A Peste do Beijo

A enfermidade surgira há algumas décadas. Seu desconhecimento pela ciência oficial era completo, e logo a doença tornou-se uma pandemia sem controle. Inicialmente, a moléstia incurável ficou conhecida como Peste Sanguínea, devido ao fato de afetar o aparelho circulatório dos seres humanos, em particular o sangue, e gradualmente ir causando o apodrecimento do líquido sanguíneo. Com tais características, logicamente, a Peste Sanguínea era sempre fatal e, uma vez surgidos os primeiros sintomas, quais sejam, hemorragias e enegrecimento dos vasos sanguíneos, a morte tornava-se questão de algumas poucas semanas.

Verificou-se que a enfermidade era causada por um vírus mutante. Com suas incessantes mutações gênicas, “driblava” todas as tentativas dos cientistas de criar medicamentos ou vacinas contra a moléstia. No entanto, o problema maior da peste era que o agente causador possuía um período de incubação um tanto longo, cerca de 5 anos. Dessa forma, as pessoas contaminadas não sabiam que possuíam o vírus e, durante o tempo de incubação, transmitiam-no incontrolavelmente a um número indeterminável de indivíduos. Como era uma doença do sangue, a transmissão da Peste Sanguínea obviamente ocorria através do contato direto com o sangue ou por secreções corpóreas a ele relacionadas, como esperma e leite materno. Relação sexual, uso de drogas injetáveis e transfusões sanguíneas consistiam as principais formas de contágio.

Um terrível espetáculo dantesco era a contemplação da morte de uma vítima da Peste Sanguínea. Em uma primeira fase, o enfermo apresentava hemorragias pelas narinas, febre alta e leves dores por todo o corpo, semelhantes à de uma gripe. Ao mesmo tempo, as veias assumiam gradativamente um tom negro sob a pele. Na fase secundária da doença, as dores corporais se intensificavam a um nível insuportável, as hemorragias nasais tornavam-se muito freqüentes, sendo que o sangue expulso era negro, viscoso e fétido. O enfermo agora também expelia profusas quantidades de sangue através de vômitos e diarréias espantosas, golfadas de um líquido espesso e gosmento, em apodrecimento, de um mau-cheiro nauseabundo, de um aspecto repulsivo. Uma tosse constante e insidiosa contribuía para agravar o quadro, ocasionando a expectoração de um muco negro e sanguinolento.

O enfermo já não se alimentava mais, e a morte vinha com a terceira fase da peste, absolutamente horrível. Não se passava 5 minutos sem que o enfermo expelisse sangue podre, quer por um impiedoso ataque de tosse, quer pela diarréia, quer pelo vômito. Enquanto a triste vítima definhava implacavelmente, e suas veias apresentavam-se em uma tonalidade morbidamente escura, um fedor insuportável e pestilento exalava-se de todo seu corpo, uma vez que devido aos freqüentes vômitos e diarréias, o sangue pútrido acumulava-se ao seu redor, e as pessoas temiam limpá-lo, receando que pudessem se contaminar. Se o desgraçado não morresse pelas incessantes hemorragias, em um derradeiro estágio surgiam por todo o corpo feridas e chagas infeccionadas, purulentas, sangrando e fedendo asquerosamente.

Completava-se então o quadro funesto, e o doente falecia no horror e no abandono absoluto, esquecido nos hospitais especialmente construídos para isolar aqueles infelizes do restante da população, locais estes cada vez mais lotados, posto que uma vez identificado o vírus na vítima, ela era levada aos mencionados hospitais, ainda que à força.

Um outro aspecto tenebroso da Peste Sanguínea consistia no fato de que o vírus somente podia ser identificado pelos testes somente 3 anos após o contágio. Ou seja, o indivíduo, durante 3 anos, se estivesse contaminado, não teria como sabê-lo, e poderia alastrar a moléstia de forma assustadora. De modo que o número de doentes não cessava de aumentar, e nenhuma das medidas adotadas surtiu o efeito desejado, principalmente no que se relacionava ao uso de preservativos nas relações sexuais. Como é já sabido, o vírus apresentava uma alta capacidade de mutação, assim, posteriormente comprovou-se que o vírus causador da peste havia reduzido consideravelmente suas já ultramicroscópicas proporções, tornando-se capaz de penetrar através dos “poros” invisíveis do material dos preservativos, contaminando dessa forma o parceiro.

As autoridades relutaram por muito tempo em tornar pública tal terrível informação, temendo o pânico generalizado e intentando aperfeiçoar os preservativos, no que foram frustrados. E quando o número de doentes assumiu proporções catastróficas, não houve outro jeito, tudo foi divulgado. Muitos não acreditaram e prosseguiram mantendo relações usando as afamadas “camisinhas”, outras mesmo acreditando na revelação, permitiram que o desejo sexual falasse mais alto, ignorando o perigo da doença para satisfazê-lo. E ainda houve os que foram tomados de um verdadeiro pavor pelo sexo, o que alterou dramaticamente suas relações sociais.

Muitos indivíduos, temendo contrair a peste, principiaram a manter relações amorosas, digamos, um pouco mais “castas”, ou seja, contentando-se apenas com os beijos e com as carícias, que acabavam desembocando na masturbação mútua. No entanto, muitas vezes, não conseguiam frear o imperioso apetite sexual, concretizando então o ato. Porém, mesmo com todos os temores e cautelas, o número de infectados crescia em progressão geométrica, e já havia povos quase que totalmente dizimados pela Peste do Sangue.

Já fora dito que o vírus era altamente mutagênico. Pois mais uma mutação deve ter se desencadeado. Ocorreu que a doença passou a se manifestar bem mais cedo, reduzindo seu período de incubação para pouco mais de 6 meses. No entanto, ela permanecia fatal somente após 5 anos. Durante o longo tempo precedente, os sintomas consistiam em chagas e feridas que, gradativamente, iam se espalhando por todo o corpo. No princípio, surgiam nos órgãos sexuais, nas mãos e nos lábios. Eram como verrugas arroxeadas e/ou avermelhadas que eventualmente sangravam. Ao longo dos anos, as feridas nodosas alastravam-se pelo restante do corpo e se intensificavam os sangramentos, porém o progresso era lento. Verdadeiramente horrível e repugnante era contemplar uma vítima da peste tomada de feridas roxas e vermelhas, ainda que fosse somente no início, quando os lábios assumiam um aspecto monstruoso devido à concentração de feridas no local. Às vezes, as feridas também exalavam um fétido odor.

Um outro sintoma surgia alguns meses após o aparecimento das primeiras feridas. Tratava-se da impossibilidade dos homens em ter uma ereção completa; o pênis, mesmo durante a mais extremada excitação, permanecia parcialmente flácido. Já nas mulheres, quando sexualmente excitadas, não mais ocorria a lubrificação natural do órgão genital, mas era liberado um muco espesso, purulento, e, assim, como as feridas, um tanto mau-cheiroso. Tal era o quadro que se prolongava quase sem alteração durante os quase 5 anos, tempo necessário para a peste ocasionar a morte do enfermo.

Todavia, os leitores devem estar concluindo que se os primeiros sintomas já ocorriam dentro de poucos meses após o contágio, conseqüentemente haveria pouco tempo para que o infectado transmitisse o vírus. Assim também pensavam médicos e cientistas; no entanto, para espanto e horror de todos, isso não se concretizou, isto é, o crescimento do número de casos não se reduziu como se imaginava, mas continuava crescendo rapidamente. A doença passou então a ser estudada com mais afinco pelos cientistas, até que foi constatado que jovens que jamais tiveram relações sexuais, que não eram usuários de drogas, que jamais necessitaram de transfusões sanguíneas e que afirmavam nunca ter mantido o menor contato com algum infectado (visivelmente, ao menos) estavam doentes. O que se sabia era que tais jovens, durante os meses precedentes ao surgimento da doença, freqüentaram, em todos os casos de estudo, casas noturnas onde “ficaram” com pessoas aparentemente saudáveis. O contato físico máximo que ocorreu em tais casos foram inofensivos beijos na boca, boca sem feridas, diga-se de passagem.

Foi então que surgiu a horripilante suspeita de que o vírus, através de alguma ominosa mutação, tornou-se transmissível através da saliva. Foram realizadas pesquisas em pacientes infectados e, diferentemente do que ocorria com o vírus no sangue, o vírus na saliva era facilmente identificável. E comprovou-se: a Peste do Sangue era agora transmissível pelo contato com a saliva...

Em breve será postada aqui a parte final do conto.

Meu blog: www.artedofim.blogspot.com

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 13/08/2007
Código do texto: T604857