BEM ANTES DO NATAL - CLTS 01

Espreitando por entre os pinheiros cobertos de neve, Claus sentia seus ossos gelarem, o grosso casaco lhe proporcionava algum calor, mas o ódio petrificou seu coração. Era quase meia noite, ele quis chegar mais cedo, se preparar apesar de conhecer bastante o local e ter tudo muito bem desenhado em sua mente. Não seria fácil, mas enfim conseguiria sua prometida vingança. De vez em quando acariciava o gume do machado, o zelo com a ferramenta tinha seu propósito, pois ela não o deixara na mão e agora mostraria toda a habilidade adquirida ao longo dos anos.

Dentro da cabana, a família inocente terminava os preparativos para dormir. A mãe amamentava pela segunda vez o bebê que cochilava depois do choro manhoso. Numa cama estreita, Maria tinha a seus pés o irmão um ano mais novo, dormiam juntos aproveitando o calor um do outro. Conferindo se os dois estavam bem agasalhados, o pai acariciou seu rosto despedindo-se com um beijo de boa noite.

A pequena abriu os olhos, não desejava dormir. O dia seguinte era seu décimo aniversário, se tornaria uma mocinha aos olhos da mãe. Estava ansiosa pelos primeiros raios de sol.

- Papai, o que vou ganhar de presente?

- Vou lhe dar uma linda boneca de gelo.

- Isso não. Elas derretem no verão e fico sem nada.

- Se não dormir, o amanhã não chega e você ficará sem nada.

- Papai, quero um trenó puxado por um belo cavalo. Ai eu posso brincar com ele o ano todo.

A menina nunca viu um cavalo de verdade, porém acreditava ser o animal mais lindo já criado.

- Filha, aqui é muito frio. Cavalos não aguentariam tanta neve.

Com outro beijo, a conversa deu-se por encerrada. Maria, ainda não estava satisfeita, ela não queria uma coisa que desaparecesse, queria seu trenó.

Ao deixar o quarto das crianças, o pai apagou o candeeiro. Na sala, iluminada pela rústica lareira que mantinha o ambiente livre do cruel inverno, ele retirou do bolso um pequeno par de meias tricotadas pela esposa, era algo bem singelo, porém tudo que o casal poderia oferecer naquele instante para a doce menina. Como nos outros anos, pendurou o mimo próximo da chaminé, era aquele o local onde certamente, afoita, a filha iria procurar. Aquela madrugada de 25 de dezembro prometia ser bem fria, ele esfregou as mãos, jogou mais alguns pedaços de madeira sobre as chamas, queria ter a certeza que seriam suficientes até o dia seguinte, observou quando dezenas de pequenas fagulhas subiram em espiral tentando alcançar a saída da chaminé.

De longe, a figura sinistra observava imóvel, quando a última luz se apagou deixando apenas a sala às claras, ele redobrou sua atenção, o fim estava próximo.

Os flocos de neve caiam bailando suavemente ao sabor da brisa. Além do cume das montanhas brilhantes como diamantes, a aurora boreal alternava suas cores. Era um magnífico espetáculo, parecia o estouro de uma manada de renas que circundavam o extremo norte do planeta deixando uma trilha encantada, mas toda beleza era em vão, alheio a qualquer coisa, o homem só pensava no que devia ser feito. Sabia que no momento certo enfrentaria um terreno de piso traiçoeiro, invadiria a casa dando um fim naquelas horríveis criaturas que por trinta anos lhe assombravam.

O vento frio trouxe o podre cheiro da morte, ruídos de pequenos sinos anunciavam a chegada de algo terrível. Ele estava pronto, a muito abandonou seus temores, viveu uma vida inteira alimentando sua raiva. Não passaria mais uma noite tendo seu coração sufocado, se perdesse essa oportunidade tudo teria sido em vão, falhar significava a morte e morrendo decepcionaria aqueles a quem tanto amava. Este era o momento, ajeitou seu gorro, tirou o pouco de gelo que grudou em sua longa barba grisalha, com uma das mãos em torno do ouvido percebia as gargalhadas roucas, uma espécie de lamúria pavorosa que mais ódio lhe despertava.

Do lado de fora, estava em desvantagem, dentro da casa facilmente daria cabo das megeras, mas teria que ser rápido, sorrateiro, se notassem sua presença estaria tudo perdido.

Elas não se incomodavam com o alarde, a noite fria era sua aliada, neste momento todos deveriam estar na cama, o tilintar dos sinetes em seus colares entremeados de contas poderiam soar como uma bela música, mas nada de bom viria daquelas crias da floresta que flutuavam por entre as árvores de modo soturno.

Pararam diante da porta onde uma guirlanda de ramos de carvalho e videiro com uma pequena pinha no centro guardava o batente no intuito de proteger a moradia de possíveis maus-agouros. Elas zombaram do inútil artifício.

Usando de seus dons, a mais jovem, extremamente magra com os dedos semelhantes a gravetos e pele rugosa feito casca de pinheiro, vergou sobre a casa uma árvore próxima, subiu pelo tronco com agilidade de um esquilo. Do alforje em sua cintura, retirou algumas folhas deixando-as cair pela chaminé direto sobre o fogo que ardia lá embaixo. Com um trapo sujo, cobriu a saída da fumaça. Em pouco tempo a cabana foi tomada por uma suave nevoa anestésica, se ainda houvesse alguém acordado sucumbiria àquele encanto.

Esperaram um pouco até certificarem-se do efeito daquele ardil, logo a porta foi lentamente se abrindo. As três entraram juntas.

A confiança cegava as malditas, os escárnios deixavam surdos seus ouvidos, afinal quem ousaria enfrentá-las, caminhavam como as senhoras da noite, para elas tudo seria possível.

A ira de Claus fervia-lhe o sangue, uma lágrima rolou por sua face ao pensar em seu filho. Lembrava das histórias da sua infância, quando seus avós alertavam quanto as muitas coisas estranhas que aconteciam no seio daquela floresta. Muitos lenhadores ao saírem para trabalhar eram encontrados tempos depois esquartejados, caçadores tinham suas peles esfoladas deixadas expostas ao tempo, viajantes se perdiam em trilhas desconhecidas e nunca eram mais vistos e tudo era obra de três sinistras criaturas que poucos sobreviviam após confrontá-las, relatos de seus mal feitos eram conhecidos bem antes dos tempos cristãos, nas aldeias dizia que sobreviviam graças ao sacrifício de inocentes. Por isso, quando o inverno se tornava mais rigoroso costumavam proteger suas casas com objetos místicos capaz de afugentar o mal, claro que nem sempre funcionava e as megeras precisavam perpetuar sua existência, na noite mais gelada do ano, na madrugada de 25 de dezembro saiam buscando um jovem, tinha que ser uma criança especial, precisava estar completando seu décimo aniversario e como elas, também ser parte de três, raptavam a mais velha sacrificando-a pra lhe roubar os dias de vida, sempre a mais decadente era regenerada fazendo um círculo perpetuo que se alternava a cada 30 anos. Bebiam do sangue juvenil, revigorando sua carne murcha.

Claus pensava em seu filho, no dia que passou entalhando a madeira, fez com toda sua habilidade de artesão um simples brinquedo que no dia seguinte seria a alegria do aniversariante. Infelizmente quando acordaram de um sono profundo, embarcaram num longo pesadelo, jamais tiveram notícias do menino. Desde então o artesão mergulhou na escuridão, por algum tempo perambulou pelas sombras, esperava numa curva de uma trilha qualquer reencontrar seu menino, ouviu histórias, presenciou coisas terríveis e por fim devotou sua vida à procura daquelas malditas, em toda a região, somente naquela casa se encontrava as condições para o encontro com as bruxas, nesta noite sua vingança teria êxito.

O velho partiu furioso contra o interior da cabana, elas estavam desarmadas, possuíam apenas seus encantos e poções, pegas de surpresa eram quase indefesas.

A luta foi intensa, a bestialidade do leão ferido contra a tenacidade das feiticeiras.

Os rústicos móveis eram soprados pelo vento satânico conjurado pelas megeras, Claus defendia-se com o machado, as chamas da lareira alvoroçavam tentando devorar o oponente. Pelas janelas, ramos encantados invadiam a residência.

Hábil com sua ferramenta, uma após outra as bruxas caíram estripadas, desmembradas e decapitadas. Banhado pelo sangue das malditas, seu casaco antes opaco, agora ostentava um vermelho vivido. Os corpos sem vida murchavam como fruta podres, o peso dos anos cobravam sua dívida, ali mesmo naquela lareira deu fim aos restos mutilados, cada parte devorada pelas chamas parecia aumentar o brilho da aurora que satisfeita redobrava a intensidade de sua dança.

As três cabeças, levaria consigo. Sob seus olhos, garantiria que jamais iriam se regenerar. Usou o próprio saco onde elas pretendiam prender a menina para guardar seus troféus.Tentou sair em silêncio, jogou seu fardo às costas, caminhou com certa dificuldade usando seu machado como apoio, iria rumo norte, em direção as luzes oscilantes do céu.

Com sua vitória o sortilégio foi quebrado, o sono tornou-se leve, a menina aos poucos despertava preguiçosa, finalmente se levantou esfregando seus olhos.

Vendo a sala toda iluminada correu para junto ao fogo. Bem próximo da lareira encontrava-se um galho de pinheiro enfeitado com os pequenos guizos e contas que antes adornavam as três invasoras e bem a seu pé, um pequeno trenó puxado por uma rena de madeira. Era o presente que Claus daria a seu filho. Pela janela, a menina ainda pode ver o velho partir com seu fardo de infortúnios.

Temas: Inverno, festas de fim de ano, florestas assombradas e bruxas.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 20/11/2017
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