A Peste do Beijo (Parte Final)

Após a divulgação da funesta descoberta de que o vírus da Peste do Sangue era transmissível pela saliva, o beijo, um dos mais belos e ancestrais costumes humanos, foi quase que banido das relações sociais. Somente beijavam-se pessoas que se conheciam de forma íntima, e ainda assim com certas reservas. O temor de contrair a fatal enfermidade era tão intenso que a grande maioria das pessoas que antes possuíam mais de um parceiro ou parceira decidiu de uma hora para outra permanecer com apenas um, com o mais conhecido ou com o par “oficial” conforme o caso. Claro que alguns se recusaram a aceitar o fato, ou nem mesmo se importaram, e continuaram saindo e “ficando” com diversas pessoas. Geralmente, alguns meses depois, tais pessoas percebiam em seus lábios o lúgubre surgimento de algumas feridas arroxeadas...

É desnecessário que eu explicite ao leitor uma descrição do quadro desolador que se seguiu à descoberta da presença do vírus na saliva e que o infectado poderia permanecer com ele em sua boca por seis meses sem apresentar sintomas. O beijo transformou-se de um símbolo de amizade, de prazer, paixão ou amor, em um símbolo de medo e morte. As pessoas já não iam a festas, ou a casas noturnas, porque não poderiam “ficar” com ninguém, uma vez que qualquer contato erótico sem o ato do beijo era naturalmente inconcebível. Quando duas pessoas se apaixonavam, a tortura era quase insuportável, uma vez que se temia a aproximação mútua e os conseqüentes beijos, no entanto, muitos enfrentavam o risco e davam asas à sua paixão, não sem ter o coração repleto de temores.

Posteriormente, percebeu-se que naqueles casos onde o casal de enamorados ainda permanecia unido, aparentemente mantendo-se em verdadeiro sentimento amoroso, não houve manifestação da doença em nenhum dos indivíduos, enquanto que os casais que iniciavam o relacionamento e logo o terminavam, a Peste do Sangue sempre apresentava seus sintomas, mesmo que os ex-namorados não beijassem ninguém mais após o término da relação.

Da mesma forma, foram identificadas pessoas que jamais desenvolviam a enfermidade, embora mantivessem relações sexuais com indivíduos comprovadamente infectados. Foi o que ocorreu com certas esposas que, afirmando amarem seus maridos doentes, continuavam dispostas a manter contatos sexuais com os mesmos. É claro que a ciência estudou exaustivamente tais mulheres, seu sangue, seu sistema imunológico, tentando decifrar esse mistério, na esperança de desenvolver algum medicamento. Tudo em vão. Nada, absolutamente nada de diferente das outras pessoas foi encontrado, e os casos seguiram sem explicação.

Porém... eu... eu tenho minha teoria, talvez absurda, talvez simplória, talvez já imaginada pelo leitor, mas vamos a ela... Creio firmemente que as pessoas que não desenvolvem a doença são aquelas que amam seu par ou que ao menos buscam amá-lo com sinceridade. A Peste não afeta tais pessoas, ela, de alguma forma, por algum motivo desconhecido, respeita seus sentimentos, quando verdadeiros, é como se fosse uma moléstia inteligente, que discernisse o sentimento de um e de outro. É por isso que não esperarei mais. Irei me declarar àquela jovem de olhar tão meigo que arrebatou minha alma... Amo-a. Ou será que apenas julgo que a amo? E se eu estiver enganado com meus sentimentos? E se minha teoria estiver errada? E se após beijá-la eu contrair o vírus? Meu Deus, que dúvida massacrante!!! Mas não, eu irei, eu irei, não posso mais, confiarei no que sinto, confiarei na minha alma, e que se cumpra o que me reservar o Destino...

Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 22/08/2007
Código do texto: T618229