Quando cai a noite (Parte I)

I

Que verdades existem por trás das sombras que dançam por toda a cidade quando esta é tomada pela escuridão e pelo silêncio ensurdecedor da madrugada? Pensei que eu poderia ter ao menos parte da resposta quando entrei para a polícia, meses atrás. Pensei que poderia ao menos entender o que as motiva, o que as fazem rondar à espreita pelas ruas, becos e vielas da cidade; por entre morros, favelas, prédios e condomínios luxuosos.

Logo que me formei no curso de formação de policiais na Academia de Polícia, fui designado para trabalhar no período da noite (acho que trabalhar em horários insólitos e em locais inóspitos é uma espécie de trote com todos os novatos) em uma delegacia cujo bairro era dos mais perigosos no Rio de Janeiro. Como a maioria dos novatos, eu imaginava poder resolver crimes, ajudar pessoas, e tudo o mais o que um policial deve fazer após o juramento feito em sua formatura. Devo dizer, entretanto, que a realidade não é bem o que está escrito em papéis ou acordado em palavras; a realidade é dura como rocha e fria como lâmina de aço – e, eventualmente, costuma cortar-nos a carne.

Após alguns meses de serviço, eu participava então de uma investigação de rotina; roubo seguido de morte, coisa muito comum por aqui: acontecem ao menos dez ocorrências desse tipo por dia. Após algumas semanas de investigação, conseguimos uma pista que nos levava aos prováveis assassinos, bandidos que habitavam a favela próxima à delegacia. A incursão para fazer a prisão seria complicada, afinal, teríamos que enfrentar um pequeno exército de marginais; mas esses riscos fazem parte do trabalho. É uma espécie de brinde que você recebe quando resolve ingressar na corporação – “Joguem-nos na cova dos leões! Vejamos se alguém os salva!”. As vezes parece que tem alguém muito sarcástico cuidando do universo.

A incursão estava marcada para o dia seguinte, mas, por algum motivo, havia sido marcada para a noite, e não durante o dia, o que seria o comum. Como eu era apenas um novato, não questionei a decisão. Na hora marcada para a incursão, nos preparamos e apenas uma viatura comigo e mais três policiais saiu em direção ao local. Como seria possível apenas quatro policiais (tudo bem, os outros eram veteranos e tinham mais de dez anos de polícia, mas isso não os tornava à prova de balas) entrarem sem serem feridos na fortaleza do crime? Se a curiosidade matou o gato, a satisfação o manteve vivo.

Após alguns minutos, chegamos ao local aonde presumivelmente estavam os criminosos. Porém, ao observar o local ao redor, pude perceber que não era exatamente o local combinado para a incursão. Estávamos em uma rua residencial, totalmente deserta. A viatura fora estacionada em frente a um terreno de terra que provavelmente servia como campo de futebol, visto que duas traves nada simétricas feitas de madeira agora apodrecida pairavam nas extremidades do campo, que seguia perpendicularmente ao local aonde estávamos. No lado oposto ao local aonde estávamos, uma imensa parede de rocha erguia-se por cerca de 10 metro de altura. Este local provavelmente era a “área de serviço” da imensa favela. Não havia ninguém na rua e, com excessão da conversa dos meus amigos policiais, o silêncio era tanto que algumas vezes tive a impressão de ter o ouvido doendo.

Durante cerca de quinze minutos ficamos ali parados, próximos à viatura. Os três policiais estavam calmos, como se estivessem no intervalo do café. Eu, por outro lado, tremia levemente e já tinha algumas gotas de suor escorrendo pela minha testa. Alguma coisa naquele lugar não me agradava, talvez fosse o silêncio. Enquanto esperávamos, alguns pensamentos passaram por minha cabeça, e um deles, embora relutante, é que talvez estivessem esperando algum “soldado” do tráfico para tentar um acordo – talvez dinheiro em troca de alguma desculpa do tipo “não encontramos os suspeitos”. Corrupção não é nenhuma novidade, mas eu não gostaria de fazer parte daquilo.

- O que estamos esperando aqui? – Perguntei, sem, no entando, dirigir a minha questão a um policial específico.

- Faz silêncio, peixe. Os caras que andam roubando aqui na área são dois irmãos, e passam por aqui por volta desse horário para escoltar a mãe deles até a igreja ali embaixo. Como o secretário de segurança está no nosso pé, vamos dar logo um jeito neles. Fica de olho e aprende como tratamos esses casos por aqui. – Respondeu-me Ferreira, o policial mais antigo da delegacia.

Os três policiais viraram-se rapidamente para um estreito beco que saia na extremidade do campo, rapidamente tirando suas pistolas de seus cintos e andando calmamente em direção a dois homens e uma mulher que saíram do beco.

- Mão na cabeça, vagabundo! Anda! – Gritou Ferreira, que naturalmente liderava o grupo.

A mulher, que deveria estar na casa dos 50 anos, afastou-se um pouco dos homens, mas permaneceu ali perto.

Sem falar mais nada, os três policiais – que tinham os olhos ardentes, como se estivessem sendentos por sangue - partiram como lobos famintos para cima dos homens, que naquela hora não eram mais do que meros bezerros perdidos de seu rebanho e entregues à fúria do destino. Socos e chutes eram desferidos incessantemente contra os homens. O festival de horrores e atrocidades durou apenas alguns segundos, sempre acompanhado dos gritos e do choro de desespero da mulher que observava, impotente, aquele circo de horrores. Um dos homens, agora caído no chão e sangrando por todos os poros, tentou alcançar o que pareceu uma arma preso em suas calças.

BANG! BANG! BANG!

Aquele movimento foi o suficiente para um dos policiais apontar a arma friamente para o peito do homem caído e disparar três tiros à queima-roupa. O outro homem, também caído no chão, tinha os olhos arregalados, o suor escorrendo de sua testa, e podia-se perceber o terror e o medo estampado em seu rosto quando foi executado logo em seguida. A mulher, que estava agora aos prantos, tentou correr em direção aos dois corpos caídos inertes no chão. Um dos policiais, porém, foi mais rápido. Da mesma forma que um carrasco participando de uma execução, ele deu um pequeno sorriso e disparou contra a cabeça da mulher. O corpo da mulher caiu – quase posso afirmar que foi em câmera lenta - em meio às risadas de escárnio dos quatro homens. Com os olhos arregalados, sentei no chão e limpei com as costas da mão o suor que agora escorria de minha testa, enquanto tentava controlar a minha respiração, agora ofegante perante a cena grotesca que acabara de presenciar.

(continua...)