SEM RETORNO
 
I
 
Quando saímos da rodovia principal a mais de quarenta quilômetros, acreditei por um momento que poderíamos chegar mais rápido em casa — Infelizmente estava errado.
Tudo aconteceu muito rápido. Havíamos passado o final de semana, 23 de novembro, data de nosso aniversario de namoro, num sitio em Socorro. Tentávamos reparar nosso relacionamento. Aline planejara aquela viajem a mais de duas semanas, queria descansar dos problemas diários, principalmente do trabalho estressante. Ela era consultora de vendas, trabalhava na Avenida Paulista e vivia reclamando da pressão que sofria no trabalho, esse era um dos motivos pelos quais sempre chegou em casa mal humorada.
O sitio em Socorro era de sua família, da parte de seu pai. Infelizmente o tempo não colaborava. Desde quarta-feira, a previsão era de tempo nublado e previsão de chuva. Ainda assim quis viajar. Sentir o cheiro puro do campo a deixava relaxada. Nestes dois dias andamos a cavalo, cuidamos dos animais, fizemos algumas trilhas e tomamos banho em uma cachoeira no alto de uma montanha. Não via a hora de partirmos. Sou um homem da cidade, não um homem do campo, e nenhum lugar que não tenha pelo menos um sinal wifi não me interessa. Só estava ali por Aline.
Pegamos a estrada por volta das 20h30 horas. Nunca havia visto uma ventania tão forte como a que passou por aquela região. Enquanto saímos do sitio, ouvi uma notícia pelo rádio, disseram que a tempestade chegaria pela madrugada. Avisei Aline, contudo ela deu de ombros, como se não se importasse — o carro aguenta. — Foi o que ela disse. Não me contrapus, queria ir embora tão quanto ela.
Cerca de uma hora depois de termos partido, o céu foi encoberto por um véu negro que estendia-se por todo horizonte. Clarões branco-púrpura explanavam, cintilando no ar, mudos, incandescendo, caindo sobre os campos a oeste. A tempestade chegara com violência. Tentava dirigir com cuidado, mas era difícil, descíamos uma pista fechada e o asfalta ainda estava molhado e escorregadio. Quando meu relógio marcou 22h00, a tempestade havia entrado em seu apogeu, o carro parecia até decolar com a força do vento. Mas não aconteceu. Vi uma arvore voando, a força do vento havia lhe arrancado pela raiz. Tenho certeza que Aline ficara com medo, sentia sua respiração elevar-se gradativamente.
— Não seria melhor, pararmos o carro e esperarmos a tempestade passar.
— Claro que não. — Respondeu Marcos do banco do carona. — A previsão do tempo disse que esta tempestade vai durar a noite inteira. Se pararmos agora não vamos conseguir chegar hoje.
Durante o tempo que estávamos naquela estrada sentia minha bexiga inchar, era uma sensação de extremo desconforto. A cada quilometro rodado imaginava encontrar um posto de gasolina ou algum estabelecimento que tivesse ao menos um banheiro, contudo, antes mesmo disto acontecer, abri a porta daquele Sedan Chevrolet, corri até o canteiro central, reclinei-me sobre a calçada a frente de uma arvore e finalmente urinei.
— O que você está fazendo? Não vê que estamos no meio de uma tempestade. Podia ter esperado chegarmos. — Gritou Aline da janela. Vendo-me ao redor da tempestade.
Sentia as gotas d’água quase que esmurrando meu corpo, pareciam pequenas pedras pontiagudas, vinham em alta velocidade, mescladas a fortes rajadas de vento.
Voltei ao carro momentos depois, ensopado. Pensara que aquela empreitada involuntária poderia ter sido de grande valia, ainda que tivesse ficado encharcado. Aliviar a bexiga havia me deixado talvez até um pouco mais confortável dentro daquele carro, isso porque desde que saímos de Socorro, Aline não parava de discutir. Tudo era motivo para discussão.
— Chegarmos onde. — Respondi quando entrei no carro. — Estamos a quilômetros de qualquer lugar. Para onde olhar só tem mata. Olhe para trás e você verá mata. Olhe para frente e você verá mata, olhe para os lados e incrivelmente verá... mais mata...
— Vai começar...
— Eu não estou começando nada, você que não cala a boca.
Eu que não calo a boca Isaac... eu... Quem não cala a boca aqui é você. — Respondeu, num tom mais alto e repreensivo.
As ruas se descoordenavam. A tempestade impedia-me de discernir as faixas, sem querer acabei entrando na contramão. Um caminhão veio em nossa direção desgovernado. Segundos antes de se chocar conosco, dois faróis amarelos se ascenderam, em seguida ouvi uma buzina gritar, num tom alto e estridente, então virei o volante, não perdi o controle da direção, tracei a rota para a faixa ao lado sem derrapar.
O relógio no visor do alto do volante marcara 23h05. Comecei a me sentir nervoso, já não aguentava mais dirigir, não com Aline lançando-me aquele olhar ameaçador. Dois anos de namoro, naquele momento pareciam sumir e se transformar numa bola de neve que tomava proporções desastrosas.
Vinte minutos se passaram e ainda não conseguia desvendar nossa localização, tentava observar a estrada e os arredores esperando encontrar alguma referência, mas a chuva nublava meu campo de visão. Aline continuava me encarando, precisava relaxar antes de fazer algo que sabia que iria me arrepender.
— Uma placa. — Avistou Larissa do banco do carona.
Tentei enxergar a placa que Larissa dissera, mas a tempestade só me deixara observa-la de relance, quando a ultrapassamos.
— 66... 66... — Acho que era isso.
A única coisa que consegui enxergar naquela tempestade foram dois números, 66.
Não sei se os outros repararam, mas por um instante a placa que vira de relance parecia ser bem antiga, sulcos de ferrugem brotavam dela, assumindo uma aparência distorcida. Lembro-me que quando a luz do farol direito brilhou sobre o metal, consegui ver algo escrito. Eram em parte rabiscos mal feitos, quase apagados, escritos em um tom avermelhado, tão vivo como sangue, mas legível — SEM RETORNO.
Já havia viajado para Socorro diversas vezes e nunca havia passado por aquela estrada, nem ao menos havia ouvido falar. — 66...
Que porra de lugar é esse?
— Se eu soubesse já havia respondido, não acha. — Respondi de uma forma um tanto rude.
Aline não estava bem. Reclamava desde ontem de uma ânsia de vomito que não passara a mais de uma semana — gravida! Só se for do espirito santo. Não tínhamos relações sexuais a quase quatro meses por conta de sua greve de sexo, coisa que ela sempre fazia para me deixar nervoso quando não fazia o que ela queria.
— Porque nunca liga o GPS? — Grunhiu Aline.
— E o que vai adiantar, essa merda está descarregada.
— Mas se você parasse de ser lesado e colocasse isso para carregar, talvez nos ajudaria, não é mesmo.
— Eu já sei o que está querendo fazer. Está tentando me tirar do sério, não é mesmo.
— É você mesmo que está se tirando do sério, querido. Porque eu estou na minha.
A estrada estava deserta e o último automóvel que havíamos visto, passara antes da meia-noite e fora aquele caminhão ao qual quase nos chocamos.
— No porta-luvas tem um mapa da região, pega ele pra mim, POR FAVOR!
Achei que Aline ia me ignorar, entretanto, finalmente me obedeceu, pela primeira vez desde que entramos naquele carro. Talvez compartilhasse do mesmo sentimento. Queria sair daquele lugar o mais rápido possível, era isso, ou ela encontrou algum modo obscuro de me deixar ainda mais nervoso.
Estava a cerca de quarenta quilômetros por hora quando Aline abriu o porta-luvas e inesperadamente houve um tranco, em um segundo o carro subiu e desceu de forma agressiva, como se tivesse passado por uma lombada em alta velocidade. Aline desajeitou-se na hora e escancarou a pequena portinhola do porta-luvas, deixando todos os papeis voarem, espalhando-os por todo o carro.
— Mas que droga aconteceu? — Perguntou Aline assustada.
O carro havia passado por cima de algo grande. Naquela hora, pude ouvir o som de algo lacerar pelas engrenagens — Crac... Crac... Crac...
Um som nítido de algo esfacelando por debaixo das rodas, talvez até algum animal. Em seguida, um guincho de dor quase inaudível sibilou, distanciando-se conforme seguíamos em frente. Tenho certeza que aquele som não era de nenhum animal, para mim tinha uma voz masculina, mas deformada por conta do acidente e parecera quase um urro de um animal sufocando. Esperava não ter matado ninguém. Precisava acreditar nisso, se não acabaria pirando.
— Eu não sei! O carro deve ter passado por cima de alguma coisa.
— Não vai parar?
— Pra que? Não deve ter sido nada.
— Pra ver o que era. E se tiver atropelado alguém.
— Quem? Quem estaria andando no meio de uma estrada, durante um temporal.
— Alguém desesperado. — Sugestionou.
— Concordo com Isaac, acho que não foi nada. No máximo algum animal. — Falou Larissa.
— O que está acontecendo? — Perguntou Marcos.
— Essa v-a-c... — Engasguei.
— Olha o que você vai dizer.
Aline prontificou a mão na minha direção, estava esperando completar a frase.
Ela encontrara o mapa da região momentos depois, entre suas cochas, próximo de diversos comprovantes de pagamento, registrados num motel. Motel Noite Feliz. Duas notas no valor de cinquenta reais e uma no valor de trinta e cinco.
— Que merda é essa!
Reparei os comprovantes mergulhados naqueles dedos carnudos e passei de uma expressão de frustação e nervosismo, para um semblante de medo. Ficara atônito de uma hora para outra, pálido como um cadáver — coisa que nem ocorreu, quando soube que poderia ter atropelado alguém.
Não sabia o que dizer. Comecei a suar frio.
— Ah. — Suspirei.
Aline esperava uma resposta, enquanto segurava os papeis na minha direção, numa expressão de raiva.
Fiquei mudo durante os primeiros dez segundos, olhara para os comprovantes em sua mão, depois para ela e em seguida para estrada. Pigarreei, estufando o peito e cuspi uma resposta.
— São de Regina, ela passou no meu cartão. Você sabe muito bem que ela sempre fica sem limite as vezes.
Esforcei-me para evitar o contato visual direto, enquanto ela me encarava como um Rottweiler, tentando me intimidar, pronta para botar os dentes para fora.
— Dá Regina! O que a Regina estava fazendo com seu cartão? Interessante você mencionar ela. Não disse semana retrasada que não a via a mais de seis meses e que tinha ido para o exterior. — Perguntou Aline, num tom sarcástico.
— É, então, esqueci de te avisar que ela voltou. Nos encontramos este sábado no centro. Foi no meio do meu expediente de trabalho. — Tentei explicar com veemência.
Aline fechou os olhos, por um momento quis acreditar, mas sem dúvida desconfiava do pior. Nossa briga já não tinha fim desde sexta-feira, quando me viu em cima de uma modelo de biquíni, numa festa na casa de um primo — Eu só a estou ajudando a equilibrar o copo de cerveja, não vê que está muito bêbada, fora minha resposta. Ao qual ela não conseguira engolir.
Procurei permanecer calmo com tudo aquilo acontecendo, mas não conseguia. Meus olhos estavam pregados na estrada, cintilantes e abertos como dois grandes faróis.
— Porque viemos por aqui? — Pensei.
— Me dá esse mapa, por favor.
Aline apanhou o mapa que estava sobre sua cocha direita e me entregou.
Precisava prestar atenção na estrada, portanto, diminui a velocidade. Por vezes olhara para estrada e em seguida para o mapa, enquanto segurava o volante.
— Saímos de Socorro a mais de duas horas. Já devíamos ter chegado em Mairiporã.
O Sedan Chevrolet 2012 que haviam alugado falhara desde o começo, fora de certa forma uma das piores escolhas de sua vida. A viajem havia custado em torno de cem reais, mais dois galões de gasolina e uma roda quebrada, tudo num valor de duzentos e vinte reais e quarenta centavos, fora o custo de empréstimo do carro no valor de cento e trinta reais.
O rádio não conseguia sintonizar nenhuma estação fazia horas, e o som da estática era tão febril como o vento zunindo ao bater na janela. Pode-se dizer que passar mais de duas horas num carro, no meio de uma tempestade não era uma forma prazerosa de passar o tempo.
As arvores se agitavam dançando pela estrada, ao redor da chuva. Pedaços de madeira, galhos e lixo voavam sem direção.
 
II
 
Marcos era primo de Aline e havia pegado carona conosco. Ele voltara de suas férias em Minas e após lhe encontrarmos, Aline fez questão de dar-lhe uma carona até São Paulo.
— Não amor, por favor aqui não! — Pediu Larissa.
Marcos parecia estar excitado, vi pelo retrovisor ele passando a mão grossa sobre seu decote, apalpando seus seios de forma violenta, envolvendo-os em seus dedos. Chegou quase a romper seu curto vestido, então debruçou-se sobre ela, arquejando-se com os braços abertos de modo que ela não conseguisse se mover direito, forçando-a a um beijo. Ele não parecia se importar com nossa presença.
— Faz aquilo pra mim. — Faz... — Gemeu Marcos em seu ouvido.
Aline estava quase dormindo, seus olhos tamborilavam de sono, ainda assim ficou indignada ao ouvir aquilo.
Tenho certeza que Marcos a via apenas como uma simples máquina sexual. Sentia-se o garanhão. Um robusto metrossexual, musculoso, com um metro e oitenta de altura, loiro de olhos claros.
— Pare agora. — Advertiu Larissa, tomando voz.
Larissa não estava a fim.
— Vocês não podem esperar até chegarmos em um Hotel. — Gritei alto, sem paciência.
Marcos virou o rosto, mordendo a língua.
— Vá se foder Isaac.
Segurei o volante com força, fincando as unhas na borracha.
Larissa tomou força, empurrou-o contra o assento ao lado, disferindo lhe um tapa no queixo.
Marcos segurou-a firme pelo braço.
— Vai me machucar?
Ele a encarava como um leão imponente, franzindo as sobrancelhas.
Larissa sentiu sua respiração quente próxima do pescoço.
Marcos não a soltou até o seguinte momento, quando comecei a diminuir a velocidade, até parar o carro no acostamento, próximo de um poste.
Não conseguia entender. Quando finalmente me toquei que aquela estrada não estava no mapa, entrei em pânico. Desci do carro e comecei a caminhar perplexo, com as mãos na cabeça.
— O que foi que aconteceu? — Perguntou Aline desesperada.
— Que droga. Sabia que devia ter continuado na via principal. Essa estrada não está no mapa.
— Tem certeza?
— Veja você mesmo.
— Não devíamos ter pego aquele desvio. Sabia que acabaríamos nos perdendo.      
— Estamos perdidos? Só faltava essa. — Disse Larissa, aflita.
— Se não tivessem me pedido para pegar a via secundária... estão vendo... eu avisei! Acabamos no perdendo...
— Como íamos saber? — Indagou Larissa.
— Não, mas você disse que conhecia o caminho.
— Eu devo ter me equivocado, a tempestade também não colaborou. — Respondeu Larissa.
A chuva diminuíra um pouco, agora não passava de uma garoa fraca. Toda essa confusão me fazia recordar de quando meu pai me levou na praia pela primeira vez. Acho que deveria ter no mínimo uns dez anos — perdi meu pai para um câncer no pulmão, cinco anos depois.
Uma imagem passou pela minha mente. Enquanto retornávamos, subindo a serra, paramos num posto de gasolina. Lembro-me dele gritando para ficar no carro. Fiquei extremamente apavorado na época, mas meu pai, não. Então quatro homens desceram de uma picape, todos armados, dois com escopetas, um com uma semiautomática e outro com uma faca. Eles cercaram meu pai ao lado da bomba de gasolina. Papai era policial, tinha uma arma guardada num coldre na cintura. Observei-os se aproximar de meu pai, após o primeiro estrondo não lembro ao certo do que aconteceu. Agachei sobre o banco do carona. O barulho de um tiro realmente era alto, como se estourassem cinco rojões de uma só vez. Um zunido preencheu meus ouvidos. Agachei-me no banco do carona e tentei tampa-los com as mãos, mas era muito alto... Em seguida uma chuva de balas iniciou, era como se estivesse num campo de guerra. Ouvi alguma coisa explodir próximo do carro. Em seguida ouvi gritos. Mas em momento algum ouvi a voz de meu pai.
— Papai. — Chamei-o de dentro do carro. Não conseguia mais ouvir nada, apenas um zunido que preenchia minha cabeça.
O tiroteio durou uns cinco minutos. E antes do fim, um tiro acertou nosso carro, deixou um rombo na porta do motorista. Comecei a chorar na hora. Um estilhaço da bala havia acertado meu antebraço. Sentia o sangue quente escorrer, misturado a minhas lagrimas. Quando a chuva de balas cessou, ouvi uma voz — vai morrer, vai mor-r... então um último tiro silenciou tudo.
Ouvi passos vindo na direção do carro. Tentei me esconder, mas aquele sentimento de medo, fez-me urinar nas calças. Quando os passos pararam. Abri os olhos e vi o rosto de meu pai na janela. Uma tira de sangue descia de seus cabelos grisalhos até o pescoço — Ei garoto, está tudo bem.
Daquele momento em diante, até o dia de seu enterro, sempre o consagrei como um herói. Soube pela mamãe, dias depois do ocorrido, que papai devia a um agiota. Mas mamãe sempre dizia que papai iria resolver as coisas.
Enquanto discutíamos, não percebi, mas uma coluna de nevoa espessa se aproximava.                                                
— Gente...
Continuamos a discutir no meio da estrada. Aline se distanciou, foi na direção contraria, afastando-se alguns metros.
— Gente...
A nevoa tomara ainda mais espessura e logo tornara-se um nevoeiro.  Uma imensa coluna de fumaça branca se estendeu, descendo das arvores, vindo de todas as direções. Aline viu o nevoeiro erguer-se sobre ela.
— GENTE!!! — Gritou Aline num tom estridente, até sentir sua garganta quase explodir de dor.
Todos a fitaram naquele momento. Quando reparamos o nevoeiro pairar em sua direção, só houve tempo de entrarem no carro. A neblina densa e totalmente intransponível logo cobriu o automóvel. Não enxergávamos nada. Nem o asfalto.
— Alguém liga pra polícia! Peça que mandem uma viatura. Não podemos dirigir neste nevoeiro.
Aline tirou o celular do bolso, o Motorola G3 estava em péssimo estado, com a película quebrada.
— Estou sem sinal.
Meu celular estava sem sinal também. Larissa disse que perdera seu celular a um pouco mais de uma semana e não tinha tido tempo de comprar outro. Marcos nem ao menos tirou o celular do bolso.
Aline analisou o mapa durante horas, procurando alguma indicação que pudesse nos ajudar.
Já passava das 03h00 da madrugada e ainda estávamos parados naquele mesmo lugar.
— Você se lembra daquela placa? — Perguntou Aline
Pensei um pouco, não conseguia raciocinar com sono.
— Acho que sim. Se não me engano, dizia algo como, 66. — Respondeu Larissa.
O mapa parecia até um caldeirão de linhas coloridas. Tentamos encontrar alguma referência aquela placa que víamos. As horas passavam vagarosamente dentro daquele carro. E estávamos com pouca gasolina no tanque, tínhamos que encontrar algum modo de sair dali o mais rápido possível.  Aline correu os olhos pelo mapa até achar um pequeno ponto, uma estrada no meio do nada. — Rota 66.
— Estamos aqui, eu acho. — Apontou Aline.
Estávamos a quilômetros da via principal.
— Esse mapa é antigo. Tem certeza que está correto. — Questionei a Aline.
— É nossa única esperança. Espero que esteja...
Voltamos a analisar o mapa. A estrada aonde estávamos dava direito num pequeno vilarejo sem nome.
— Podemos pedir ajuda neste vilarejo. — Propôs Larissa.
— Mas aqui não tem informação nenhuma sobre ele. Tem certeza...
Larissa fez que sim. — Alguém tem alguma uma ideia melhor.
Não quisemos nos impor, afinal ela estava certa, estávamos a quilômetros de qualquer lugar e o lugar mais próximo era este vilarejo. Só não conseguia entender como havíamos saído tanto da rota principal desta forma. Nunca tinha me perdido numa viajem para socorro, isso porque conheço o caminho.
Hesitei em ligar o motor. Não gostava daquele nevoeiro. Algo parecia estranho.
Apertei o acelerador devagar e continuei. A nevoa fustigava ainda mais minha preocupação, deixando-me louco. Aline viu-me tremendo e pôs a mão sobre meu braço, confortando-me.
Aline tentava sintonizar alguma estação, mas só escutava estática. O carro passeava em suaves vinte quilômetros por hora. Estava com medo de aumentar a velocidade.
Enquanto nos distraiamos, o rádio finalmente começou a sintonizar algo.
Aline ouvia ruídos, mas a voz parecia distorcida.
— Vocês estão ouvindo?
Aproximou o ouvido do rádio.
— Estão ouvindo? — Perguntou Aline.
Ninguém estava escutando nada, só estática.
— Não estão ouvindo... — Disse Aline, então uma voz explodiu no rádio, gritando. Um som deformado e com muito chiado.
Tentei desligar o rádio, mas não consegui. O zunido cintilava por todo o carro. Meus tímpanos iam explodir. Aline ficou desesperada, começou apertar todos os botões de uma única vez...
— NÃ-O CUI-DA-D-O, E-LES VÃ-O, V-ÃO...
Marcos se levantou do banco e deu um soco no rádio, quebrando a aparelhagem sonora. E então o barulho cessou.
— Porra... sou eu que vou ter que pagar por isso.
Marcos deu de ombros.
— Droga, vai ter que pagar o concerto.
 
III
 
 
Cinquenta minutos depois o nevoeiro começou a se dispersar. O branco-púrpura se dissolvia em uma nevoa clara. Já era possível ver o asfalto e parte da estrada.
Pastos verdes inundavam o horizonte para todos os lados.
Um quilômetro depois, avistamos uma cabana à beira da estrada.
— Finamente civilização.
Parei o carro ao lado da cabana. Um pequeno casebre de madeira. Parecia ter sido feito à mão. Havia uma placa acima da porta. — Oxoênsa. A macabra escritura parecia ter sido talhada em sangue.
Após aproximarmos, percebemos que o casebre estava coberto de ossos de animais, na maioria crânios. Arrepiei-me todo ao ver aquilo, sentia repulsa.
— Isso é de verdade? — Questionou-se Marcos tocando em um crânio pequeno, provavelmente de um gato. Viu sair de entre os dentes uma centopeia asquerosa. Tomou um susto e jogou aquilo para o mais longe que pode.
A porta da cabana se abrira lentamente enquanto nos aproximávamos e em seguida uma voz invadiu meus pensamentos.
— Pode entrar.
Aquela voz me atraia. Senti-me hipnotizado por ela. Quando me dei conta de onde estava, já havia entrado dentro da cabana.
— Quem é você? — Perguntei.
Estava muito escuro. Mas de repente a lareira se ascendeu, iluminando uma poltrona, aonde alguém repousava.
Uma figura esquelética surgira sentada a frente da lareira observando as chamas. Parecia ser uma senhora idosa.
Quando menos esperava a porta se fechou. Tentei fugir, mas não conseguia abri-la. Senti algo forçando-a contra mim — algo não me permitirá fugir.
— Oxoênsa! — Sussurrou uma voz senil em meus pensamentos.
— Mais uma lua de sangue está para surgir. Mais um sacrifício será aceito... O deus deles sabe que vocês estão chegando...
Dei um paço para frente em sua direção. Vira de relance um rosto seco, marcado por sulcos, velho e apodrecido. A velha segurava um amuleto, uma boneca feita de ossos.
— Eles não podem vir aqui...
A velha fitava o fogo, como se as chamas a envolvessem.
— Oxoênsa! — Continuou pronunciando.
— A Lua de Sangue...
— Eles precisam comer...
— A lua de sangue está próxima...
— Então, eles precisam comer...
Não conseguia me mover, estava paralisado e num piscar de olhos, a velha desapareceu da frente da lareira. Tentei observar a área ao meu entorno, mas não conseguia me mover, nem ao menos falar.
— Vocês, voc-ê-sss precisam fugir. Não... ele já sabe que estão aqui...
Uma mão enrugada e esquelética evolveu meu pescoço, como se abraçasse intimamente, então lábios secos tocaram meu ouvido.
— Oxoênsa.
— O deus da noite anseia por vocês...
Sentia uma pele flácida e enrugada raspar na minha nuca, apalpando meu pescoço. Então algo pegajoso subiu pelo meu queixo. Não acreditei, a velha estava em lambendo. Uma ânsia de vomito subiu até a garganta, parecia que ia vomitar meu estomago para fora. Porém, comecei a respirar fundo, fechando os olhos... quando os abri novamente, percebi que estava do lado de fora da cabana paralisado de medo... um esguicho de urina corria por minha calça.
Marcos estava quase entrando na cabana quando gritei.
— NÃO!!!
Todos se assustaram, pois o grito fora de certa maneira, muito alto.
Marcos que estava com as mãos na maçaneta da porta da cabana se afastou. Corri para o carro. Estava em pânico, começara a lacrimejar segurando o volante com força.
— O que aconteceu? — Perguntou Marcos.
Aline tentou me tocar, mas a repudiei. Não queria ser tocado por ninguém naquele momento. Ainda me recordava daquela coisa nojenta rastejando pela minha pele.   
— Precisamos dar o fora daqui. Serio...
— Eu sei idiota. — Disse Marcos de forma Ignorante.
Eu não estou brincando caralho. Tem alguma coisa aqui... alguma... — Tinha medo de continuar.
— Alguma coisa o que? — Perguntou Marcos estupefato.
Pisei no acelerador.
— Calma amor! — Disse Aline, tentando me acalmar.
Aquela voz ainda martelava meus pensamentos de uma forma indescritível.
— Oxoênsa!
Aline viu o velocímetro. A velocidade aumentava rapidamente. Podia-se ouvir o ronco do motor tinindo.
— O que está acontecendo?
Enquanto dirigia olhava para o céu, pelo retrovisor e durante aquele devaneio, a lua parecia encher-se de sangue.
— Oxoênsa!
Vi a lua tornar-se sangrenta e aquela visão destruirá minha sanidade.
Meu pé parecia enfiar-se profundamente no acelerador. Não conseguia distinguir a realidade. O Sedan havia alcançado uma velocidade de quase setenta quilômetros por hora.
Aline tentou parar-me pisando no freio. Marcos jogou-se para frente e segurou o volante. Perdi o controle da direção. O Carro começou a derrapar, girando.
— Você está louco Isaac. — Gritou Larissa.
Só duas coisas passavam pela minha cabeça — a lua vermelha e Oxoênsa.
Com o tempo comecei a recobrar a consciência, vi me derrapando para fora da pista. Então virei o volante de volta a estrada. Parei o carro, corri para fora e vomitei.
 
 IV
 
— Você está bem Isaac.
Fiquei mudo durante um bom tempo, ofegando. Eram quase 06h00 horas da manhã e o sol começara a aparecer.
Estávamos parados na estrada a quase uma hora.
— O que aconteceu?
— Não sei explicar. — Respondi. — Vocês não acreditariam.
Larissa se afastou indo até o porta-malas. Então Aline surgiu a minha frente, distraindo-me.
— Nunca mais faça isso. Me ouviu. Nunca mais.
Não sabia o que responder.
Então do nada ouvi uma buzina. A princípio pensara ser coisa da minha cabeça, já que nem eu acreditava em mim mesmo. Ainda assim, aquelas cenas dentro da cabana me atormentavam, desnorteando-me por vezes.
— Está ouvindo? — Perguntou Aline, virando-se para atrás.
Minutos depois avistamos um carro vindo em alta velocidade pela estrada.
Era um corsa vermelho, corria tão rápido que parecia que ia chocar-se conosco. Mas quando chegou próximo, desviou, derrapando na pista, e então seguiu direito.
Larissa observara do porta-malas como uma coruja, sem piscar.
Tentei dar partida no Sedan, mas não ligara, então um jato de fumaça saiu do motor.
Marcos e eu descemos do carro.
Particularmente não sei nada de carros. Nunca gostei. Marcos ao contrario já tinha um certo conhecimento em automóveis, seu pai era mecânico pelo que fiquei sabendo de Aline. Após levantar o capo, inacreditavelmente pôs o carro para funcionar em menos de dez minutos.
Já eram 08h45 quando voltamos a estrada.
— O que fazia tanto no porta-malas? — Perguntei a Larissa.
— Nada. Só checando nossa bagagem.
Lembrei-me de quando encontramos Larissa e Marcos em Socorro com um imenso saco preto, não quiseram dizer do que se tratava. Aline também não fez questão de interroga-los.
— Estão escondendo algum corpo naquele saco.
— Há, há... muito engraçado Isaac. — Disse Larissa.
Ainda assim, sentia Larissa diferente desde que entramos naquela estrada. Bem, todos estávamos ficando loucos afinal, mas ela... ah! Não. Ela escondia alguma coisa naquele porta-malas e descobriria cedo ou tarde.
Não sabia nem mais a quanto tempo estávamos naquela estrada, ou quantos quilômetros já havíamos percorrido. Tentei encontrar o mapa. Pedi para Aline procurar pelo carro, mas não o encontramos. Como poderia ter sumido, um mapa com quase um metro de largura. Agora pronto, tudo estava ferrado, estávamos certamente perdidos num lugar desconhecido sem mapa. O que mais poderia dar errado.
Perguntava-me por quanto tempo Larissa ia continuar daquele jeito, parecia até uma criminosa escondendo algo. Olhava-me de relance, perseguindo-me com o olhar enquanto pensara que não estava olhando.
— O que foi Larissa. Não para de olhar para mim! — Perguntei inesperadamente.
Larissa não me respondeu.
— Está louco. Ela é minha mulher. — Gritou Marcos.
Aline tentou me dar um tapa, mas a impedi, segurando seu braço, antes que o fizesse.
Talvez todos naquele carro estivessem ficando louco, ou talvez apenas eu estivesse, mas todos estavam agindo estranho.
Ainda me lembrava daquela cabana. Aquilo fora tão real como estar dirigindo este Sedan agora. Não acho que tenha sido um sonho — afinal, não me lembro de estar dormindo.
Aquela palavra — Oxoênsa.
— O que poderia ser? — Pensei.
— Quer que eu dirija um pouco Isaac.
Por um momento não quis deixa-la tomar controle do carro, mas estava cansado. Muito cansado. Me dobrei até seu assento e lhe dei a direção.
No momento em que encostei minha cabeça na janela, fechei os olhos e cai automaticamente em um sono profundo, foi tão rápido que ainda me lembro de Aline dizendo. — Nossa! Já dormiu.
 Durante o sono, sonhei que um homem negro de chapéu redondo, surgia das sombras, andando por uma estrada de tijolos, iluminado por uma luz vermelha. Não era possível ver seu rosto por conta do chapéu. No sonho, esse homem me guiava até um lago. Não me lembro de estar fisicamente lá, mas como uma consciência, uma consciência fantasma que observava tudo. O homem negro de chapéu redondo seguiu a estrada até um lago, aonde caminhou para dentro dele. Durante o tempo que ele permaneceu dentro do lago, comecei a ouvir vozes que se aproximavam, mas não sabia de onde vinham, todas sincronizavam-se dizendo a mesma frase. — Deus retornara.
Foi só então que percebi que todas as vozes vinham de um só lugar, o lago.
 
V
 
Acordei por volta das 17h40, o sol já estava se pondo. Uma amalgama de cores se formava, num crepúsculo avermelhado que preenchia toda a estrada.
— Já chegamos. — Perguntei inesperadamente ao abrir os olhos. Por um segundo acreditei...
Mas realmente havíamos chegado em algum lugar. Notei que só eu estava no carro.
— Onde estão os outros? — Questionei-me.
Desci do carro sonolento, andando com dificuldade. Notei que o porta-malas estava aberto. Caminhei até a traseira do carro e nesta hora notei na roda traseira direita um tipo de malha cheia de cabelos, ensanguentada, envolvida na calota, parecia até um pedaço de pele humana, mais precisamente um escalpo. Tomei um susto. Me distanciei do carro.
Olhei para frente e a alguns metros a estrada pavimentada dava lugar a uma estrada de tijolos vermelhos. Então percebi que mais à frente haviam duas dúzias de pequenas casas que formavam um pequeno vilarejo. Eram casas simples, todas pintadas de branco, com telhado vermelho. Alguns estavam aos pedaços, outras pareciam ter sido construídas a pouco tempo. Dois corredores de arvores seguiam verticalmente por ambas as calçadas. Caminhei pela estrada durante alguns minutos, olhando para as casas que permaneciam fechadas. Sentia que estava sendo observado.
— Aline. — Chamei-a num tom baixo, hesitante. Com medo de acordar alguma coisa.
Olhara para todos os lados. Deixara minha guarda mais que preparada naquele momento.
Nunca tinha visto um vilarejo como aquele antes e algo ainda mais estranho atiçava meu medo, todas as portas das casas tinham uma faixa vermelha pintada ao que me pareceu ser sangue, mas não queria acreditar.
Pensei ter visto dois olhos em uma janela que estava aberta a minha esquerda. Olhos amarelos, que brilhavam como lanternas opacas. Aproximei-me da janela incrivelmente inconsciente do que estava fazendo e espiei pela borda da varanda. Vi um cômodo infestado de baratas e besouros, tudo estava envolto por uma grossa camada de pó, mofo e acaro. Fechei a boca e o nariz com a mão, não aguentei sentir aquele cheiro de podridão, parecia que haviam deixado algo morto lá dentro. Não havia luz, mal conseguia enxergar direito de onde estava.
Me assustei quando vi alguma coisa se movendo no escuro, entre a penumbra. Uma silhueta contorcida que parecia estar ajoelhada entre alguns moveis, tentando se esconder. Levei um susto quando aquilo abriu os olhos, então duas orbitas amareladas surgiram no escuro, fitando-me.
Assustei-me e sai dali. Corri até o final da estrada que dava direto em uma igreja. Esta por sua vez era uma edificação maior que as outras, tinha cerca de vinte metros de altura e era toda pintada de vermelho. A igreja tinha grandes colunas adjacentes que sustentavam quase toda sua estrutura. Percebi que dentro da igreja havia luz.
Segui até a escadaria central lentamente, sem baixar a guarda, olhando para todos os lados. Quando o sol finalmente se pôs, a lua ascendeu e como uma vela, toda o pequeno vilarejo parecia ter assumida uma outra face, agora pareciam ter mais vida. O vilarejo parecia brilhar, senti uma força arder dentro de mim, como se pela primeira vez na vida me sentisse bem, realmente bem... não sentia sono, nem dor, nem cansaço. Era uma sensação tão boa. Quando entrei na igreja, vi um imenso mar de velas preenchendo as paredes. Andei pela nave até o púlpito, esperei ver uma estátua de Jesus Cristo ou algum santo católico, mas não... nem ao menos uma bíblia. O púlpito estava vazio. Olhei ao meu redor e percebi que todos os vitrais da igreja estavam quebrados. Dei a volta no púlpito e observei que em sua base haviam alguns rabiscos gravados na madeira.
— Amaldiçoou cada alma viva deste lugar. — Dizia os rabiscos, em uma caligrafia duvidosa, passei certo tempo tentando decifra-los, isso porque alguém não queria que notassem, haviam tentado apagar, fazendo rabiscos horizontais em cima dos originais.
Quando terminei de ler, o homem negro de chapéu redondo voltou a meus pensamentos, por um segundo vidrei sua imagem na minha mente. Uma palavra veio em seguida. — Deus.
Então aquele pensamento foi interrompido por uma corrente de ar que começara a invadir a igreja, vi as velas se apagarem, quase em efeito domino. Toda igreja escureceu comigo ainda à frente do púlpito. Comecei a andar. E daí em diante comecei a ouvir um sussurro, que parecia até uma lamuria, vinha do púlpito. Virei-me devagar e então as velas ao redor do púlpito se ascenderam. Pude ver uma corda amarrada no teto, e um homem enforcado, todo manchado de sangue. O homem parecia ser um padre, vestia uma batina com trinta e três botões dourados. Pareciam telo cortado a garganta, uma fita de sangue escorria da ponta do pé direito por cima do altar.
O corpo do padre começou a apodrecer a minha frente, inchando e depois enrugando-se, criando sulcos amarelados, até que sua pele começou a derreter, sua batina se desgastou e então pude ver os ossos surgindo.
— Todos os hereges devem morrer... — Flutuou uma voz vinda do cadáver enforcado acima do púlpito.
Enquanto presenciava aquilo, alguém tocou meu ombro. Senti naquele momento um medo excruciante ao qual não consigo descrever.
— Querido.
Virei-me, dando de cara com Aline.
— O que está fazendo?
— O padre... o pad-r-e... pa-dr-e. — Engasguei, tremendo de medo.
— Nossa você está pálido demais! O que aconteceu.
Aline empurrou-me e entrou na igreja. Estava tudo escuro. Ela tirou o celular do bolso e iluminou seu redor, caminhando pela nave na direção do púlpito, tentei impedi-la, porém quando a luz chegou até o altar, fiquei perplexo... não havia nada.
— Ei vocês, podem sair daí. Essa igreja está fechada. — Gritou uma voz desconhecida.
Fomos até lá fora
Deparei-me com uma mulher morena, trajando um turbante negro.
— Você deve ser Isaac. Meu nome é Maria. Peço lhe desculpas, a porta da igreja sempre é deixada aberta as vezes. Deve ter se assustado. Não costumamos frequenta-la mais.
— Estávamos te procurando! — Falou Aline.
— Vocês que desapareceram. — Respondi.
Continuei olhando para o púlpito vazio, enquanto voltara para a escadaria a frente da igreja.
— Vocês não deviam ter vindo aqui.
— Tem certeza que está bem querido. — Perguntou Aline novamente com mais veemência.
Quando saímos da igreja, Maria, a mulher de turbante negro fechou a porta.
— Faz muito tempo que não temos um padre nesta cidade. — Disse Maria.
— Ela deixou nos hospedarmos em seu chalé, esta noite.
Ao voltarmos para estrada. Vi algumas casas acesas, mas ninguém saiu, também não parecia haver ninguém dentro delas.
O chalé localizava no alto de uma colina, subindo uma pequena estrada de terra. De lá era possível ver toda a cidade.
— Onde estão Marcos e Larissa.
— Eles já estão no quarto deles.
— Como já disse a sua mulher. Peço que não saiam de seus quartos a noite. Se precisarem de algo é só me chamar.
Enquanto subíamos a estrada de terra, via a chalé se erguer diante de meus olhos.
O chalé tinha um telhado avermelhado escuro e dois andares. Algumas arvores se trepavam no chalé, forrando parte da estrutura com suas raízes.
Marcos e Larissa estavam no quarto ao lado. O relógio no meu pulso, marcava 22h10.
Após entrarmos no quarto, a mulher de turbante desapareceu.
Deitei-me na cama, fiquei conversando mais uma hora com Aline até ela dormir. Fui dormir depois da 01h00 da madrugada, quando finalmente senti sono.
 
VI
 
Logo após adormecer entrei em sono profundo.
Acordei, ouvia um barulho estranho vindo da varanda. Tentei acordar Aline, mas não consegui.
Me levantei da cama e fui até a varanda. Vi várias pessoas saindo das casas, homens, mulheres e crianças com tochas nas mãos.
Corri, desci as escadas e fui até o vilarejo, tentava me esconder entre as arvores e casas. A multidão de pessoas se aglomeravam, seguindo um homem negro, o mesmo homem do outro sonho com o chapéu redondo.
As pessoas gritavam, asquerosas. Levavam algo. De longe não conseguia ver o que era. Segui eles. A multidão entrou na floresta, seguindo uma trilha, até chegarem em um lago, no meio da floresta. O homem de chapéu redondo pediu para multidão se dispersar em volta do lago. Então finalmente vi que um homem surgir de um saco preto. O homem de chapéu redondo segurou o homem pelo colarinho e o colocou sobre uma estaca a frente do lago. Então todos começaram a ulular e em seguida a lua se tornou vermelha.
A luz da lua sangrou o lago, tornado suas aguas avermelhadas.
Amarraram o homem à estaca com arame farpado. O homem então começou a gritar de dor. O arame farpado começou a penetrar na sua pele, dilacerando-o. Ele tentava se soltar, mas feria-se ainda mais, seu sangue espirrava das feridas profundas, enquanto gritava ainda mais alto.
Então o homem de chapéu redondo levantou as mãos na direção da lua e começou a pronunciar uma língua estranha. Então as aguas do lago começaram a tremer e algo começou a sair do lago. Uma cabeça, apodrecida, descarnada, era possível ver o crânio branco erguer-se das aguas. Em seguida diversas cabeças começaram a sair do lago. Olhei de relance ao lado de uma arvore, vi um serie de cadáveres se levantarem do lago. Os mortos seguiam tombando e andando com dificuldade na direção do homem na estaca, quando finalmente chegaram, o primeiro abocanhou parte do seu tórax arrancando um naco de carne, um esguicho de sangue voou contra o cadáver deformado. O homem gritou, urrando de dor, parte de seu tórax havia sido rasgado, era possível ver as veias saltando para fora como macarrão. Em seguida todos os cadáveres lhe cercaram, todos rasgando e estraçalhando sua carne. A maioria voou sobre seu estomago, arrancaram a pele com as unhas e começaram a devorar os órgãos, destroçando-o. Quando parou de gritar já sabia o que havia acontecido. Então me desequilibrei e cai sobre um pedaço de madeira podre. O barulho chamou a atenção do homem de chapéu redondo que virou-se na minha direção, nesta hora vi dois olhos vermelhos me fitarem e então acordei.
Estava molhado de suor. Me levantei da cama. Percebi que Aline não estava na cama.
— De novo. — Pensei.
Saí do quarto, Larissa estava no corredor. Estava sem camisa de sutiã. Marcos saiu em seguida.
— O que foi Isaac.
— Vocês viram Aline.
— Não... — Respondeu Larissa.
Então ouve um grito. Era a voz de Aline. Estava perto. Segui o corredor até encontrar um rastro de sangue.
Larissa e Marcos me seguiam
Larissa tomou a frente e saiu correndo.
— Acho que ouvi algo por aqui.
Tentei alcança-la, mas quando virou o corredor do segundo andar, Larissa desapareceu.
— Larissa! — Gritei.
Marcos entrou em desespero. Saiu correndo para fora do Chalé.
Quando o encontrei, estava parado a frente de uma mancha de sangue que seguia até a cidade.
— Espere Marcos.
Marcos se virou nervoso e meu deu um soco.
— Seu desgraçado. Se não tivéssemos vindo com vocês não estaríamos aqui. Espero que Larissa esteja bem.
Marcos saiu correndo pela trilha até a cidade, o seguia, percebi que meu nariz estava sangrando.
Quando chegamos na estrada, ouvi a voz de Aline, agora parecera rouca e um tanto grave.
— Isaac...
Segui sua voz até um armazém. Marcos entrou primeiro. Não havia eletricidade e nem janela, tudo estava escuro. Marcos viu uma luz surgir de uma sala. Segui-o. A voz de Aline ressoou da sala no final do armazém. Seguimos até a porta, Marcos foi o primeiro a entrar, estava alguns metros atrás, quando abruptamente parou, senti ele tremer. — O que está acontecendo Marcos!
Olhei para baixo e vi uma sombra a frente dele, em seguida, o corpo de Marcos caiu reto no chão. Havia um enorme facão cruzando metade da sua cabeça. Uma poça de sangue se formou ao seu redor, chegando até meus pés. Uma sombra se ergueu, podia ver uma foice surgindo na escuridão.
Não pensei duas vezes, sai correndo daquele lugar. Voltei a ouvir a voz de Aline vindo da floresta. Encontrei Larissa escondida ao lado de uma arvore chorando.
— Eles não podiam ter feito isso.
— Como assim Larissa.
Tentei tocar em seu ombro, mas minha mão transpassou-a. Levei um susto.
— Fomos amaldiçoados. Quando deus chegou aqui, todos os seguimos...
Me afastei. — O que...
— Não sabíamos o que estávamos fazendo. Ele nos fez matar o padre. Não queríamos, mas ele convenceu a maioria, depois fez nos matar. Levou todos a se afogarem no lago, para que provassem sua lealdade. Agora estamos presos a este lugar. Nossos corpos estão naquele lago. Agora somos fadados a obedece-lo eternamente. Fui encarregada de trazer novas almas para ele. A cada lua de sangue, deus tem que sacrificar uma alma.
Fiquei paralisado de medo, não conseguia responder.
— Você precisa fugir. Eles já a levaram para o sacrifício. Uma vez lá, não há mais como escapar.
Saí correndo dali. Larissa ficou ao lado da arvore, vi ela desaparecer perante meus olhos. Sai correndo até a estrada, onde ouvi a voz de Aline. Sabia que não podia os deixar. Então corri seguindo sua voz até um lago. O lago do meu sonho. Encontrei Aline em uma estaca, enrolada por fios de arame farpado enferrujado por todo o corpo. Tentei tirar os fios dela, mas não consegui. Ouvia ela gritar de dor, não conseguia nem falar direito. Tentava puxar os arames, mas aqueles arames machucavam minhas mãos e machucavam ainda mais ela, rasgando sua carne.
— Tira, tira isso de mim, está doendo demais...
Aline gritara sem parar.
— Por favor. Fique calma.
— Não me mande ficar calma...
Aline não parava de gritar. Via o arame penetrar em sua pele. Eles a dilaceravam, não conseguia mover nada sem que machuca-la mais ainda. Seu sangue escorria de suas feridas por todo corpo.
Vi tochas vindo em nossa direção, pequenas luzes vermelhas vindas de dentro da floresta.
O homem de chapéu redondo surgiu.
— Deus aceita seu sacrifício.
Ele ergueu as mãos ao céu e o dia virou noite de uma hora para outra. Um vento forte assoprou do norte. A lua subiu ao céu e tornou-se escarlate, então a luz refletiu no lago, tornando suas aguas como sangue.
— Me ajude, tem que tirar isso de mim, doe demais, por favor tira isso.
Enquanto dilacerava meus dedos tentando solta-la, vi a agua do lago tremer, então cabeças começaram a surgir, eram cadáveres que subiam das aguas pela margem e vinham em nossa direção. Não desisti até o último instante, quando percebi que não iria conseguir tira-la de lá.
— M desculpa Aline.
Beijei sua testa. Os mortos já estavam próximos, então sem pensa duas vezes a abandonei.
— Isaac, não faça isso. Desgraçado... não...
Comecei a chorar enquanto voltara ao carro. Lembro-me de dirigir cerca de dez quilômetros, estava em choque, desnorteado. Quando finalmente consegui me acalmar, percebi alguma coisa respirando no banco do carona. Olhei pelo retrovisor interno, virei-o para o assento direito e então notei que não estava sozinho. O homem de chapéu redondo surgira dentro da escuridão do carro...
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 21/11/2017
Reeditado em 03/12/2017
Código do texto: T6178369
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.