UM TROPEÇO NA LONGA JORNADA DA REDENÇÃO dtrl 31

O sol da tarde morria no horizonte enquanto a noite vinha lentamente devorando as escassas caibreiras mescladas aos arbustos espinhosos da caatinga. Sem cerimônias, um vento morno carregado de mau agouro agitou a poeira daquele solo quase infértil.

Era hora de caminhar.

Aquela auto-penitência era pouco para quitar seus hediondos crimes, mesmo tão fraco, sentia-se grato por cada vez mais se afastar da tentação. Andava durante a noite oculto nas sombras projetadas pela luz da lua, quando a aurora aproximava, buscava abrigo. Definhava a cada passo, mas seguia adiante se protegendo dos insuportáveis dias escaldados pelo forte sol nordestino, quando tinha sorte, encontrava um ponto de terra fofa, escavava-a preparando seu leito, naquela sepultura improvisada recuperava-se para outro começo.

Nas horas de infortúnio, recordava os dias de glória em companhia dos seus, naquele tempo não faltavam boas refeições. Maldita consciência que fez queimar o coração, lhe obrigando a desejar outra vida. Agora vivia um dia após o outro, aumentando a distância entre ele e a civilização, seu passado não podia ser ignorado, apenas um futuro diferente deveria ser criado. Se pudesse em algum instante esquecer-se de si mesmo, era neste momento que seria feliz, se ao mirar as estrelas tivesse a certeza que nenhuma delas foi testemunha de seus crimes, ele próprio esqueceria seu fardo.

Por vezes, a fraqueza nem lhe permitia caminhar de pé, arqueado como um centenário, apoiando-se num sinuoso cajado, arrastava-se sempre adiante. Um corcunda surrado envolto em trapos vencia as pedras do caminho, sua carne seca e parca resistia aos augúrios da viagem.

Evitando lugares povoados ia em direção ignorada, ocultando sua existência, saciando sua sanha nos quintais de casebres de taipa. Um cão, uma cabra ou jumento lhe servia de repasto. Pela manhã, roubados, os moradores creditavam a perda a um vizinho de má índole, as carcaças quando sobravam eram disputadas por urubus magrelos. Já se passava um bom tempo que homem algum contemplava seu rosto cadavérico, seus olhos fundos e lábios trincados.

O sono roubado durante o dia, permitia-lhe imaginar a dança do pó do caminho erguendo-se ao sabor da brisa, algumas folhas secas flutuando no infinito com destino ao repouso que tanto almejava. No horizonte, o bailar das ondas térmicas transformando a areia em oceano eram as recordações de uma época agora quase inexistente, de um passado que se tornou saudoso. Caminhando só, sabia que jamais deveria reencontrar seus pares, termia não ser compreendido. Via as estrelas tão brilhantes e sedutoras, imaginava quão longe estariam, sempre fora de seu alcance enquanto sua paz residia num lugar muito além de tudo que poderia tocar.

Dias e noites sucediam-se, e ele caminhava por trilhas desertas, quando preciso embrenhava-se por entre os galhos tortos, sabia ser seguro, pois nenhum outro venceria tais empecilhos.

Aquela noite era de lua clara, quase não tinha brisa, os animais estavam emudecidos pelo fim do penoso dia, o cheiro de vida vinha de longe, se pudesse, chegaria a salivar. Era o perigo se aproximando. Rapidamente sons de motores foram ouvidos a curta distância, ele sempre os evitava. Um... Três ou quatro veículos rasgavam as estradas esburacadas deixando atrás de si os rastros que em breve seriam esquecidos.

Ele estava exausto, não pressentiu ameaça, esperava ser apenas mais um grupo de viajantes displicentes retornando as suas casas em alguma vilazinha próxima. O jeito era se esconder como de costume. Não estava preocupado, resolveu ficar imóvel. Ninguém dá atenção a um velho maltrapilho coberto de poeira, as pessoas em geral olham na direção oposta, preferem ignorar os pedintes à beira do caminho, bastaria aquietar-se que tudo terminaria bem.

Retirou-se a uma das margens, encolhido parecia uma criança de pouca estatura. O som ficou mais alto, os veículos aproximavam rapidamente. Desejava que ele logo se dissipasse na penumbra, fosse engolido pelo esquecimento. Agora estar perto de humanos causava-lhe muita angústia, mas vinham em sua direção, não adiantaria ser como uma pedra, ficar imóvel ou desejos absurdos. Estavam cada vez mais perto.

Eram três motos com seus faróis vencendo a escuridão, os fachos luminosos dançavam a perder de vista, subindo e descendo segundo as lombadas. As duas primeiras passaram sem lhe dar atenção. Bêbado, o carona da terceira estranhou a triste figura. Numa mistura de crueldade e desrespeito arremessou a garrafa que tinha em mãos, tentou alvejar o sujeito. Quase conseguiu. Os ocupantes apesar de passar bem próximos não conseguiram enxergar o brilho maléfico nos olhos da criatura.

O desagradável ronco dos motores foi se perdendo, a paz dominou a noite calorenta.

O andarilho mantinha os olhos fixos na garrafa. Sua garganta seca clamava por algo líquido, precisava conferir.

O gosto da bebida barata umedeceu seus lábios, eram poucas gotas que o fez tremer de desejo. A sede o deixava lento.

Pôs-se em marcha apoiando-se no cajado. Até a madrugada encontraria algo que amenizasse sua fome, também era preciso um abrigo. O mormaço noturno indicava que o dia seria como os outros, o calor era enlouquecedor.

Caminhou por um tempo indeterminado, mesmo sem desejar, tinha que parar, abaixou-se, apanhou um pouco de terra, parecia querer tocá-la com a boca, sentir seu sabor, por fim deixou a gravidade roubar por entre seus dedos aquele pedaço de chão. Era o leito de um rio morto, em épocas distantes ali havia vida. Quem sabe se cavasse poderia encontrar esperança, um misero filete d’água.

Aquela não era mesmo uma noite de sorte, poderia caminhar um pouco mais antes de ocultar-se dos raios de sol. Um cheiro peculiar tomou conta do ar, por mais que fugisse sempre se deparava com a tentação.

Os motoqueiros, quatro rapazes e uma moça, todos adolescentes que também precisavam descansar, pararam naquele mesmo local. Com toda sua astucia era tarde demais, a privação deixa lento o raciocínio, não pôde se esconder, tinha sido visto assim que chegou. Após anos de provações, definitivamente estava enferrujado, em seus dias de glória jamais seria surpreendido.

Talvez não fosse nada, por vias das duvidas melhor se afastar. Se não é tão forte, não se coloque diante da tentação ou acabará sucumbindo. Recuou.

Em geral as pessoas têm um macabro senso de humor. Estando ali nas entranhas nordestinas, tudo que se fizesse a poeira cobriria. Dominados pelo álcool, os rapazes ostentavam uma coragem que não lhes pertencia, parecia potencializada pela hedionda busca pelo prazer em molestar aquele pobre indigente. A garota ria arrogantemente dizendo impropérios ao inofensivo maltrapilho que desejava apenas prosseguir. Aquele encontro jamais poderia ter existido.

Como uma matilha faminta os jovens cercaram o andarilho, insultos sem nexo eram ditos, blasfêmias, xingamentos, risos, tudo sendo absorvido com amargo gosto pelo viajante. Um dos rapazes se abaixou, havia muitas pedras pelo caminho, uma foi arremessada, não com tanta força. Acertou o ombro do caminhante, era uma provocação, não desejou causar-lhe ferimento. A pancada da pedra fez com que ele desse um passo atrás. Pela primeira vez levantou os olhos, estava em apuros, sabia que qualquer reação poderia ser fatal. Olhou em volta, com sorte desvencilhava do grupo embrenhando por entre os espinhos. Certamente seria mais rápido, afinal já estava acostumado com a dor. Os jovens desistiriam facilmente da perseguição.

A fuga não era sua única opção.

Num galinheiro podem existir dezenas de galos de briga, porém uma única raposa basta para que todos sejam devorados.

Estava farto, sua jornada não lhe trouxe paz, por mais que desejasse outra vida o cheiro do sangue ainda lhe dava prazer. Sua consciência dizia para fugir, esquecer e continuar. Seu instinto ordenava o ataque, saciar sua fome abraçando suas origens. Por mais que lutasse, cedo ou tarde seria confrontado. A paz era um luxo que não poderia se dar.

Munidos de paus e pedras, a intenção era dar uma surra ao pobre indigente, talvez ate livrar a terra daquela inútil aberração.

Com a respiração ofegante, a sede apertando sua garganta, seus nervos repuxando espasmodicamente e o desejo incontrolável de lutar crescendo em seu peito degenerado era uma bomba prestes a detonar.

Impulsivo, um dos jovens adiantou-se lhe arrancando o capuz. Mesmo sob a luz das estrelas a visão não era bela.

O andarilho tinha uma cabeça alongada totalmente desprovida de pelos, sua pele rugosa e ressecada parecia terra sem vida rachada após a tempestade. Uma das orelhas parcialmente mutilada, a outra arrancada deixado apenas o orifício como lembrança do órgão perdido. Os olhos miúdos, no fundo das orbitas cadavéricas cintilavam um amarelo opressor. O nariz deformado por inúmeras pancadas arfava o morno ar da madrugada. A boca ainda cerrada tinha forma de um enorme sorriso, três vezes maior que de uma pessoa normal.

O espanto congelou a molecada, o silêncio permitiu aos agressores ouvir pela primeira vez o som do riso sarcástico de sua amaldiçoada vítima. Aos poucos o andarilho ia deixando sua forma arqueada, seu cajado não era mais necessário, ereto mediria facilmente dois metros e vinte de altura, os trapos que lhe serviam de veste deslizaram sobre seu corpo. Seus longos braços perpendiculares ao corpo desciam abaixo dos joelhos. O riso cessou dando lugar a um ranger de dentes até que lentamente a coisa foi abrindo a mandíbula meneando a cabeça de um lado para o outro. Parecia pesar cada um de seus agressores, o problema agora era decidir quem seria o primeiro a perecer.

Recobrando-se do susto, um dos motoqueiros inutilmente atacou munido de um galho seco. Foi neste momento que percebeu seu azar. Ele quase não sentiu quando sua garganta foi rasgada pelos longos dentes da criatura, seu sangue fluía dando uma sensação de tranqüilidade. Sentia seu espírito abandonar a inútil casca enquanto era envolvido pelo abraço quase sensual do predador. Naquela noite clara eram como dois amantes satisfazendo suas taras.

Fazia anos que não saboreava sangue tão quente, quando optou por não caçar humanos desistiu de sua índole violenta, queria mais para sua existência, o rastro de morte que o perseguia tinha que ser interrompido. A solidão, a privação, a solução.

Desesperados, os sobreviventes em pânico fugiram sem rumo. Ele não tinha pressa, sempre esteve em vantagem. Eles se condenaram no momento que pensaram serem superiores. Não bebeu completamente seu agressor, mas foi o suficiente para regenerar-se, o sangue escoria pelo seu queixo, encharcava seu peito, assim que percebeu o coração estagnar deixou o corpo sem vida cair. Tinha outros a caçar.

Como nos velhos tempos, saiu de dentro do seu casulo, tornou-se uma besta faminta. Perseguiu os pobres garotos dado-lhes falsas chances de sobrevivência, vez por outras surgindo da sombra encravando suas longas unhas na carne macia fazendo ecoar um longo grito de dor. Manchas de sangue coloriam os arbustos enquanto acuados eram direcionados como gado ao local de abate. Sem orientação por estar num ambiente desconhecido agravado pelo medo, chegaram ao ponto de origem. Os três jovens gravemente feridos tinham aos pés o cadáver do amigo.

A vida já não valia nada, teria a melhor refeição durante anos, nenhum condenado a morte recebeu tão farto manjar em sua última refeição. Ele aproveitou intensamente cada gota satisfazendo-se como na época em que era o pior dos predadores. Foi uma noite memorável, ele pensava ainda com o corpo quente da garota em seus braços. Os primeiros raios de sol insinuavam-se no horizonte.

Seu espírito cansado pedia um pouco de paz, décadas após décadas nunca pode ser feliz, não compreendia o verdadeiro sentido ou nunca experimentou a tão desejada paz.

A manhã parecia linda quando o calor do sol tocou sua face, sua pele rejuvenescida horas antes, ardia como se tocada pelo ácido. Ele ficou de pé com os braços abertos, todo seu corpo foi tomado pelas chamas. Um grito terrível desafiava a própria morte. Em minutos estaria finalmente livre, deixaria para traz toda sua dor.

Jogou-se ao solo. Com suas ágeis garras cavou como jamais havia feito, entocando-se nas profundezas do solo, viveria para caçar no dia seguinte.

Tema- Vampiros

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 09/09/2017
Código do texto: T6109092
Classificação de conteúdo: seguro