Guerra Santa - DTRL31

Retirou os sapatos e os colocou na prateleira. Se dirigiu até a torneira e realizou o ritual de purificação, lavou as mãos, os braços, as orelhas, as narinas e o pescoço, igual fizera de manhã, igual fizera no dia anterior e tantas outras vezes ao longo da vida. Sem pressa caminhou até um tapete vazio. As colunas redondas se erguiam altas. A tinta desbotada das paredes e a ausência de algumas cerâmicas no chão denunciavam a necessidade de uma reforma. A mesquita estava movimentada, mas não era possível escutar sons de conversa, apenas as orações dos fiéis. Na frente, ao lado de uma grande porta de madeira e vestido de preto um homem observava a tudo. O Mihrab pendurado no teto indicava que estava na direção certa. Respirou fundo, abriu o coração e rezou para Alá.

Augusto Hassan terminou a oração e andou até o homem que a tudo observava.

— Salaam Aleikum.

— Alaikum As-Salaam.

— Estou pronto, Youssef.

— Me acompanhe — respondeu o homem cuja barba branca e pontuda contrastava com o negrume de sua roupa.

Ambos entraram pela porta de madeira, passaram por corredores e depois desceram escadas até chegarem a um armazém. Youssef retirou algumas caixas e revelou um buraco na parede.

— Entre, eles já estão te esperando.

Augusto abaixou e rastejou. Do outro lado se deparou com uma sala pequena, uma mesa de madeira no centro e um homem e um garoto, ambos sentados.

— Saudações, Augusto. — O homem se levantou e estendeu as mãos. Era magro e alto. A cabeça careca se opunha ao maxilar coberto por uma barba negra e cheia.

— Quanto tempo, Marcus. Fico feliz em tê-lo ao meu lado essa noite. — Se dirigiu ao garoto. — E você é?

— Almir — respondeu um jovem de pele pálida e cabelo curto. — Eu também vou.

— Mas, você é só um garoto.

— Almir já tem vinte anos. — Youssef saiu pelo buraco e se ergueu. — Assim como você ele completou o treinamento no Iraque e assim como você ele se voluntariou. Hoje à noite vocês três serão instrumentos da vontade divina e irão liderar nossa guerra santa.

Augusto aquiesceu e sentou-se. Pegou um laço e prendeu o cabelo comprido, coçou o queixo barbudo e olhou para a frente. Só conseguia enxergar um garoto sem pelos no rosto e algumas marcas de espinha, mal acreditava que ele havia completado o treinamento. Se perguntou se ele mesmo já foi assim, um jovem aos olhos dos veteranos. Fazia vinte anos desde que voltou do Iraque e por mais que tentasse não conseguia se lembrar da própria juventude. Era como se ela nunca tivesse existido.

— Essa noite vocês serão a mão direita de Alá — Youssef colocou uma caixa em cima da mesa, abriu e começou a retirar revólveres e granadas enquanto falava. — Aqueles que lutam a guerra santa não devem temer a morte, pois serão recompensados com o paraíso. Hoje à noite a batalha será travada no metrô, vocês se infiltraram como trabalhadores noturnos e deverão ir para os túneis abandonados. Dentro da caixa tem tudo que vocês precisam, armas, documentos e mapas. Que Alá guie o caminho de vocês.

Com as cabeças baixas os três começaram a pegar e a conferir o armamento e os documentos, mãos duramente treinadas checavam todos os detalhes. Perante o silêncio que se formou, Youssef prosseguiu:

— Marcus Jamar, saiba que se alguma coisa lhe acontecer sua esposa e seus três filhos serão amparados por nós. Deseja incluir alguém em seu protetorado?

— Não.

— Augusto Hassan, se você morrer iremos cuidar e amparar sua irmã em todas as necessidades dela. Deseja incluir alguém em seu protetorado?

— Não.

— Almir Ab Muktu, existe alguém que você deseja inserir em seu protetorado?

Sem conseguir responder o garoto apenas meneou a cabeça em sinal negativo.

— Almir, você já viu um Quturb? — indagou Augusto.

— Não, mas eu aprendi a enfrentar uma besta da lua.

— Nos encontraremos as oito da noite, na rua de trás da mesquita.

No horário marcado os três se encontraram na rua de trás da mesquita, colocaram as mochilas no porta-malas de um Uno preto e vestiram um macacão da empresa responsável pela manutenção noturna do metrô.

Sentado ao lado do motorista, Marcus olhava pela janela e cantarolava algo inaudível. Enquanto dirigia, Augusto enxergou pelo retrovisor o semblante apreensivo de Almir. Olhou para a própria imagem e viu um homem sério, rosto marcado pelo sol e a passagem do tempo. Cabelo e barba mal cuidados, naquela vida se importar com a aparência nunca era prioridade, usava um rabo de cavalo para impedir que os fios o atrapalhasse na hora da ação. Não demonstrava medo, mas sentia. Era impossível não sentir.

— Almir, o que você aprendeu sobre os Quturb?

— Que são bestas da lua, a noite são capazes de se transformares no que os ocidentais chamam de lobisomens. Durante o dia podem se passar por pessoas normais, mas exalam um cheiro de cachorro e possuem caninos maiores do que as pessoas normais — respondeu de forma mecânica.

— E como matamos eles?

— Com fogo, granadas e balas de prata.

— Acerte primeiro as pernas — interveio Marcus. — Muitos miram no tronco ou na cabeça. A cabeça é pequena e na correria mais difícil de acertar. Ao receber uma bala no peito eles continuam vindo para cima. Acerte a perna e vão cair, depois é só terminar o serviço.

— Qual é a fase lunar de hoje? — perguntou Augusto.

— Lua nova — respondeu Almir.

— E o que isso significa?

— Que eles estarão mais fracos do que em outras noites, irão demorar mais para se transformarem. A melhor fase para caçarmos eles, exceto pelo dia. Por que não fomos durante o dia?

— O número de trabalhadores do metrô é muito maior, sem contar os milhares de passageiros que poderiam ser mortos se as coisas saíssem do nosso controle.

— Mas essas pessoas não acreditam em Alá, muitas delas zombam de nós. Nos chamam de terroristas, homens bomba, Bin Laden. Indo a noite corremos o risco de morrermos em nome da proteção delas.

— A guerra santa deve ser travada nas sombras, jovem Almir. Se o que fazemos virar notícia aqueles que protegemos viverão com medo e você logo descobrirá que o medo não é um bom estilo de vida. Nossa missão é protege-los dos monstros que caçamos e também da angústia que a verdade causaria. O caminho de Alá exige sacrifícios e se sacrificar não se resume em dar sua vida para algo maior. Sacrifício significa fazer aquilo que é certo, independente da sua vontade terrena.

— O caminho é difícil — disse Marcus sem desviar o olhar da janela. — Não existe promoção pelo trabalho bem feito, aos poucos ele te consome e fica cada vez mais difícil sair. Há cinco anos eu falo que o próximo trabalho será o último e nunca é. Eu estou em casa, olho meus filhos brincando e penso que enquanto existir esses seres malignos eles não estarão seguros. Então eu respondo ao chamado de Youssef, encaro a morte de perto, falo que nunca mais irei caçar, chego em casa e vejo meus filhos. É um ciclo sem fim. Ainda há tempo para você, garoto. Ninguém vai te julgar, quando o carro parar pegue outro rumo.

— Chegamos — anunciou Augusto.

Em silêncio os três saíram do carro, cada um carregando sua mochila. Almir não tomou um caminho diferente, se juntou aos dois caçadores experientes e juntos apresentaram seus documentos aos guardas que os deixaram passar. A rotatividade era grande e ninguém olhava para os rostos, apenas para os papeis de autorização.

Desceram as escadarias da estação São Bento, passaram pelas catracas e continuaram a descer. Vestindo macacão e boné da empresa responsável pela manutenção do metrô eles se misturaram a outros funcionários, alguns olhavam para a tela do celular para averiguarem as atribuições da noite, viam o que iriam fazer e em qual setor. Outros preferiam imprimir o e-mail que recebiam da empresa com suas obrigações e escalas. Os caçadores também levavam um papel com um mapa indicando que deveriam ir para os tuneis abandonados e caçar uma matilha com uma estimativa de quinze Quturbs.

Ligaram as lanternas e entraram no túnel sentido Jabaquara, aos poucos as vozes dos outros trabalhadores foram ficando para trás. Se aquele mapa feito a mão estivesse certo encontrariam a entrada antes de chegarem a Sé. Poucas pessoas na cidade sabiam, mas abaixo da terra existiam um número muito maior de túneis do que o divulgado. As vezes os engenheiros não faziam os cálculos corretos e os construtores eram obrigados a parar a escavação para não afundarem um bairro inteiro. A criação de túneis também era usada como meio de aumentar a verba para depois desvia-la. Alegavam que eles seriam usados no futuro, mas as construções eram abandonadas porque o dinheiro disponibilizada não foi suficiente, logo caia no esquecimento. Assim, o subsolo de São Paulo aumentava e servia de refúgio para criaturas das trevas.

— Por aqui — disse Augusto ao avistar a entrada que procuravam. Uma porta estreita, de um metro de altura e pintada com a cor da parede. Um cadeado grosso estava arrebentado e caído no chão. Sem dizer uma palavra, Marcus se agachou, empurrou a porta e entrou. Os outros o seguiram.

Do outro lado encontraram um túnel ainda mais frio e escuro do que o anterior. Augusto iluminou o mapa e indicou a direção que deveriam caminhar. A sensação era de que desciam cada vez mais.

— Esse lugar parece ser perfeito para os demônios, deve existir muito mais do que quinze e não apenas Quturbs — sussurrou Almir.

— Talvez tenha, mas não tanto quanto você imagina, nós fizemos uma bela limpeza há alguns anos e agora mantemos uma vigilância pesada, um ou outro pode até passar, mas quando formam um grupo já descobrimos. — Augusto parou e começou a retirar as armas de sua mochila. — Devemos nos preparar, estamos chegando perto.

Devidamente armados retomaram a caminhada. Augusto podia sentir a tensão em seus ombros e também nos olhos de seus companheiros. Realizava um exercício de respiração para diminuir o ritmo cardíaco, mas não podia fazer nada pelo suor que brotava do corpo. Segurou firme o revólver e a lanterna. Se lembrou da guerra de anos atrás e desejou ter rifles e metralhadoras igual àquela vez. Eles limparam o subsolo, mas esgotaram os recursos das organizações de caça. A prata não era barata e o custo para confeccionar munição para o fuzil arcava com vinte pistolas carregadas. Pelo menos ainda contava com três granadas na cintura.

— Falta muito? — perguntou Marcus.

Antes que Augusto pudesse falar a resposta ecoou pelo túnel.

Um uivo prolongado ricocheteou pelas paredes até atingir os tímpanos. Os pelos do corpo se eriçaram e o coração disparou. Se posicionaram um ao lado do outro, as lanternas jogavam luz em busca do inimigo.

— Não saiam da posição, só atirem depois que eu atirar e só usem a granada em último caso. A explosão pode nos soterrar. — Augusto ascendeu um sinalizador e o jogou o mais longe que pode. A luz vermelha iluminou o túnel e os deixou aterrorizados.

Outro uivo ecoou, depois outro e mais outro até o barulho se tornar ensurdecedor. Um chamado para a guerra. Existia muito mais do que quinze seres na frente dos caçadores. A conta provavelmente estava em torno de cinquenta

Sob a penumbra avermelhada surgiram homens, mulheres, crianças e idosos. Alguns começaram a correr em direção aos invasores e outros estavam parados, apenas olhando e esperando a transformação se completar. Os membros se alongaram um pouco, dos dedos saíram garras e a mandíbula se tornou proeminente e exibia uma arcada dentária que lembrava um animal feroz.

— Esqueçam o que falei. Usem as granadas primeiro.

Augusto agradeceu por ser lua nova e não ter que enfrentar as bestas com mais de dois metros. Retirou o pino da granada e a arremessou o mais longe que pode. Viu que seus companheiros fizeram o mesmo.

— RECUAR!

Giraram o corpo e correram sem olhar para trás. Três explosões, o chão tremeu e caíram. A luz vermelha se extinguiu e usaram as lanternas. Uma nuvem de poeira pairava pelo túnel, os uivos foram trocados por choro e gritos de dor. Uma menina pequena surgiu, devia ter em torno de dez anos. O vestido outrora branco estava sujo com barro e sangue. Com o braço esquerdo dilacerado, chorava.

— Helena, cadê você? Estou com medo — murmurava a garotinha.

Augusto mirou e disparou. Um tiro certeiro explodiu a cabeça da pequena Quturb. Outros surgiram da nuvem de poeira. Com ferocidade no olhar, atacaram.

Disparos ecoaram em resposta. Alguns vinham pelas paredes e outros corriam em frenesi. Os caçadores se levantam, com uma mão seguravam a lanterna e com a outra a arma. Recuavam e atiravam.

— Outra rodada de granada? — sugeriu Marcus.

— No três — respondeu Augusto.

Da poeira surgiu uma mulher.

— Um.

A mulher se agachou ao lado do corpo da menina e chorou.

— Dois.

O choro se transformou em um uivo e saltou fincando as garras na parede.

— Três.

A explosão causou um tremor ainda maior. Pedaços de carne caíram próximos aos caçadores que apontavam suas armas para a nova nuvem de poeira.

O silêncio que se instalou após a última explosão foi perturbador. Augusto se perguntava se havia acabado, colocou a mão na cintura e viu que só tinha mais uma granada, sua munição também estava quase no fim. Girava nervosamente a lanterna em busca de algum movimento. Não ousava olhar para o lado ou perguntar como seus companheiros estavam.

— MARCUS! CUIDADO. — O grito de alerta do Almir veio tarde.

Com extrema rapidez a mulher veio pela parede. Marcus tentou acerta-la três vezes e errou. A besta saltou e caiu em cima da sua presa, cavou suas garras nos ombros do homem o levando ao chão e com a boca rasgou a jugular.

Outros surgiram das paredes e até do teto, sem tempo de lamentar os caçadores atiravam. Almir tentou acertar a besta que matou Marcus, mas ela não estava mais lá. Um idoso com agilidade surpreendente corria em sua direção, acertou a perna do Qutrub e ele caiu, em seguida atirou na cabeça. Outra besta correu em sua direção. Apertou o gatilho e nada, sua balas haviam acabado. A fera saltou e teve sua cabeça explodida por uma bala de prata.

— Foi minha última bala — disse Augusto.

— Seus monstros. — A mulher que matou Marcus surgiu em meio a nuvem de poeira. — Não estávamos fazendo mal a ninguém.

Augusto se virou e antes que pudesse fazer algo sentiu frio seguido de dor na barriga. As garras do monstro rasgavam suas entranhas.

— Corra — murmurou olhando para Almir.

Levou a mão na cintura, puxou o pino da granada e depois abraçou sua algoz. A grana explodiu. Fera e caçador morreram.

Almir correu, sem olhar para trás ele correu.

Alex da Silva
Enviado por Alex da Silva em 25/08/2017
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