O DEPOIMENTO DE HORROR DE 1896
 
CONTINUAÇÃO DE AS CRIANÇAS DA FLORESTA

AS CRIANÇAS DA FLORESTA
 

 
Digo-lhes que meu relato é de certa forma, demasiado incrível. Não ouso mentir, mesmo porque, estou selada nessa demoníaca lembrança, indescritível e inominável ao qual presenciei nesta mesma tarde. Vejo, pelos seus olhares caídos e abstratos que não acreditam nas lívidas palavras de uma mulher de meia idade que mora no bosque, longe da cidade, e que é chamada de louca pelos moradores locais, entretanto, embora cogitem desacreditar, baseio-me na verdade, deus sabe o quanto eu queria que fosse mentira, que vos estivesse ludibriando. Oh deus, como eu queria.
Tudo acontecera muito rápido. O velho fidalgo, Jonne Nelson, buscava na floresta, um punhado de ervas e madeira, como sempre fizera nas últimas semanas, quando se mudou para estas terras. Chovia forte na hora, os pássaros rodopiavam entre as copas das arvores, tilintando, e ao mesmo tempo, grasnando em tons inigualáveis e assombrosamente desnorteantes. Jonne percebeu, como eu percebera mais tarde, que os pássaros estavam agitados, por conta de algo que se movia, rasteiro, vagueando a floresta, entre a penumbra e as sombras indivisíveis dos buracos mais sórdidos daquela mata. Movi-me de dentro da cabana às pressas, segurando o lampião, tentei chama-lo, mas, o velho eremita, corpulento e de semblante assustado, demonstrara um certo abismo, um fascínio reprimido e ao mesmo tempo aterrorizante, seus olhos ansiavam fixos para dentro do mato numa direção ao qual não conseguia fitar daquela janela. Jonne estava atônito, vi-lhe deixar cair todas as ervas e madeiras que havia colhido e em seguida desapareceu, fugindo entre as vastas colunas infindáveis dos altos arvoredos que dimensionavam o território em um emaranhado de galhos e folhas secas.
Jonne! Chamei, em voz estridente e aguda, até que ficasse rouca e que minhas cordas vocais começassem a dor. Porém, algo nublou minha voz, um eco vertiginoso que se desprendia do nada e esvoaçava pelo ar, tornando-lhe pesado e mórbido. Meu cérebro fervia, piorando ainda mais a dor de cabeça que me acometera desde a semana passada. Saí pela porta da frente, cambaleando, por conta de um exporão infeccionado que pungia na sola do meu pé. As nuvens negras se retorciam no céu, vindas de além do horizonte. O vento soprava, rugindo, em lentas investidas atordoantes, que giravam em vórtices, levando folhas, pedaços de galhos podres e gotículas de água. Logo, um som projetou-se dentro da cabana, algo ao qual não consigo descrever, pois, certamente, nem eu mesmo acredito que poderia existir timbre tão agoniante como aquele. Posso lhes dizer que se comparara ao gemido de milhões de pessoas morrendo, e ao mesmo tempo gritando, desesperadamente, pedindo socorro. Nunca ouvira algo assim na minha vida. Aquele som... horrivelmente distorcido e amorfo, fez-me chorar, fez-me vidrar de pânico e medo, enquanto tentava tampar os ouvidos com força e rigidez.
Morei naquela cabana desde o falecimento de meu marido, Adam Lucio, no outono do 91 e sempre soube quando algo estava acontecendo na floresta. Adam me ensinara durante os longos anos gentis que passamos juntos a observar a natureza e acima de tudo, a entende-la. Adam sempre me levara naquela cabana, para passar os finais de semana e feriados. Lá, eu podia sentir o cheiro da mata, o aroma puro da natureza, misturado aos sons austeros da mata, dos animais e do vento etéreo, principalmente da brisa que fazia o umbral da porta farfalhar, emitindo um som leve e meloso, como um assobio que naquela época me deixara calma, mas que agora lateja em minha mente. A mobília era refinada, arrojada e de perfeito caimento para aquele pequeno habitar. No verão de 88, Adam comprara uma cortina tecida em seda dos campos australianos, tinha um tom violeta-avermelhado, que por vezes, quando reluzida, produzia uma cor vermelho escarlate, tão como sangue. Nossa cama, direcionava-se numa posição vertical ao lado da lareira e das estupidas artilharias que colecionava das guerras. Adam, sempre fora um homem de farda, nascido em família de guerrilheiros, só desistira de seu fardo litigioso, quando perdeu a mão direita em um confronto no oriente. A cama dava abertura a janela, que aberta, voltava para uma vista formidável da natureza, ao qual jamais vira nos tempos que passei na cidade, como dona de hotel. Os prédios altos e a poluição escancarada me impediam de tais visões. Nunca fui boa em contar histórias, ainda mais quando envolvem um falecido, principalmente de minha família, então, peço lhes que deixem meu marido fora disso, ele não tem mais nenhum assunto a tratar em vida.
Enfim. Pouco tempo depois de o som passar, e voltar-me a uma condição mental favorável, direcionei-me para a porta e corri, saltando para fora. A chuva havia diminuído acerca deste ponto, porém, ainda trovejava bastante, os clarões brancos-purpura estampavam o céu em relances sorrateiros que iluminavam a mata e tudo ao seu entorno.
Arquejei-me pela floresta procurando o velho Jonne e não deixei de notar uma mancha viscosa, impelida por uma trilha no chão. A substância escura e gelatinosa ainda se movia, alternando em bolhas de lodo e muco. Toquei-lhe com a ponta de um galho e a coisa negra reagiu, espirrou um liquido pegajoso no pequeno graveto. O liquido tinha uma textura enrugada, marcada por sulcos e filetes de insetos e pequenos vertebrados, tentei puxa-lo, mas aquilo quebrou o graveto e somou-lhe para dentro daquela coisa gelatinosa, até que desaparecesse. Caí dois passos para trás, nunca havia visto nada como aquilo em meus cinquenta e dois anos de vida. A coisa negra e isquêmica, quebrou o galho, remoendo-o e então o incorporou, absorvendo-o.
Observara aquilo com repulsa, num sentimento indescritível de horror, então, ouvi, vindo do norte, um grito. Provavelmente de Jonne, pelo tom senil. Levantei-me com dificuldade e corri na direção da voz que se afastava, seguindo a trilha de muco negro. Tentei não tocar naquilo, realmente tentei, só em pensar naquela gosma negra impregnando minha pele, já me acometia um arrepio indescritível. Encontrei Jonne quilômetros depois, próximo de um barranco que se estiver certa, dava no campo das orquídeas vermelhas. Jonne estava desacordado, e percebi quase na mesma hora que me aproximei dele, que havia um rastro tênue e acentuado voltando para sua direção, uma mancha de sangue grossa.
As arvores pareciam cantar, podem achar isso até enfadonho, mas elas realmente cantavam, uma canção feia e agourenta, reproduzida pelo vento que ressoara entre elas. Coloquei a cabeça de Jonne no ombro direito e dei-lhe em seguida dois tapas de leve no rosto, tentando acorda-lo. Jonne abriu os olhos, e vomitou um esguicho de sangue em meu rosto. “Aqui-lo... arran-cou-mi-nha-per-na....” pronunciou enquanto engasgava com o próprio sangue. Jonne morreu em meus braços naquele momento, poucos segundos depois de dizer aquilo. Poucos segundos antes de segurar forte minha mão e penetrar em meus olhos com uma expressão de horror. Então, enquanto chorava sobre seu corpo, ouvi um estalar na mata, algo estava próximo, voltei-me para noroeste até que avistei alguma coisa, podia não ser nada, estava imóvel. Fitei aquilo, durante o tempo que segurei o corpo de Jonne e percebi que realmente havia alguma coisa parada ali, algo com um aspecto humano. Jonne sangrava muito ainda, sua perna direita havia sido arrancada, deixando apenas um toco destroçado.
À medida que tentava me levantar dali e sair correndo, a coisa que estava parada a poucos metros de mim se movera também, contudo, mais ligeira. Me afastei de Jonne por uns trinta metros, e reparei que aquilo não estava me seguindo, pelo contrário, ele retornara para o corpo de Jonne. Espiei de longe aquela coisa insanamente horrenda, abocanhar a face do velho Jonne, arrancando-lhe a maior parte de seu rosto, inclusive seus olhos e nariz. Em seguida uma segunda mordida tratou por estilhaçar sua cabeça, até que a coisa a engoliu por completo. Então, arrastou o resto de seu corpo para o campo das orquídeas, até um lago, donde adentrou nele com o corpo de Jonne. Sei que meu relato é inacreditável e percebo ainda pelos seus olhares debochados que nunca poderiam levar-me a sério, contudo, há algo naquela floresta, dentro daquele lago. Algo temeroso. E vai acontecer de novo. Mais pessoas vão morrer... A velha lenda nunca morre não é mesmo.
 
17 de Setembro de 1896 às 20:45
 
“Sarah Santos Lucio desaparecera dois dias depois. A última vez que fora vista; entrando na floresta.”
“Caso arquivado por falta de provas, suspeitos ou indícios concretos, somente especulações e um depoimento sem credito”
“78 pessoas desapareceram desde aquele dia, sem deixar nenhum vestígio”
 
 
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 24/12/2017
Reeditado em 25/12/2017
Código do texto: T6207470
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