Tem Um Corpo Na Porta Do Meu Quarto

Tem Um Corpo Na Porta Do Meu Quarto

Por: Bruno Kawakami Basso

03/10/2017

Tiros. Um clarão. Fumaça.

E era isso.

Tudo o que sobrou foi Johnny e um corpo na porta do seu quarto.

*

Estava escuro. Mas mesmo assim Johnny não queria abrir os olhos. Ele estava com aquela velha sensação de que, do mesmo jeito que um cobertor nos protege de um fantasma, fechar os olhos poderia nos proteger do ambiente ao redor.

E por minutos ele ficou ali, parado, com a cabeça embaixo da coberta, com os lábios cerrados segurando o choro, com o suor frio grudando na camiseta do pijama. Camiseta a qual sua mãe tinha lavado e passado durante a tarde e, quando entregou a ele, aconselhou: “Vê se não suja, menino”.

Eu acho que ela estava falando sobre molho de macarrão, e não suor, pólvora e ... Molho de macarrão humano talvez?

Pólvora. Johnny nunca achou que sujaria sua camiseta de pijama com isso. Não era o que os filmes de policiais falavam? Se você atirasse segurando uma arma muito perto do corpo, você ficaria com vestígios de pólvora? Muito esperto, detetive Grissom. Agora vá estudar suas formigas.

Ah, mas Johnny realmente havia atirado com a arma perto do corpo, de fato. Ela estava praticamente grudada em sua barriga na hora dos... Quatro? Cinco? Talvez seis tiros.

Seis. Ele havia sentido todos os seis solavancos que a pistola do pai havia dado em direção ao estranho que entrara em seu...

Estranho? Que estranho?

Ah meu deus, um estranho entrou no meu quarto, é verdade – ele pensou.

Não vai abrir os olhos, bonequinha? – A voz era de Bruce Darlington.

Bruce Darlington. 14 anos. Delinquente juvenil e estudante da escola de Johnny nas horas vagas. Autoproclamado valentão e capataz dos meninos de sua sala apenas por ter dois anos a mais do que a maioria deles.

Bruce era o típico aluno-problema, com uma família quebrado esperando por ele em casa. Era difícil opinar sobre seus pais já que eles nunca haviam aparecido nas reuniões de pais e mestres. Com 14 anos, Bruce já se gabava de saber dirigir e por ter atropelado seis gatos. Foram seis mesmo, bonequinha. O ultimo tentou fugir, mas não gosto de números impares. Bruce sabia de matemática nessas horas.

Mas nada disso chegava perto do que ele tinha feito com Jason.

Jason. É isso. Jason era inteligente antes do “acidente”. O que Jason faria em seu lugar? Pense Johnny...

Você deveria abrir os olhos, amigão. Ouça esse silêncio ao redor, é quase mortal. Não deve haver ameaças. – era a voz de Jason em sua cabeça agora.

“Ele tem razão”, foi o primeiro pensamento que ocorreu a Johnny. “Mas, pensando bem, o silêncio realmente era indicativo de algo bom? Becos escuros que guardam assaltantes não são silenciosos? Taxistas que vão estuprar mulheres não costumam falar muito. Casas assombradas são silenciosas. Cemitérios são silenciosos.”

Mortos são silenciosos.

Ah, mas ele poderia fazer algo antes de abrir os olhos. Ah sim, a válvula de escape de todas as crianças assustadas. E por que não dos adultos também?

Johnny encheu os pulmões de ar e gritou o mais alto que pode:

- Mãããããããããããããããããããããããããe!

O grito saiu fino, como de uma garota. Mas ele honestamente não ligava muito para isso nesse momento.

As ondas sonoras produzidas pelo grito voaram pelo quarto e passearam pela casa, inertes a tudo, como um pássaro voando pelo cemitério. Nada se mexeu; Nada respondeu.

Nada. Silêncio. Johnny esperou.

“Ela pode não ter ouvido, talvez se eu...”

Você gritou alto o suficiente para acordar a porra dos seus vizinhos, bonequinha

“Sim, mas talvez..”

Talvez?

“Talvez ela não esteja em casa, ela pode...”

Eu acho que não, bonequinha. Você sabe muito bem que ela está em casa.

“Mas então por que ela não me responde? Por que ela está tão...”

Silenciosa?

“sim...silenciosa.”

Lágrimas começaram a escorrer pelo nariz de Johnny, mesmo seus olhos continuando fechados.

Porque mortos são silenciosos, bonequinha.

*

Johnny chorou. Chorou e soluçou. Pareceu ignorar que, do que quer que ele estivesse se escondendo, poderia ouvir seu soluço. Essa ideia lhe ocorreria mais tarde quando, com pavor, ele imaginaria uma mão ossuda e pálida puxando seu cobertor e um homem com longos cabelos negros e um sorriso que nunca sumia olhasse pra ele e dissesse:

- Por que está soluçando, Johnny Boy? Está fazendo muito barulho – e aumentando mais ainda seu sorriso, completasse – Acho que vou te deixar silencioso também.

Mas, por enquanto, ele só pensava em chorar.

Por que não se acalma, amigão? Dê uma espiada pelo menos. Abra os olhos, não vai ver seu quarto de qualquer jeito, está com a cabeça coberta – a voz de Jason voltou.

Estava? Estava.

Okay, essa era uma boa ideia. Johnny gostava de Jason, ele sempre sabia o que fazer.

Abriu os olhos.

O que ele viu antes de tudo foram vagalumes dançando em sua retina. Vagalumes?

Não, apenas luzes.

“Deus, quanto tempo eu fiquei com os olhos fechados?”

Quando seus olhos pareceram se acostumar com o fato de estarem abertos, ele reconheceu seu próprio corpo embaixo do cobertor.

Estava encolhido, quase em posição fetal. Suas mão estavam suadas, congeladas, e ainda seguravam a arma que seu pai lhe dera.

Johnny se lembrava da primeira vez que havia visto aquela arma: Seu pai estava em uma mesa com mais quatro ou cinco amigos, e sua mae estava cozinhando. Ele estava a procura de seu “aipadi”(como ele falava na época) e acabou colocando a mão em uma coisa muito mais pesada do que seu aipadi. Algo maior também, e metálico, porém com um apoio para a mão, ao que parecia.

Curioso, puxou aquele peso da gaveta de seu pai, e já na hora ouviu a voz do mesmo:

- Uou uou uou, o que está fazendo garotão?

- Só estava procurando...

- Não, não. Ainda não é hora de você usar isso. – interrompeu o pai, se agachando para tomar o objeto de sua mão.

O comentário de seu pai fez seus amigos de mesa darem risada, exceto um que parecia um pouco nervoso.

- Pra que serve isso, papai?

- Isso? Bem...

Os olhos do pai rodaram a sala em busca de ajuda. Seus amigos abaixaram a cabeça em tom de “seu filho, seu problema.”

- Bom filhão, isso... – seus olhos caíram sobre as cartas e fichas em cima da mesa dos amigos.

- Isso serve para pokerizar as pessoas, Johnny Boy. Ela faz “POK”. – o pai fingiu um estalo colocando um dedo indicador dobrado dentro da boca.

Na hora, Johnny riu. Pokerizar as pessoas.

Agora, ele voltava a chorar, pois viera à cabeça as ultimas palavras de seu pai antes do quarto escuro e silencioso:

“ – Vai Johnny, pegue o brinquedo e vá para o seu quarto. Se alguém passar pela sua porta garotão, pokerize o filho da puta. Pokerize todos.”

Mas diferentemente da primeira vez que seu pai havia mencionado o termo, ele não estava sorrindo. Papai estava assustado como nunca, com os olhos arregalados e com um brilho quase sobrenatural dentro deles.

Pokerize todos.

Parece que, as vezes, quando se entende o jogo, ele perde a graça.

*

Foco.

Essa palavra veio a Johnny como um enfarto que atinge um idoso. Ele estava prestes a seguir as ordens de Jason, de olhar ao redor.

“Okay. Vamos fazer isso.”

Suas pernas estavam lá. Seus pés estavam lá. Embora o grosso cobertor diminuísse significativamente a visibilidade, ele conseguia ver tudo isso e ainda mais:

Ainda estava de meia. E ainda segurava a arma. As dobras do seus dedos estavam levemente escuras, talvez fosse a pólvora. Parabéns.

Seu pijama. Ah, esse tinha uma bela história para contar. Se algum dia sua mãe voltasse a lavar suas roupas, essa ia dar trabalho. Estava encharcada de suor, tinha varias outras manchas pretas e... Oh deus, acho que aquilo é sangue.

Molho de macarrão humano.

“Meu? Não, não estou sentindo dor. Talvez do papai, ou da mamãe. Mas não me lembro de... Talvez do estranho que entrou no meu quarto.”

Estranho?

Johnny não aguentou. Fechou novamente os olhos, se encolheu o máximo que pode e voltou a chorar.

“Tem alguém no meu quarto. Alguem entrou no meu quarto. E o que me assusta é que ele não está fazendo barulho.”

Se não faz barulho amigão, talvez não esteja mais por aqui, se é que me entende.

Covarde. Deve ter mijado nas calças uma hora dessas.

Por que essas vozes não paravam? Por que? Johnny era apenas uma criança, mas poderiam aparecer tantas pessoas em sua mente, e aparecerem Jason e Bruce. Por que?

Detetive Grissom saberia o que fazer. Indiana Jones também.

Mas não importava, elas estavam ali. De algum maneira, aqueles dois meninos estavam ali com ele. Johnny nunca desejou tanto ver Bruce Darlington na vida. Se estivesse ali, com certeza já teria jogado o cobertor para o alto e enfrentado o que quer que estivesse ali, não teria? Não daria o gosto de deixar alguém ficar o assustando.

E Jason? Faria o que se estivesse ali? Hoje, não faria nada. Hoje, Jason passa o dia numa cama, olhando para o teto como se pedisse para ver algo além do telhado, como se pedisse para alguém fazer algo além de dar comida para ele. Algo mais sombrio. Algo mais... Libertador.

Johnny lembrava como se fosse ontem no dia em que viu a mãe de Jason na escola aos prantos, e apontava para Bruce. O valentão em contra partida, tentava dizer coisas, mas ninguém prestava atenção. A única coisa que da pra se notar eram as chaves do carro em sua mão, e uma multidão no meio da rua. Ele se lembrava dos gritos, do choro. Da sirene da ambulância, do cheiro de pneu queimado.

Lembrava de Bruce ter dado um sorriso sarcástico e de ter dito “Eu buzinei”, lembrava da mãe de Jason indo para cima dele.

E só. Aquele dia estava perdido no nevoeiro da memória.

O pensamento trouxe calafrios a Johnny. Mas trouxe um sentimento de gratidão em relação a Jason: O amigo sempre lhe havia ajudado a estudar, havia tentado lhe defender varias vezes de Bruce.

“Nós jogavamos bola juntos”.

Não mais.

“E ele está aqui agora.”

Aonde quer que Bruce estivesse, lá estava Jason. E isso aconteceu inclusive dentro da consciência de Johnny. Os dois estavam lá. Um tentando atrapalhar, um ajudar.

“Eu acho que eu devo essa a você.”

Por Jason, e pela sua sanidade, Johnny decidiu puxar de vez o cobertor da cabeça e olhar ao seu redor.

*

Do mesmo jeito que um homem respira aliviado depois de tirar uma máscara que cobriu seu rosto por horas, Johnny sentiu e respirou o ar fresco do quarto assim que puxou o cobertor do rosto.

Mas a sensação de alivio não durou muito, já que a cena que ele veria a seguir ficaria marcada em sua consciência para sempre: Tinha um corpo na porta do seu quarto. E a posição que ele estava estava desafiando sua sanidade: Era uma espécie de L, com as pernas do homem sendo a parte de cima da letra e com seu torso no chão, estirado. Ele estava em um “ângulo reto quase perfeito”, como dizia o professor de matemática de Johnny quando mostrava figuras geométricas opacas.

Os braços estavam esticados também, paralelos e com pouco espaço entre si. A cabeça, obrigado por todos os deuses, estava encoberta, escondida entre os ombros, como se ele estivesse indo mergulhar em uma piscina. A alguns centímetros de sua mão direita, jazia uma arma. Era bem parecida com a do seu pai. Com um aperto no seu coração, Johnny lembrou do tiro que sua mãe recebera assim que abrira a porta a algumas horas (horas? Minutos?) atrás. “Essa coisa também pokeriza as pessoas.”

Era impossível saber que tipo de roupa o homem estava usando, pois o quarto estava escuro, e só era possível enxergar algumas coisa porque a luz do corredor ainda estava acesa, e a pequena fresta da porta que insistia em permanecer aberta mesmo com o peso do corpo encostado nela ainda permitia a Johnny ter um pouco de luz.

Acende a luz amigão, vai facilitar as coisas.

“Ah, oi Jason. Boa idéia.”

Johnny tateou a parede atrás de sua cama em busca do interruptor de luz, mas a única coisa que sentiu foi a parede fria. “Era pra estar aqui em...”, e ai se lembrou que não estava mais na sua antiga casa em seu antigo quarto. Há um pouco mais de um ano quando repentinamente seu pai decidiu mudar de casa, Johnny vira a falta do interruptor atrás da cama como um problema, pois tinha medo do escuro. O pai apenas tinha apenas passado a mão em sua cabeça e falado “Que bom, agora você vai perder esse medo.”

Um ano depois e isso ainda não aconteceu, papai.

Johnny achou que talvez nunca fosse perder o medo do escuro, e ele não achava isso tão ruim assim. Afinal o medo nos protege, certo? Se as pessoas tem medo do escuro, precisa existir um motivo para isso. Monstros moram lá, pessoas ruins, pessoas que pokerizam gostam do escuro. Ele havia aprendido nas aulas de história da srta.Hennan que uma das primeiras coisas que o homem tinha feito quando colocou os pés por aqui foi criar o fogo. E ele duvidava que fizeram isso apenas para dar inicio ao churrasco.

O escuro está enraizado em nossa vida assim como a luz, pois para existir um, precisa existir outro. E embora existam males pela luz também, o escuro deixa tudo pior. Quando você coloca sua mão numa caixa de papelão e sente algo peludo você não imagina que seja um chaveiro de pelúcia, e sim uma aranha com pelos grossos e secos, escondida e te observando por oito janelinhas.

“Então papai, acho que não perdi o medo ainda. E não sei se quero perder. Tem um corpo na porta do meu quarto. Ele está bloqueando a passagem. Mas eu não estou vendo isso; Eu estou vendo ele se mexer e vir na minha direção sem modificar seu formato de L. Estou vendo uma forma desumana, com os ossos fazendo barulho de vidro quebrado, vindo lentamente em direção à minha cama. Ele está sorrindo, e quer me pokerizar. Obrigado por não ter me ouvido sobre o interruptor.”

Interruptor? Onde ele está então?

Ao lado da porta, centímetros a direita do pé do corpo. O menino avaliou e rapidamente percebeu que precisaria se levantar e chegar perto, talvez até mesmo pisar em cima da barriga do homem para acender a luz.

“Não, obrigado.”

Pela primeira vez na vida, Johnny preferiu ficar no escuro.

*

“O que eu faço?”

Ah, essa é uma boa pergunta, bonequinha. Eu acho é que você está fudido.

“Vá se foder você, Bruce.”

O pensamento lhe deu arrepios. Olhou em volta esperando que o valentão aparecesse a qualquer momento.

Nada aconteceu. O silencio continuava reinando, o corpo continuava na porta em seu formato de L, imitando uma líder de torcida que havia caído e quebrado o pescoço em uma de suas piruetas. Os homens não ficaram impressionados; Próxima.

Vá embora. Saia do quarto, ligue para o policia, os médicos. Talvez seu pai precise de ajuda. Ou sua mãe.

Claro. A mãe silenciosa.

Johnny estava com raiva, mas preferiu ignorar Bruce por enquanto.

“Não posso fazer isso, o corpo está bloqueando a porta. E se ele...”

Acordar? Ele está morto amigão. Morto como uma fruta. Tire-o dali e...

“Como você sabe que ele está morto? Não estou vendo sangue, está tudo escuro. Tudo preto. Ele pode estar se fingindo, já que estou com uma arma. Isso explicaria esse formato absurdo, esse...”

Esse L.

Não faz sentido. Por que ele estaria fazendo isso por todo esse tempo?

Jason tinha um bom argumento. Faria sentido aquele homem estar parado ali naquela posição desconfortável até agora, apenas para aterrorizar Johnny? Eu acho que não.

Frutinha, frutinha. A história é o seguinte: Ele está parado ali igual uma torta de ameixa na janela. Mas ele é bom, não? O que você acha que ele quer? Pensa comigo, seu cagão: Os tiros dele acabaram, os seus também. Mas ele não sabe disso. Ele ficou ali esse tempo te observando e está apenas esperando você se aproximar. Quando você fizer isso, ele vai agarrar seu pé, jogar você no chão e te enforcar com o seu cinto que está ali em cima da mesa. No fim das contas, você vai encontrar seus pais, mas acho que você vai sofrer mais. Heh.”

“Isso é possível? Faz sentido, não faz? Eu acho que...”

Não, não faz. Um homem que invade uma casa e faz o que fez não ia ter medo de uma criança, ele não ia ser tão paciente. E aliás, seus tiros realmente acabaram, amigão?

Uma luz acendeu na mente de Johnny. Acabaram? Ele olhou para a arma em suas mãos. Estava começando a ter câimbras nos nós dos dedos de tanto aperta-la. Quantos tiros esse revolver comporta? Quantos tiros ele realmente tinha dado? O menino olhava para o cano da arma e depois para o corpo repetidamente, como se estivesse vendo uma partida de tênis.

Pense...

Consegue se lembrar, frutinha?

Johnny apertou os olhos e tentou se lembrar. O centro de sua testa doeu enquanto fazia isso. Quantos tiros foram dados?

E lembrou.

*

Johnny sentiu o chão frio sob suas solas descalças enquanto corria pela casa, segurando a arma do pai. Não conseguia tirar da cabeça os olhos do homem que acabara de lhe dizer “Vá para o quarto. E pokerize quem tentar entrar lá.”. O menino corria, subindo pela escada, e parecia que ele estava viajando no tempo, só via vultos a sua direita e esquerda, só conseguia enxergar o que estava pela frente. O objetivo era um só: Seu quarto.

No andar de baixo, que ficava cada vez mais distante, ouviu um grito masculino, mas não soube distinguir se era de seu pai ou não. Em seguida, um estampido um pouco abafado. Dois segundos depois, um bem mais alto. Alguem soltou um rojão dentro de casa? Ah, você quer acreditar nisso, não é?

Quando finalmente visualizou a porta do seu quarto, ele começou a ouvir pesadas passadas na escada que tinha ficado para trás. Isso fez surgir em sua cabeça um enorme sentimento de claustrofobia, mesmo não estando em um lugar apertado. Uma sensação de perseguição, uma sensação de inimigo. Pessoas temem serem seguidas, não importa qual seja seu seguidor. Ele achava que isso talvez fosse por percebermos que estamos sendo vistos, mas não estamos vendo e, se pararmos para olhar para trás, já era. O mínimo atraso, o mínimo deslize e é isso. Acabou a corrida. Acabou a vida.

Johnny passou voando pela porta de madeira (que estava aberta), e poderia ter feito mil coisas ali: Poderia ter fechado e trancado, poderia ter se escondido atrás dela, poderia ter parado ali e atirado no homem assim que ele aparecesse no corredor. Mas não, ele passou voando pelo vão e a única coisa que fez, e por reflexo ainda, foi bater na porta com a mão esquerda. Foi de leve, mas foi o suficiente para fazer ela ficar encostada.

Entrou no quarto, passou pela estante que tinha um grande boneco do Capitão América, passou pelos pôsteres na parede de uma deusa hindu e um cartaz do Soundgarden, passou por livros da Agatha Christie e Stephen King, passou por um crucifixo pendurado na parede e, finalmente, mergulhou na cama.

Era curioso como todos esses elementos se misturavam em uma vertente mortal: O Capitão América era basicamente um zumbi vivo; Congelado em um tempo distinto e longínquo, ele havia voltado para salvar a humanidade dos nazistas. O semblante mascarado do boneco olhava para Johnny como se dissesse: “Força, meu garoto. Você não está sozinho.” Claro que é muito fácil dizer algo desse tipo quando você é um super soldado. O pôster da deusa hindu mostrava uma mulher negra com longos cabelos encaracolados, e o símbolo do infinito entre suas mãos, como se ela estivesse tentando prever em uma bola de cristal. Johnny já lera sobre ela, e sua religião dizia que, quando você morre, você fica revivendo o dia de sua morte para sempre. Ele também havia assistido um filme de terror com esse conceito. Embora interessante, Johnny não via muito sentido nisso tudo. Para que serviria? Para você sofrer para sempre? Tentar arrumar seus erros? O único consolo nisso tudo era que, se essa teoria estivesse certa, ninguém jamais morria. E era ai que a banda de rock Soundgarden entrava: Johnny era um grande fã deles (junto com seu pai), mas mais ainda, do vocalista Chris Cornell. Para o choque de todos, o homem havia se suicidado há alguns meses atrás, em um quarto de hotel. Johnny nunca havia visto seu pai chorar assistindo televisão, mas ele tinha feito isso enquanto alguns jornais noticiavam a tragédia, com uma grande foto do cantor sorrindo ao fundo. Johnny lembrava de ter se sentido muito deprimido e corrido para o quarto, trancado a porta e colocado “Live and Rise” para tocar no seu ipadi e, enquanto ouvia “Like the sun we will live to rise, like the sun we will live and die. And then, ignite again” (Como o sol nascemos para raiar, como o sol nascemos e morremos. E depois, acender novamente) lembrava-se de ter associado essa parte à deusa. O ultimo dia de Chris Cornell na terra havia sido um belo dia. Ele fez um show em uma cidade que amava, agradeceu os fãs, falou com a esposa por telefone, e depois decidiu que queria ir embora para sempre.

Embora não acreditasse muito na crença hindu, Johnny gostava de pensar que seria legal que Chris estivesse por ai realmente vivendo seu ultimo dia, fazendo o que melhor sabia fazer: Tocar e cantar rock and roll. Um ultimo e <eterno> show.

Os livros de Agatha Christie eram de sua mãe, e ele sabia que tipo de conteúdo encontraria ali. Sua mãe dizia que eram “mistérios sem solução”, que ela era a Rainha do Crime. Se assemelhavam muito com os do seu autor favorito, Stephen King. O homem escrevia bem, mas eram temas de terror que deixavam o menino assustado por dias. Talvez seu medo de terror viesse dali, quem sabe. Embora Johnny gostasse de ler, ele ficava incomodado como as pessoas não viam que tanto King como Agatha faziam sucesso explorando algo tão macabro: A morte. Os mistérios sempre tinham uma morte por trás, os contos de King então, nem se falam. Por que as pessoas tem que morrer para coisas interessantes acontecerem? Foi assim até mesmo com Jesus. Mesmo não sendo religioso, o menino tinha um palpite de que se o profeta não tivesse sido crucificado, não falariam dele até hoje.

Todos esses elementos que, separados pareciam inocentes hobbies, agora olhavam na direção do Johnny com uma palavra em seus lábios imaginários: Morte. Era a vez dele agora, era a vez dele virar um mistério. Uma estatística. Um conto de terror. Alguem iria escrever sobre ele algum dia? “Se sim, espero que cobrem caro, e não saiam distribuindo de graça por ai.”

Tudo isso passou pela cabeça de Johnny durante os quinze segundos nos quais ele ficou esperando o homem chegar na porta do seu quarto. E ele não sabia exatamente o porquê pensara nessas coisas. Talvez sua mente quisesse ter um ultimo pensamento agradável. Ou uma ultima reflexão. Talvez ele apenas estivesse tentando imaginar mil coisas ao mesmo tempo, porque esses seriam seus últimos momentos de vida. O que você pensaria por ultimo, se soubesse que iria morrer? Qual seria seu grand finale?

Johnny não teve tempo de pensar mais muito sobre isso, pois a porta do quarto abriu e um homem alto invadiu seu quarto de supetão. O menino apertou o gatilho.

Um. Dois.

Dois tiros diretos na região do abdômen do homem. O intruso cambaleou para trás e se apoiou na porta por um milésimo de segundo. Depois se atirou para frente, erguendo a arma.

E dessa vez foi ele que apertou o gatilho.

Um. Dois.

Johnny viu um buraco do tamanho de um ovo de galinha se formar na parede ao seu lado esquerdo, e outro tiro, embora não tivesse certeza, acho ter acertado em seu travesseiro, já que viu alguns flocos de algodão pela área ali.

O menino não perdeu tempo e revidou.

Apertou quatro vezes o gatilho. De olhos fechados, apenas sentiu e apertou.

Três. Quatro. Cinco. Seis.

Ouviu uma pancada na porta do quarto, como se algo pesado a atingisse. Depois ouviu um arrasto de pernas; O barulho de algo metálico caindo no chão. Um baque surdo e seco perto do chão.

E silêncio.

Johnny não queria olhar. Tateou em busca do cobertor, se cobriu e começou a chorar.

*

“Certo. Foram seis tiros.”

Certeza?

Certeza?

“Sim, caralho.”

“Isso significa que... Droga, acho que foram todos.”

Johnny se lembrava de ter visto que um revolver carregava seis tiros por vez. Ele não lembrava onde, talvez em filme de Velho Oeste, talvez em uma série de TV. “Onde estão as balas agora, detetive? Recarregue.”

- Que inferno. – o menino deu um pulo.

Ouvir o som da própria voz pela primeira vez em horas (horas?minutos?) foi assustador. Ele olhou fixamente para o corpo em sua porta, esperando que ele erguesse a cabeça e gritasse: “Ah, eu sabia! Sabia que você estava vivo ai embaixo do cobertor. Venha aqui, seu bostinha!”

Mas nada aconteceu.

Você está perdendo o foco, precisa resolver essa situação amigão.

“Você está certo.”

Johnny tentou organizar as ideias. Ele via duas possíveis soluções ali: Se levantar, arrastar o corpo que trancava sua passagem e ir embora; Ou ficar ali sentado esperando alguém chegar. Alguem... Tipo a policia? Algum vizinho poderia ter ouvido os tiros, com certeza. Iam dar falta do seu pai no trabalho, ou de sua mãe. Iam sentir sua falta sua na escola, não iam? Bruce iria, com certeza.

Ele poderia esperar. Mas o grande problema era: Ele não queria ficar ali, de jeito nenhum. A atmosfera no quarto estava densa, pesada. Seu corpo estava dolorido de tanto ficar na cama, o que mostrava que, talvez, ele já estivesse ali por horas. Ele poderia tentar dormir, tentar...

Bump. Um alto barulho percorreu o quarto. Uma pancada.

O coração de Johnny parou, e ele sentiu a região de sua panturrilha ficar úmida. Droga, ele havia se mijado.

Percorreu os olhos pelo quarto e viu que uma das pernas do homem havia resolvido cair, e agora estava esticada pelo chão. O curioso é que a outra insistia em ficar em pé, e agora ambas as pernas formavam o que Johnny imaginou como uma boca de jacaré.

“Meu deus, por que você não cai de uma vez? Fique como um corpo normal, como um... Não sei.”

O problema é que, embora a morte seja algo comum, ela não é nada normal. Não possui padrões. Você para de respirar e pronto. O resto é história. O mendigo atropelado vai para o mesmo lugar que o rico que morreu na cama do hospital. Sejamos francos meus amigos: Ninguém quer morrer atropelado. Mas você quer morrer em uma cama de hospital? Ser mais um que morreu ali? Trocam-se os lençóis, talvez o travesseiro. Alguns enfermeiros andam por ali, comentam algo, fazem a piada do “... estava demorado já..” e a vida continua. É sempre assim, trocam-se os lençóis e que venha o próximo.

Johnny queria dar o fora dali. Chega de quarto escuro, chega de pensar sobre morte. Chega de ver aquele corpo.

Tinha mais alguém no quarto com ele.

*

Tinha um homem parado no pé da cama de Johnny. Imóvel, observando. O menino não podia ver muita coisa, mas reparou que ele estava com as mãos para trás e olhava atentamente o corpo do homem estatelado no chão.

“Mas que porra?” – do susto vem a raiva. E Johnny apontou a arma para o estranho e apertou o gatilho três vezes.

Foram três clicks. E nada saiu da arma.

Olha só, a bonequinha tinha razão.

Em um acesso de fúria, ele arremessou a arma em direção ao ser estranho que agora tinha conseguido sua atenção. E, como em um mundo imaginário onde leis da física não existiam, a arma voou pela extensão da cama e atravessou o corpo do estranho, como se ele não estivesse ali.

O revolver bateu no armário atrás do ser, e caiu no chão. Uma arma vazia, inútil como um carro sem pneus. O homem estranho encarou Johnny, e o menino percebeu que ele não tinha expressão nenhuma em seu rosto. Ele apenas arregalava os olhos e olhava para o menino como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez.

- Quem é você? O que você quer? Saia! SAIAAAAA – Johnny começou a gritar desesperado.

O homem estranho apenas encarava.

O menino começou a chorar descontroladamente e voltou a abaixar a cabeça.

- Por favor... Eu quero sair daqui, eu quero sair daqui...

Quando voltou a olhar para o homem, viu algo que desafiou seus nervos. O estranho começou a tremer como se fosse ter uma convulsão e sua boca abriu de uma maneira torta, como se um idoso estivesse tendo alguma parada cardíaca. Dos seus lábios, um gemido alto começou a sair, e seus longos braços e pernas começaram a se entortar, com em uma dança bizarra. Iam para a direita, para a esquerda, formavam ângulos impossíveis. Tudo no seu corpo parecia mexer e se entortar, com exceção dos olhos: Sempre arregalados e fixos no menino.

Johnny tentou levantar da cama para sair correndo, mas seu corpo não se mexia. Ele apenas podia olhar para aquele homem que, aos poucos estava virando uma espécie de número oito humano. Incrédulo, ele viu a pele do homem se rasgar em vários locais do corpo, e dos buracos, saíram pernas negras e peludas, parecidas como as de uma aranha. Eram dezenas.

Sua boca, antes banguela e torta, agora se firmava e cresciam dentes longos e amarelos. A coisa começou a babar e um dos seus olhos saltou para fora da órbita com um “Pop” e caiu no chão, quicando e rolando para perto do corpo do (primeiro) invasor. Do buraco negro que ficou na região ocular, surgiram centenas de perninhas negras e pernudas que tentavam alcançar tudo que estivesse em volta. Eventualmente, as pernas alcançavam a pele em volta dos olhos do homem e puxavam pedaços para dentro da órbita oca.

A coisa deu um grito de dor que mais parecia um uivo, ergueu as dezenas de patas e os dois braços humanos que ainda possuía. Olhou para Johnny pela ultima vez e avançou.

*

Johnny bateu a cabeça na madeira da cabeceira da cama e olhou assustado ao redor do quarto. Estava vazio; Não tinha criatura, não tinha aranha gigante, não tinha ninguém. Claro, exceto o corpo que bloqueava a saída.

“Eu acho que eu acabei dormindo. Eu... Mas foi tão real. Foi tão real. Eu...”

A perna do invasor que persistia em ficar em pé começou lentamente a deslizar pela porta. Enquanto ela deslizava, ia deixando um rastro de sangue para trás. A boca do jacaré está se fechando. Deu uma travada. Após dois segundos, voltou a deslizar e se encontrou com a outra perna, dois irmãos unidos pela eternidade.

“Meu deus, eu preciso sair daqui.”

A bonequinha resolveu tomar uma ação. Olha como ela é corajosa.

Vai Johnny, saia desse mausoléu. Você está perdendo sangue, vai embora enquanto ainda consegue.

“Como assim Jason, eu não estou...” – olhou para o lençol e viu uma imensa mancha de sangue formada. “Não pode ser, não sinto dor.”

Você não foi atingido em cheio, mas pegou de raspão. Sangue está saindo. Um arranhão pode te matar, se não estancar o sangue amigão.

Está certo. Johnny havia ficado ali, delirando, criando mil planos e conversando com duas vozes imaginárias tempo demais. Tempo o suficiente para perder sangue que sequer havia percebido que havia perdido. Era hora de agir.

*

Esticou a perna direita e colocou seu pé no chão. A sensação de sentir algo diferente de um colchão foi libertadora. “Agora se levante e corra”, pensou. É fácil falar, não? A perna estava dormente, e a sensação de mijo gelado que percorria toda a panturrilha do menino era horrível. Só de ter esticado a perna, ele sentiu a urina viajando pela sua perna e pingando pela canela.

Johnny sentou na cama e com força, conseguiu colocar as duas pernas no chão. Estavam dormentes, porem sentia que ia conseguir levantar sem problemas; Olhando por cima do ombro, viu a mancha de sangue no colchão. Ela tinha um formato de coração. Seria poético se junto dela não houvesse um pouco de liquido amarelo fresco. Ele imaginou que em breve aquilo ia começar a feder e, endurecer. Ele já havia experimentado o gosto de sangue mais de uma vez, uma delas depois de cutucar o nariz a ponto de romper “alguma coisa ali dentro”, como sua mãe dizia.

O sangue não tinha gosto ruim, era levemente doce. Ele podia imaginar o por que dos vampiros gostarem tanto. A parte amarga poderia ser coberta por açúcar, talvez. Nutrientes é o que não ia faltar. Vida. Beber sangue, beber vida. Era até poético. Mas urina? Isso ninguém queria beber. Talvez pela cor, talvez pelo lugar que ela saia. Talvez porque Hollywood não tivesse feito um filme sobre isso. Ele não sabia. Mas olhar aquela mancha vermelha com amarelo que se formava no lençol branco da sua cama lhe deu fome. E sede. Deus! Fazia quantas horas (dias? horas? minutos?) que ele estava ali naquele quarto?

Ficou em pé. Sentiu uma leve tontura. O quarto por um momento se esbranquiçou e ele achou que veria o homem-coisa-oito-aranha novamente. Mas nada disso aconteceu. Era apenas ele em pé ali e o corpo na porta do quarto.

“Um problema já foi.”

Vai lá amigão. Agora está perto.

“Sim. Só preciso...”

Johnny precisava fazer o obvio. Remover o corpo do homem da frente da porta do quarto. Como sempre, tudo na teoria é lindo, rápido e perfeito. Porém, na prática... Ele nunca havia visto alguém morto na sua frente. Jamais. O mais próximo da morte que Johnny havia chegado era de ter aberto um gato morto na aula de Biologia de sua escola. Era um curso novo para crianças, algo como “Taxonomia”, ou “Tachidermia”, ele não lembrava. Lembrava apenas que era a arte de pegar animais mortos e fazê-los parecer vivos novamente.

Mas o que ele lembrava era de ter visto o homem de jaleco branco abrir as patas do gato, forçando-os um pouco até, já que ele estava duro. Depois o homem disse que ele havia morrido atropelado, e era esse o motivo de estar com a língua pra fora. O gato era ruivo, com algumas mexas negras espalhadas pelo corpo, e era gordo, muito gordo. É a vida, um dia você está lá comendo a melhor ração do mundo e recebendo carinho da sua dona. No outro você decide sair para dar um passeio, não vê o carro prata que vem em sua direção e termina sendo aberto por crianças em uma aula. Ontem você era o Bóris, hoje você é o “gato que foi atropelado”. Ontem você era amado, hoje estão tentando descobrir o quão fundo conseguem furar sua barriga. Ah sim, os olhos são jogados fora? Posso estourá-los, professor? Risadas. Selfies. Sorria Bóris, você está no Facebook agora.

Embora lembrasse de poucas coisas da aula, Johnny se lembrava do cheiro do gato. Ah sim. Antes de ser aberto, ele já tinha um cheiro diferente de tudo que ele já havia sentido. Lembrava o cheiro de sangue, mas tinha um toque de salgado a mais. Agora quando o homem passou o bisturi na barriga do animal e começou a separar pele de carne, um cheiro doce invadiu a sala.

Sim, um cheiro doce. Um cheiro de perfume vencido. Aquele cheiro era inconfundível: Cheiro de morte. Aprendemos a vida inteira que doce é um adjetivo tão bonito e romântico, e olhem lá crianças, o gato morto tem cheiro doce.

E era exatamente esse aroma que Johnny estava sentindo agora. Um odor adocicado, com uma leve mistura do amargo do sangue. Se colocar açúcar, dizem que melhora. Ah, mas não o cheiro. O cheiro é esse, e é assim que o quarto vai cheirar.

Johnny engoliu seco. E logo depois tapou a boca com a mão direita, porque acho que ia vomitar. O lado bom disso é que, se o quarto tinha cheiro de morte e ele estava vivo, o morto só poderia ser o invasor.

“Agora eu só preciso puxar a perna dele, arrastar um pouco o corpo e... Tchau.”

É mesmo? E o que tem lá fora, bonequinha? Será que ele veio sozinho? Me diga... O que tem lá fora bonequinha?

“Sua mãe está lá fora, Bruce. Eu vou sair e ela vai estar no corredor de pernas abertas, esperando para levar uma trepada daquelas.”

Toma essa!

A resposta de Johnny surpreendeu a ele mesmo. Colocou um sorriso em seu rosto. No meio dessa experiência, Bruce havia ficado obsoleto. Haviam invadido sua casa na hora da janta, atirado em seus pais. Ele correu para o quarto e trocou tiros com o assassino, e o matou. Foi atingido. E agora estava ali, dividindo o cômodo com um corpo, mijo, sangue, dois revolveres e eventualmente, um homem que tinha dezenas de perninhas de aranha em volta do olho. Tudo isso realmente tinha feito um valentão na escola ficar em segundo plano. A morte deixa tudo obsoleto. Você atrasou a conta do cartão, mas não foi atropelado. Seu namorado terminou com você, mas o elevador não caiu com você dentro, te estripando nas embreagens. Ah sim, não passou no vestibular? Não se esqueça que existem pessoas morrendo porque um drogado precisa de dinheiro pra pagar sua dívida.

Enquanto divagava por seus pensamentos, Johnny atravessou o quarto decidido. Seus passos ecoavam pelo assoalho como gotas de chuva na janela de vidro do carro.

Parou e olhou para baixo. Estava de frente com o corpo. O corpo que havia feito ele se mijar e ficar parado igual um bebê na cama. O homem continuava com a cabeça escondida entre os braços. Johnny queria puxar seus cabelos e ver o rosto do assassino dos seus pais, mas decidiu acelerar as coisas depois de sentir uma forte pontada na região de sua barriga que insistia em continuar sangrando.

Se abaixou sentindo uma leve dor na coluna e agarrou a perna direita do homem. O mesmo estava de calça jeans, mas era possível sentir que a perna estava gelada e dura. Foi puxando a perna para trás, tentando mexer o mínimo possível na parte de cima do corpo. Lembrou do professor dizendo “Agora que abrimos a perna, podemos pegar o bisturi e fazer um corte na barriga”. Certo, mas um gato é diferente de um homem, professor. Johnny estava puxando pela perna, mas o corpo mal se mexia.

Decidiu largar e começar de novo em outro lugar. Foi para os braços, “Não vai ter jeito” - pensou. Pegou na mão direita do homem e a ergueu, como se fosse dar um aperto de mão. Olá, seja bem-vindo. O prazer é meu!

Segurando firmemente na mesma mão que havia matado seu pai, sua mãe e tentado lhe matar, Johnny colocou força no antebraço e puxou. Puxou o mais forte que conseguiu. O corpo se mexeu alguns centímetros para frente.

Foi pouco, mas foi o suficiente para livrar a porta do quarto. Com nojo, ele largou a fria e pegajosa mão do homem.

Ficou parado ali, por mais alguns segundos. Colocou a mão no machucado, estava se sentindo zonzo. Era melhor ir indo. Olhou novamente para a pessoa caída no chão aos seus pés, pigarreou e cuspiu. A saliva acertou em cheio a parte de cima da cabeça do invasor, percorreu alguns centímetros pelo cabelo e escorreu pela testa do homem. O rosto, ainda invisível, pouco importava. A vingança estava feita.

Percorreu o quarto determinado a sair e nunca mais olhar para trás. Não reparou que, perto da porta, jazia uma arma caída e um olho arregalado.

*

Quando abriu a porta, ficou surpreso. Embora a luz do corredor estivesse acesa, a janela do segundo andar mostrava uma noite escura. Levando em conta que o assassino tinha entrado na casa durante a hora da janta, das duas uma: Ou Johnny havia ficado poucas horas no quarto e era de madrugada, ou ele havia passado um dia inteiro dentro do quarto e já era noite do outro dia.

“Preciso descer. O telefone fica lá embaixo.”

Olhou desconfiado para o corredor escancarado a sua frente. O corredor que tantas vezes passara correndo, brincando com sua mãe. Agora ele estava ali, todo iluminado, uma fronteira final. Ele costumava dizer que o corredor era curto demais para se divertir, mas agora ele achava ele longo o suficiente para se perder.

Sentiu mais uma pontada no local do sangramento. Apoiou um de seus braços no vão da porta. Respirou fundo, precisava tirar energias de onde não tinha. Olhou para o corredor de luz amarela de novo. Como algo tão claro e iluminado o incomodava tanto? Talvez fosse o silencio. Talvez fosse a constante sensação de sempre ter tido alguém por perto. Observando.

Sua visão, ficou turva. “NÃO. Não posso desmaiar agora. Eu vou atravessar essa droga de corredor, descer as escadas, e ligar para o socorro.”

E vai ver seus pais mortos também. Mamãe e papai, bonequinha.

Força amigão, sempre acreditei em você.

- Eu sei. – Johnny falou em voz alta. Tomou impulso e saiu balançando pelo corredor.

A dor estava ficando pior, parecia que alguém estava dando pequenos socos no local do sangramento. Ele cerrou os lábios para não gritar, e acabou mordendo a língua. Um filete de sangue escorreu pela boca e formou um cavanhaque vermelho em seu queixo.

Metade do corredor já tinha ido. A voz de Jason voltou:

Você vai sair dessa. E vai vim me ver. Conversar comigo. Me contar sobre tudo. Eu não poderei te responder, mas estarei ouvindo tudo.

“Vou te contar como sobrevivi.” – Johnny sorriu. Agarrou na parede e forçou suas pernas a continuarem andando, mesmo seu corpo pedindo para parar e descansar.

Tem algo errado, bonequinha. Seu corpo está ficando frio.

“Vá se ferrar, Bruce. Quando eu sair daqui, eu te encontrarei e vou dar um jeito em você. Por tudo o que você me fez, pelo que fez com Jason. Eu... Eu...”

Ele olhou para suas próprias mãos. Estavam brancas como neve. Encostou na parede e olhou para trás, para a porta aberta que revelava o quarto escuro. Uma ponta do pé do corpo ainda estava visível.

“Eu... Eu vou te pokerizar, Bruce.”

Johnny virou a cabeça e, no movimento, achou ter visto uma sombra se mexer em uma das janelas. Pouco importava, se algo ali quisesse fazer mal para ele, já teria feito. Estava a poucos passos da escada, a escada em formato de L. Parecia familiar.

Sua visão ficou turva novamente, um dos olhos se fechou e não conseguia mais abrir. Ele caiu de joelhos e colocou a mão em volta do buraco do tiro, no lado esquerdo do corpo. Seus dedos se encharcaram de sangue quando ele apertou o ferimento, e o barulho foi parecido como o de pisar em um chinelo molhado. Fez uma careta.

Olhou para a escada. Estava a dois passos.

Vamos amigão. Não pare agora. Eu te acompanhei desde agora, desça a escada e boa sorte.

Johnny ficou de quatro e deu um impulso final. Uma última fagulha da fogueira. Se agarrou na base do corrimão da escada e olhou para baixo.

“Agora é só descer.”

Colocou o pé direito no primeiro degrau e sentiu o mundo girar. Sentiu suas pernas perderem as forças, sentiu elas girarem e caiu.

A primeira pancada foi bem na testa, ela inchou e formou um galo enorme na hora. A segunda, possivelmente lá pelo terceiro degrau, foi no ombro. Sentiu ele sendo invertido em um ângulo impossível e sendo deslocado. Johnny deu um loop sobre o próprio corpo e sentiu as pernas atingirem e quebrarem uma parte de madeira do corrimão; Bateu as costas na esquina da escada, e caindo pela última vez, sentiu seu pescoço se dividindo em dois.

Aterrissou no chão, de barriga para baixo. Foi um baque surto, um estampido. Uma rolha que salta da garrafa. Feliz ano novo!

Johnny abriu o olho e sua visão estava vermelha, não conseguia mexer as pernas. Olhava em direção a cozinha, onde tudo havia começado. Ainda havia um prato de macarrão em cima da mesa.

Tentou mexer o braço e o máximo que conseguiu foram os dedos. Fechou os olhos e se lembrou de Jason. Se ele tivesse ficado no quarto isso teria acontecido? Não importava, foi bom ter uma última aventura com o amigo.

Se lembrou de Bruce. O odiava, mas se ele não tivesse aparecido, ele teria tido raiva o suficiente para se mover e querer sair dali? Talvez não. Parece que tudo acontece por um motivo. É o que parece.

Se lembrou do Capitão América. Da deusa hindu. De Chris Cornell. Apagar e brilhar. Tudo de novo.

Abriu os olhos e respirou pela última vez.

Morreu olhando para a janela escura da cozinha, vendo uma noite sem lua e sem estrelas.

*

Tiros. Um clarão. Fumaça.

E era isso.

Tudo o que sobrou foi Johnny e um corpo na porta do seu quarto.

**

Bruno Basso
Enviado por Bruno Basso em 06/10/2017
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