira
Enviado por Rodrigo Amoreira em 11/06/2017
Código do texto: T6024515
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