Quando cai a noite (Parte II)

II

O que é real? Aquilo que podemos experimentar com os nossos cinco sentidos? O que vi e ouvi têm as caracteristicas para ser classificados como real, mas, perante a natureza dúbia da coisa, acho que real deveria ter uma nova definição.

Os três policiais (ainda reluto muito em chamá-los assim) deram as costas para os corpos inanimados que jaziam no chão e dirigiram-se em direção ao carro. No caminho, Ferreira, com a expressão de quem acaba de comer um imenso cachorro-quente, vira-se para mim e me diz:

- Viu, peixe? Vagabundo desobediente a gente trata assim. Vamos para a viatura e vamos chamar reforços, IML, perícia, e o diabo.

Antes que pudéssemos chegar ao carro, que deveria estar a cerca de 50 metros do local da chacina, eles pararam – os três ao mesmo tempo – e lentamente voltaram-se para trás. Até então eu não tinha entendido o motivo, mas foi então que percebi a luz que começava a surgir de dentro do beco. Um luz vermelha, intensa, quase hipnotizante começava a aumentar gradualmente, iluminando o outrora escuro campo. Bem ao longe, uma série de grunhidos – acho que esta definição é o que chega mais perto do que ouvi – podiam ser ouvidos, proferidos de dentro do beco.

No momento que a luz que saia do beco atingiu o seu ápice, tive que cobrir os olhos com as mãos para não correr o risco de ficar cego, tamanho era a sua intensidade. Abri os olhos novamente quando percebi que a luz começou a ficar mais fraca, e os grunhidos que saíam de dentro do beco tornaram-se mais altos. Quando olhei, vi que três homens saíam do meio da luz. Pude deduzir que eram bandidos pelos fuzis AK-47 que carregavam, um deles mirando para os policiais enquanto caminhava na direção deles.

- E então, “autoridade”, tá pensando que vai matar meus soldados e ficar por isso mesmo? – Gritou um dos homens, armando o fuzil, mas, estranhamente, ao invés de disparar, atirou-o no chão.

Os policiais, mais estranhamente ainda, também atiraram as armas no chão e correram em direção aos homens. No meio da corrida, os três pareceram aumentar de tamanho, atingindo cerca de três metros de altura. As roupas simplesmente sumiram e seus braços agora eram longos, quase encostando no chão. A pele, antes clara, agora assumia um tom cinza escuro enquanto as cabeças pareciam desproporcionalmente menores em relação ao corpo. O que diabos estava acontecendo eu não faço a menor idéia, mas, assim como os outrora policiais, o mesmo ocorreu com os bandidos, que também corriam na direção dos policiais.

Um dos policiais – agora eu não conseguia mais distinguir quem era quem -, antes de chegar ao local do confronto, virou-se para mim (que estava a cerca de 10 metros do local) e fez um brusco movimento com as mãos, como se estivesse arremessando algo. Fui arremessado violentamente contra a viatura e caí no chão, de onde não conseguia mais me mover. Estava paralisado, como se uma força invisível segurasse cada um de meus membros.

A cena queu fui obrigado a presenciar era algo grotesco. Aquelas criaturas espancavam-se, e eventualmente clarões das mais variadas tonalidade de cor brilhavam por alguns segundos no ar. Socos, mordidas, chutes, arremessos; tudo acontecia em frações de segundos. Poucos minutos depois, apenas uma das criaturas cambaleava, lutando para permanecer em pé. Uma espécia de líquido violeta cobria quase toda a área em que a luta ocorrera – sangue, provavelmente.

O ser remanescente deu as costas aos corpos caídos quando estes começaram a desintegrar-se, emanando um cheiro pútrido que eu nunca havia experimentado antes e que fez-me vomitar várias vezes seguidas. Quando ele estava na metade do caminho até a viatura, pude ver Ferreira, muito machucado e cambeleando excessivamente, vindo em minha direção. Meu corpo já não estava mais preso e pude ir em sua direção, tentando escorá-lo para não cair.

- O que você viu hoje, peixe, irá derreter seu cérebro como gelatina um dia. A verdadeira guerra irá estourar um dia, e, não importa o vencedor, vocês humanos serão exterminados. É apenas uma questão de tempo. – Proferiu Ferreira antes de cair morto e desintegrar-se como os outros. Aquele mesmo cheiro me fez vomitar mais algumas vezes antes de pegar a viatura e retornar para a delegacia.

Não contei o ocorrido para ninguém na delegacia, pois certamente não seria acreditado. Também tive que alterar a história, dizendo que fiquei na viatura enquanto os outros subiram o morro e nunca mais desceram. Até hoje continuo na polícia tentando encontrar as respostas para as palavras de Ferreira. Nunca mais tive contato com aquelas criaturas, embora eventualmente eu passe no local aonde os eventos daquela noite ocorreram e posso ver, bem ao longe dentro do beco, pequenos pontos vermelhos que se assemelham a olhos, e tenho certeza que de longe eles também me observam.