O Verme da Noite

[Narrador] – Uma sessão entre um psicólogo e um mendigo, outrora escritor de contos românticos e agora escritor de textos estapafúrdios. O paciente fora um parente próximo de seus irmãos e sobrinhos, apesar de solitário, viúvo há décadas.

[Narrador] – Havia fugido de sua residência há uma semana, abandonando sua vida e seu único contato com os membros queridos eram suas irregulares cartas estranhas. Depois de muita procura foi encontrado e, compulsoriamente, enviado nesta consulta.

-Fugiu. Posso questionar o porquê?

Sim, doutor, tentei fugir de casa. E não quero ficar nesse manicômio indicado por esses estranhos, estou são e posso seguir com minhas atividades de escritor como de praxe, não ouse duvidar.

Pergunta a mim porque fugi, certo? Minha família mente para mim há um ano, desde o verão, mas eu sei a verdade. E como posso aguentar viver dessa forma? Prefiro sim viver como mendigo.

-Bem, senhor Josué. Não acho que consiga fazê-lo mudar de ideia..., todavia, desejaria saber o que aconteceu contigo, qual é esta verdade?

Foi nessa mesma época do ano – no verão passado – sofri um acidente de trânsito estrondoso que não foi exatamente a causa, mas foi o gatilho para uma série de eventos que levaram à minha morte. Estava viajando e tive que parar para consertar meu carro, algum problema na bateria, precisava ser trocada, talvez, não lembro. Porém, sei que um caminhão desgovernado, cujo motorista estava inconsciente e eu o desgraço até hoje por isso, veio de encontro com meu veículo e atropelou-o ... devastação... e explodiu-se ambos. Eu, como tinha visto e ouvido o caminhão se aproximar em uma velocidade altíssima, pude correr da explosão, contudo, por algum infortuno acaso, um dos cacos dos automóveis me acertou nas costas.

Eu caí e fui rolando pela terra, um declive, erosões causadas pela chuva, problema que poderia ser resolvido caso os governantes se importassem com o solo desse país. De qualquer forma, rolei tanto que desabei em uma voçoroca, a uns vários metros de distância da pista, ralei-me seriamente, algumas partes ficaram na carne viva, e devo até mesmo ter quebrado um osso da perna.

Na voçoroca eu caí de cabeça de um jeito que me causou uma dor aguda, que então cessou de repente e tive certeza que perdi meus sentidos nas pernas e nos braços, apesar desta ser uma memória nublada e incerta por causa da falta de sentido em todo o episódio, que descrevo sobrenatural.

-Descreve o evento por completo sobrenatural?

Não... apenas alguns elementos que não são naturais, ou melhor, dizendo, não são mundanos. E outros foram improváveis ou duvidosos. No geral, nublados.

Porém, sei que senti o gosto de sangue na boca, isso é um fato! Odeio esse sabor agoniante, agente do efeito horripilante da queda. Permaneci deitado passando horas olhando para o corpo celeste no céu, nosso satélite natural, além também dos astros da noite que se tornam ínfimos na imensidão negra. Eu senti uma calma e certo alívio ao olhar o céu escuro, mas então o tempo foi passando e essa visão se tornou terrível, uma vastidão obscura que despreza minha existência, que escarnece meu ser e diminui minha vida a um nada. Senti-me tão amedrontado que fechei os olhos instintivamente, como uma criança ao ver o bicho-papão...

-Bicho-papão?

Não seja estúpido!

-Oh, desculpe-me, caso tenha te irritado, apesar disso, devo dizer que acho sua história por demais não crível, até porque segue um rumo que não condiz com o que vejo. Obviamente, trata-se de algo que você de fato crê, já que sei que não mentes. Mas perdoe minha interrupção e meu comentário irrelevante. Continue. Diga: o que você notou e quais os temores que assolam o homem nessa hora...

Doutor. É mais simples do que pensas. Um medo de criança, pois o homem nessa hora é indistinguível de uma criança medrosa que não conhece o mundo. O que percebi?

[Narrador] – O doutor começa a responder as falas do paciente através de reticências.

O escuro toma a tudo. No momento em que minhas pálpebras tamparam minha visão eu tomei noção de um medo incontrolável: o ESCURO! Percebi que é no escuro que habitam as criaturas medonhas e sinistras, que anseiam em devorar sua pele. Em meus olhos fechados eu consigo pressentir algo roçando minha barriga, um ser monstruoso, mas pequeno, um ser da noite que queria entrar em meu ventre. Na penumbra, eu ouço melhor os sons agoniantes, os urros de felinos, animais vivos e intensos, o grasno de urubus, ansiosos pelo cadáver fresco, o farfalhar de asas de morcegos, excitados pelo sangue, e os ventos cortantes, intensos e frios, anunciando a morte. A escuridão nos priva da visão, contudo, fortalece os outros sentidos, então somos obrigados a presenciar os outros temores desconhecidos. Tive tanto medo de abrir os olhos...

Também sinto o cheiro de folhas, carnes crua, líquidos e terras, tudo apodrecendo – a Terra se decompõe. O ciclo eterno da vida, um imensurável ciclo que a tudo devora e a tudo modifica, que a tudo seleciona e que a tudo extingue.

Então um verme se aproxima, ou talvez uma cobra escorregadiça, ou um anfíbio de corpo semelhante, no entanto tenho quase certeza de que era um verme, aquelas criaturas são astutas e selecionadas para serem a maldição de cada um, são parasitas sinistros. Pois mal, ele, com algum tipo de ferrão, atravessou minha garganta e começou a subir, mas o expeli pela boca. O sangue de minhas artérias escapou por causa do ferimento causado pelo bicho, esguichou-se com grande pressão encharcando meu peito. Ele começou a se remexer sobre minha barriga, experimentei uma terrível dor, algo a me perfurar. Ele tentava entrar em minhas entranhas! Senti uma dor incomensurável.

Enfiei minha mão no mesmo buraco que o bicho entrou e, sentido um aperto terrível, puxei o miserável para fora de meu corpo. O parasita ensanguentado que se contorcia, era viscoso e esguio, e logo escorrega de minha mão retornando a meu corpo. Sinto uma agonia assombrosa. Por inteiro sou tomado por uma paralisia, sou afetado por uma aflição, como se todo meu ser fosse virado do avesso.

O fluxo de sangue aumenta drástica e subitamente. As batidas são ensurdecedoras e soam como uma percussão que acompanha a dança profana da penumbra e desolação. Sinto minha carne ser devorada por dentro, a dor é intensa, mas diminui paulatinamente, sob uma crescente anestesia. Em meio a todo carnaval de sons loucos eu desmaio por um breve momento, suponho, e minha consciência retorna serena, tal como antes do Verme, na quietude da noite derradeira.

Não entendo como, nem porque agi daquela maneira calma após a invasão, e isso me incomoda demasiadamente. Meu corpo recebia espasmos involuntários, porém os ignorava, não tinha forças para pensar em algo, minha massa craniana estava esgotada... talvez todo o evento do verme fosse uma tentativa do cérebro para fornecer a adrenalina que eu precisava para levantar daquela maldição e escapar do desfecho que todos os vivos enfrentam: A Morte.

Mesmo que fosse uma das situações mais realistas e marcantes, o Verme poderia ser apenas uma ilusão, e este pensamento se sustentou depois de uma bateria de exames que realizei ... é possível afirmar que se passava de uma ilusão... ou não... talvez...

[Narrador] – Segue-se um silêncio desconfortante, tique e taque... o doutor passa o pano no rosto, secando seu rosto encharcado de suor e o paciente observa, com seus olhos vidrados.

Fiquei parado, caído, na voçoroca, envolto ao Escuro e sensações mórbidas, delírios e medo, medo incontrolável do FIM. “Minha vida será extinta”, era uma das poucas coisas que conseguia raciocinar no momento.

Uma conclusão amaldiçoada com as incertezas do que iria vir. Os cheiros se tornam menos intensos, os ruídos diminuem, o tato some. Minha vida se esvai. Morte.

Sim, doutor. Morri... e não estou louco! Mas o inacreditável começa agora... a verdade que meus parentes pensam ter roubado de mim, mas que, por algum motivo, alguma conspiração, escondem de seu próprio irmão e filho e tio, de mim.

-E como foi a experiência de morte?

Na morte não há nada. Nada. Não há nada nos esperando, não existe Deus. Infelizmente, não posso afirmar se há um Diabo ou não, pois, até mesmo minha ressurreição poderia ser fruto de seus planos profanos. Nem por isso creio cegamente nesses mitos, óbvio, conquanto cogite suas existências, em momentos que reflito temas metafísicos.

-Entendo, entendo. E depois da morte você retornou, certo? Quando ressuscitou estava na voçoroca? Ou não se lembra?

Eu abro meus olhos e não vejo nada... na verdade não, já que vejo a Escuridão. Meu tato está de volta, sinto minhas pernas e meus braços, o ruído de minha respiração é audível e o cheiro de terra podre é presente em meu nariz. Por um tempo achei estar no inferno, “No inferno! ”, e quando tomei consciência desse achismo me espantei e desesperei-me, encolhi-me. A aflição dominou cada célula de meu corpo que queria fugir daquela prisão. Eu me debati, a prisão era do tamanho de meu corpo, meus movimentos eram limitados. Então, com medo de meu cadáver sofrer outra morte, decidi por não respirar tanto, limitar, segurar o fôlego, guardar minha força, “talvez estivesse vivo? ”.

Depois de algum tempo comecei a pensar em maneiras de sair e, se eu estava no inferno, então a única saída seria para cima. Comecei a socar o teto, que percebi ter uma textura parecida com madeira. Não me importei e esmurrei novamente, minha mão ralou, a dor não era ínfima, mas sem importância, e saiu sangue do ferimento. Sangue! ... Dor!

Engoli em seco e uma tempestade de ideias imergiu em minha mente. Estava vivo! Em um caixão, “devem ter pensado que eu estava morto, não conferiram”. Mas não fazia sentido, pois tinha quebrado a coluna, eu acho, e perdido a sensibilidade e movimento dos membros. Além da agonia da escuridão e a sensação exata da morte, “devo ter morrido e desmorrido, por algum motivo que espero ser explicado na ciência”.

Fiquei quase duas horas sob o chão e conforme meu tempo acabava e o oxigênio tornava-se um traço no ar, meus punhos conseguiram rachar o teto de madeira do caixão. Então terra caiu sobre meu rosto, a terra era preta e fedia demasiadamente, junto havia pedaços de raízes podres e alguns vermes.

Pequenos vermes caem sobre meus olhos, sobre minha barriga, invadem minhas roupas. Começo a me debater ainda mais, até que que o teto se racha por completo e sou afogado na terra.

Começo a tentar ir para cima, os vermes em meu corpo, mordiscando-me esfomeados, quase não consigo. Enquanto cavouco para cima, em busca da liberdade, começo a sentir a terra mais úmida, cada vez mais, e me encontro com o lodo.

Após atravessar a água imunda, infestada de mais vermes, alguns cadáveres de animais maiores, raízes podres e lama, consigo olhar novamente o céu. Era noite estrelada de lua nova, sapos coaxam e eu conseguia ouvir sibilas, sons de cobras. O zunido de moscas era confortante. O abundante excesso de pequenos sons era reconfortante se comparado ao silêncio profundo e absoluto de uma cripta.

À minha frente estava um rio, e com a esperança de que talvez desaguava em outro maior, e assim encontrando algo como uma cidade, ou fazenda, rancho ou mesmo um sítio, segui seu percurso. O chão era plano, enlameado, todavia, era possível andar facilmente. Por algumas horas eu andei até encontrar algum sinal humano. Ou melhor, um humano.

Deparei-me com um senhor de idade, usava um chapéu preto de couro, roupas brancas encardidas, estava de cócoras, com uma vara de pescar amarrada a uma árvore, com linha e anzol na água, para pescar algo. Na minha aproximação, meus ruídos atraíram a atenção dele. Seu rosto não possuía expressão, mas seus dedos mexiam de forma que demonstrava sua irritação, ele tirou o chapéu e soltou um riso perverso. Quando levantou pude ver que ele estava com um revólver, seus olhos pretos começaram a me encarar, enquanto seu sorriso abria. De seus olhos pretos emergiu-se uma aura imensa e pude presenciar novamente o vazio da morte e a grotesca Escuridão.

-O que ele disse?

Eu caí de cansaço, mas permaneci consciente e os olhos espertos como nunca. Ele segurou minha perna direita e começou a me arrastar, disse: “Irei levá-lo para tua família. Agora, tome cuidado, senão irá ser devorado pelos Vermes”. Como ele tinha conhecimento de meu delírio? E porque ele era tão sinistro? Minha família deveria ter algum conhecimento sobre ele, não é mesmo? De qualquer forma, ninguém sabe que ele é, ou mesmo em qual pântano estávamos!

-Senhor, acho que exageras... não disseste que havia vermes em suas roupas? E ele poderia apenas ter lhe deixado em algum ponto perto do hospital por não querer ser identificado.

Talvez... TALVEZ!

[Narrador] – O paciente olha nervoso para o doutor, pois não consegue assumir o sentimento de crença. Mas ele crê que aquele homem era místico, crê no Verme, crê!

Quando estava sendo socorrido apaguei após um tempo e não me lembro do que ocorreu, entretanto apareci em um quarto de hospital, rodeado por minha família, meus irmãos e meus sobrinhos. Eles se alegraram, disseram que um senhor havia me trazido até ali, mas quando indaguei sobre quem ele era eles hesitaram em responder! Às vezes eu posso ouvir os choros de meus parentes, consigo ver arrependimento nos olhos, até mesmo certo desprezo.

Quando pergunto algo sobre o que houve comigo, contam coisas estranhas, coisas falsas, uma ilusão! Não respondem minhas perguntas, nunca saberei a verdade! Então claramente abandonei meu passado, e minha família está no passado, doutor.

[Narrador] – No final da sessão, as memórias relatadas acordam o Mal que veio do Escuro.

[Narrador] – O paciente sente um incômodo em sua barriga, algo se contorcendo, então uma dor aguda o domina. Suas tripas começam a se revirar, ele sente uma ânsia de vômito, perde a força no diafragma e seus olhos perdem o foco, a visão se embaça. Fica pálido, fraco e cai da cadeira.

-O senhor está bem? Está se contorcendo...

[Narrador] – Então o paciente, moribundo de uma terrível desgraça, com dificuldade em falar, sem fôlego, com os músculos de todo o corpo tremendo, responde, berrando:

É o VER ... ME! Aqui... na minha – ah deus... barriga ... BARRIGA! A verdade é o verme... é o verme! ... maldição... MONSTRO!

[Narrador] – Desesperado, ele tenta abrir a porta do consultório, está trancada, então chuta arrombando-a. Corre pelos corredores, esbarrando com outros. Cria-se caos. Ele tem êxito em fugir do prédio. Nunca mais foi visto pelo médico ou pela própria família e até hoje há, grampeado nos postes, cartazes de “Procura-se Josué Moura”.

Anklagun CRog
Enviado por Anklagun CRog em 14/07/2017
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